A lâmina não tremia.

    Era a primeira coisa que a mente atordoada de Jatyr registrava, um ponto de clareza aterrorizante em meio à névoa de dor e exaustão. A ponta daquela arma estranha, longa e curva como o bico de uma ave de rapina ancestral, pairava a um palmo de seu peito. O metal polido, de um cinza frio e impiedoso, capturava a luz pálida da manhã, devolvendo-a em um brilho ofuscante que feria seus olhos. A mão que a segurava era firme, sem o menor vestígio de hesitação.

    O ar frio do vale invadiu seus pulmões em uma lufada dolorosa. Sentia a areia úmida e gelada em suas costas, a aspereza dos seixos contra sua pele ferida. O cheiro que o envolvia era uma mistura crua de terra molhada, do suor delas – um odor herbal – e do seu próprio cheiro, de sangue seco e medo. A dor em seu pulso direito era um calor surdo, doentio, um pulsar constante sob a pele marcada que parecia ecoar a batida selvagem de seu coração.

    Então, a figura à sua frente, aparentemente falou. Ou melhor, emitiu um som. Não eram palavras que ele pudesse reconhecer, não a língua antiga de Einar. Foi um som gutural, baixo e ressonante, que vibrou no ar como o rosnado de aviso de uma onça soberana, uma pergunta contida em uma ameaça.
    — Mba’ére piko nda re’imanói? (Por que você ainda não morreu?) — ela perguntou, a voz firme como a pedra.

    Depois do fogo, da sombra… morrer para mãos que nem falam minha língua? A frustração era uma onda de bile subindo por sua garganta.

    Seus olhos, desesperados, varreram o cenário. Não era apenas uma inimiga. Eram quatro. E elas não estavam espalhadas ao acaso, mas posicionadas em um arco mortal que o encurralava contra o rio às suas costas. Formavam uma gaiola, uma muralha de corpos e lâminas que lhe cortava qualquer rota de fuga. Não eram selvagens agindo por impulso. Havia uma ordem ali, uma disciplina silenciosa que ele nunca vira em humanos, mas que reconhecia instintivamente. Era a mesma coordenação letal de uma matilha de ariranhas-leoas cercando sua presa, cada uma conhecendo seu papel, cada movimento respondendo a um comando invisível. A percepção o atingiu com um frio que superava o da areia: a disciplina delas o assustava tanto quanto suas armas.

    Diretamente à sua frente, a mais próxima permanecia imóvel, a estranha arma pairando sobre ele como a promessa de um fim rápido. Seu rosto era uma máscara de calma autoritária.

    À sua direita, a mulher do olho branco o observava. A pele dela era ligeiramente mais clara, os cabelos curtos e escuros. Diferente das outras, suas mãos estavam vazias, relaxadas ao lado do corpo, com dois discos de madeira escura presos ao cinto. Sua postura não era de ataque, mas de uma análise intensa e perturbadora. O olho branco, uma lua morta em seu rosto jovem, parecia não olhar para ele, mas através dele, como se tentasse decifrar a própria canção de sua alma, a melodia de sua dor.

    À sua esquerda, estava a personificação da força bruta. Seu corpo, largo e coberto por um mapa de cicatrizes finas, estava plantado na areia como uma árvore antiga, e o arco longo que segurava parecia um galho arrancado de um jequitibá rei. Havia uma hostilidade contida em sua postura, um ódio frio em seu olhar.

    E atrás da líder, mais recuada, estava a quarta, a aparentemente mais jovem. Seus olhos arregalados traíam uma curiosidade assustada que contrastava com a frieza das outras, mas a lança de duas pontas que segurava em suas mãos não vacilava. Ela era a reserva, a muralha final que fechava o cerco.

    A adrenalina, uma aliada traiçoeira, começou a queimar em suas veias, um fogo que ignorava a dor lancinante em seus ferimentos. Um instinto mais antigo que o medo gritou em sua mente: arma. Precisava de uma arma. Sua mão direita voou para o ombro, buscando o arco de Einar, mas seus dedos encontraram apenas o vazio. O estalo seco do golpe da Kûara’ika ecoou em sua memória, um som de ossos quebrando. Nada. Lembrou da lança, que a pata da fera arrancara de suas mãos. Perdida. Engolida pelas sombras. A faca. Sua mão desesperada foi para o cinto, onde a faca de osso deveria estar. A imagem final da lâmina, enterrada até o cabo no crânio da onça profanada, cravou-se em sua mente com uma clareza brutal. A constatação o atingiu com um frio que apagou a adrenalina e deixou para trás apenas o gelo do pavor. Estava nu. Desarmado. Sem nada além de suas mãos feridas e um corpo quebrado. Com o caminho da luta fechado, restava apenas um. O mais frágil. A voz. Ele precisava se mover. Precisava falar. Com um gemido abafado, ele se impulsionou para trás, arrastando o corpo pela areia, os músculos protestando em agonia. Conseguiu se sentar, as pernas trêmulas esticadas à sua frente, a postura de um animal ferido, mas que se recusa a se deitar para morrer.

    Sua boca se abriu, e as palavras saíram em um fluxo rouco, desesperado, não para elas, mas para o ar, para a floresta, para qualquer coisa que pudesse ouvir seu aviso.

    — A sombra… Anhangá! Ele está aqui! — Ele apontou com um dedo trêmulo para a mata escura de onde viera. — Fiquem longe! É uma armadilha! Ele… ele me marcou!

    A resposta veio da líder, um comando curto e afiado na mesma língua incompreensível.
    — Nhekatu’arã! (Cautela!) — ela ordenou, e a guerreira mais forte assentiu, o olhar nunca deixando Jatyr.
    A arqueira de corpo robusto e olhar hostil murmurou algo para a do olho branco, o som ríspido como casca de árvore sendo arrancada. Para Jatyr, era uma cascata de sons desconhecidos: cliques curtos como galhos secos quebrando sob patas pesadas, sibilantes como o vento nas folhas mais altas, e tons guturais que lembravam o chamado distante de um macaco-guariba. Eram os sons da floresta, mas torcidos em uma linguagem que o excluía, que o definia como “outro”.
    — Oñe’ẽ ñe’e pochy (Ele fala a língua do mal) — Anara sibilou para Lyra, a certeza gélida em sua voz.

    O som delas, tão alienígena, tão real, chocou-se contra a paranoia que fervilhava em sua mente. A voz de Anhangá… era como muitas vozes… como um eco… A dúvida, fria e venenosa, se infiltrou em sua alma. Elas… elas são reais? Ou apenas mais um truque dele? Mais visões para me quebrar?

    — Vocês… são dele, não são? — A acusação era um sussurro rouco, a loucura dançando em seus olhos. — Mais ilusões… mais mentiras de Anhangá! Para me atormentar!

    Com um grito que era mais fúria do que força, ele tentou se levantar. Apoiou-se nas mãos, os músculos dos braços e pernas tremendo sob o esforço excruciante. A dor de seus ferimentos explodiu, uma agonia branca e ofuscante, mas ele a ignorou. Cambaleante, conseguiu se erguer, o corpo curvado, a respiração em farrapos, mas de pé. Ele as encarou, os olhos selvagens, um animal encurralado que já não distinguia entre a armadilha e o caçador.

    Seus olhos, em uma busca frenética por qualquer fresta naquela muralha, fixaram-se na quarta guerreira, aquela com o olho branco. Ela era diferente. Enquanto as outras empunhavam suas armas com uma prontidão ameaçadora, ela mantinha as mãos relaxadas ao lado do corpo, os dois discos de madeira escura e adornados com penas presos em seu cinto. Sua postura não era de ataque, mas de análise. A cabeça levemente inclinada, o olho branco – uma lua morta em seu rosto jovem – parecia não olhar para ele, mas através dele, como se tentasse decifrar não suas palavras, mas a própria canção de sua alma, a melodia de sua dor.

    Uma fagulha de esperança irracional acendeu em seu peito exausto, uma contradição em meio à sua paranoia crescente.

    Ela não se move como as outras sombras. Ela… ela me ouve? Ela entende?

    Ele deu um passo hesitante em sua direção, a mão estendida em um gesto que era meio súplica, meio advertência. — Você… você é real?

    Seu olhar, por um instante, desviou-se dela, varrendo o círculo novamente, e cruzou com o da mais jovem. Não havia a mesma frieza de aço da líder, nem a hostilidade contida da arqueira. Havia algo mais… uma curiosidade assustada, talvez até uma ponta de medo. A confusão de Jatyr se aprofundou. Aquilo não era um muro impenetrável; havia fissuras, emoções que ele não compreendia.

    Mas a esperança era uma flor frágil naquela terra de lâminas. A líder fez um gesto quase imperceptível com o queixo, um comando mudo que as outras entenderam instantaneamente. O momento de análise havia terminado. A gaiola de lanças e silêncio começou a se fechar.

    A esperança de Jatyr foi esmagada sob a bota de uma disciplina impiedosa. Sua súplica, um som estranho e desesperado na língua ele falava, encontrou apenas o silêncio tático das guerreiras.

    A reação foi instantânea. A guerreira mais forte, a do arco longo e da fúria contida, moveu-se com a velocidade de uma sucuri dando o bote. Jatyr tentou recuar, mas seus pés descalços deslizaram na areia úmida. Ela o alcançou em duas passadas, não com um golpe para matar, mas com um movimento de contenção brutalmente eficiente. A perna dela varreu sua base. O mundo girou.

    O impacto com o chão foi um baque surdo que roubou o pouco ar que lhe restava. A areia fria e úmida pressionou sua bochecha. Antes que pudesse sequer pensar em se mover, o peso esmagador do joelho da guerreira cravou-se em seu peito, prendendo-o ao solo.

    — Pytá, ta’ýra anhangá! (Fique quieto, cria do Sul!) — a voz dela era um rosnado baixo, a poucos centímetros de seu rosto.

    Ele se debateu por instinto, um animal encurralado. Foi um erro. A guerreira agiu com uma precisão fria. Sua mão agarrou o braço esquerdo de Jatyr, o mesmo ferido pela Kûara’ika, e o torceu para trás em um ângulo antinatural. A dor foi uma explosão branca e ofuscante atrás de seus olhos. Um som gutural e sufocado foi arrancado de sua garganta, um gemido de pura agonia que se perdeu no som distante do rio. Quieto ou te quebro o braço. Ele sentiu o eco da ameaça não dita na pressão impiedosa.

    Com Jatyr imobilizado, a guerreira de madeira e fúria agiu. Com uma mão, ela arrancou a mochila de Einar de suas costas e o compartimento de couro que ele fizera com tanto cuidado, jogando-os com desprezo para o lado, perto da mulher do olho branco. O tomo secreto de Einar, enrolado em peles, caiu com um baque surdo na areia.

    — Não! — o grito de Jatyr foi abafado, a voz rouca de desespero. — Não toque! é do velho… São as palavras dele… por favor!

    Ela agachou-se ao lado dos objetos. Ela não os tocou de imediato. Apenas observou, a cabeça inclinada. Jatyr a viu pegar a bolsa de couro e, com uma delicadeza que contrastava com a brutalidade de sua companheira, e então abri-la. O pesado livro de capa escura escorregou e caiu na areia, abrindo-se em uma página qualquer. Uma ilustração de anjos com espadas de fogo e demônios de asas retorcidas ficou exposta ao céu cinzento. Lyra estremeceu visivelmente, recuando a mão como se tivesse tocado uma brasa. Muitas vozes… e muita dor…

    A atenção da guerreira que o prendia, Anara, voltou-se então para a esfera metálica inerte ao seu lado. Com a mão livre, ela sacou seu pesado facão de caça.

    — Mba’e piko kóva? (Que diabo é isso?) — ela murmurou olhando para Jatyr, a aversão clara em sua voz.

    Ela não tocou a esfera com a mão. Em vez disso, com a ponta afiada do facão cutucou o metal liso. O som foi seco, dissonante, o tinir do aço contra um material desconhecido. Uma vez. Duas.

    O pânico explodiu no peito de Jatyr, mais forte que a dor. — Não! Ele é um amigo! Deixe-o em paz! — gritou, as palavras se atropelando. Ele gesticulou freneticamente com a cabeça em direção ao céu. — Ele está dormindo! Precisa do sol! Precisa de luz para… acordar! Por favor!

    A líder, Nayara, que até então observava de longe, aproximou-se. Seus olhos passaram pela cena: Jatyr imobilizado, a Bíblia aberta na areia, o tomo de Einar, e agora o facão de Anara perigosamente perto da esfera. Ela fez um sinal para Anara, que se levantou, liberando o peso de sobre Jatyr, mas mantendo um pé firme sobre suas costas.

    Nayara agachou-se ao lado de Echo. Sua análise era fria, tática. Ela não via um “amigo adormecido”. Via uma variável desconhecida. Um artefato do inimigo, talvez. A urgência nos gestos de Jatyr, apontando para o céu, não fora ignorada. Um ritual, talvez? Uma fraqueza a ser explorada?

    Enquanto isso, Hanna, que se mantivera recuada, começou a se aproximar lentamente, atraída não pela ameaça, mas por uma curiosidade irresistível. Seus olhos estavam fixos na esfera. Era uma vibração sutil, quase uma canção silenciosa, uma ressonância fria e intrigante que parecia chamar por algo dentro dela.

    A violação dos ecos de Einar já era uma ferida profunda. Mas havia um último santuário. Um último fio que o conectava à sua origem, à canção de ninar no meio do fogo. E elas estavam prestes a cortá-lo.

    O mundo de Jatyr havia se reduzido ao peso do pé de Anara em suas costas e à violação de seus únicos tesouros. A resignação começava a se infiltrar em seus ossos, um veneno mais frio que o medo. Eles haviam tomado os ecos de Einar. Agora, só restava uma coisa. Uma última brasa.

    Nayara, a comandante, insatisfeita com o que via – um enigma ferido e artefatos incompreensíveis –, tomou sua decisão final. Ela fez um gesto seco e autoritário com o queixo na direção do pescoço de Jatyr. A ordem era clara, mesmo na ausência de palavras.

    Anara, inclinou-se. Seus dedos, fortes e calejados, moveram-se em direção ao pescoço dele, buscando o cordão de cipó trançado, escurecido pelo suor e pelo tempo, de onde pendia o amuleto.

    O mundo se afunilou. Todo o som da floresta, o murmúrio do rio, a respiração das guerreiras, tudo desapareceu. Restou apenas um ponto de contato. O toque frio e estranho dos dedos de Anara no metal que sempre repousara contra sua pele. O metal que sua mãe lhe dera.

    Um ferro em brasa.

    O toque foi o gatilho. Algo dentro de Jatyr, uma corda esticada ao máximo pela dor, pela perda e pela humilhação, finalmente arrebentou.

    NÃO ISTO. NUNCA ISTO.

    Um grito foi arrancado de suas entranhas. Não era humano. Era o som de uma alma se partindo, um rugido de dor e fúria tão primal que fez até mesmo a impassível Nayara recuar um passo instintivo.

    Uma explosão de força, nascida do mais puro e visceral desespero, irrompeu de seu corpo exausto. Não era o poder sombrio e contido da Marca em seu pulso, que apenas latejou com um calor doentio em resposta à adrenalina. Era a força de um filho protegendo o último vestígio de sua mãe.

    Com um movimento que se assemelhava mais ao contorcer de uma sucuri do que a uma técnica de luta, ele girou o corpo sob o pé de Anara. Sentiu os músculos de seu ombro se rasgarem com o esforço, mas a dor era irrelevante. Usou o próprio corpo da guerreira como alavanca, impulsionando-se para cima.

    Anara, pega de surpresa pela ferocidade e pela força inesperada, perdeu o equilíbrio. Jatyr não parou. Ele se ergueu, um animal acuado, e com um impulso selvagem, usou o peso de seu corpo e a força de suas pernas para empurrá-la. Anara foi jogada para trás, tropeçando na esfera e caindo com um baque surdo na areia, mais pela surpresa e pelo desequilíbrio do que pela força do golpe.

    Jatyr não atacou. Não buscou uma arma. Seu único movimento foi levar a mão ao peito, os dedos se fechando possessivamente sobre o metal frio do amuleto. Ele então recuou, tropeçando, caminhando de costas em direção ao rio, os olhos selvagens fixos nas guerreiras, a respiração em farrapos, o corpo tremendo violentamente.

    A reação delas foi imediata. Anara se levantou com um rosnado de fúria e humilhação, o facão em sua mão. Hanna recuou, o rosto pálido. Nayara e Lyra, ergueram suas armas, prontas para um combate letal. A trégua havia acabado.

    Então, em meio ao caos de sua respiração ofegante, uma única palavra escapou dos lábios de Jatyr, um lamento que era quase uma prece.

    — Mãe…

    A palavra, dita em seu português arcaico, era incompreensível para Nayara e Anara. Mas para Lyra, foi como um trovão. Ela reconheceu o som. A pronúncia era diferente, mais crua que a dos Ro’ysanga, mas a essência, a raiz da palavra e seu significado parecia a mesma.

    Enquanto Anara avançava para o ataque, Lyra agiu. Seu olho branco pareceu brilhar por um instante. Ela viu a aura de Jatyr, não mais calma e contida, mas explodindo em um brilho dourado e visceral, uma cor de pura dor e amor protetor, completamente distinta da energia doentia e vermelha que ela sentira emanar da Marca.

    — PYTÁ! (Pare!) — a voz de Lyra soou, não como um comando de guerreira, mas como um apelo urgente. Anara hesitou, virando-se para ela com um olhar furioso.

    — Ore nhorai! Yaguara nte! (Ele nos atacou! É uma besta!) — rosnou Anara.

    — Ani! (Não!) — Lyra deu um passo à frente, a mão estendida. — Abá i sy nhe’ẽ. Aîkûmby. (Ele… ele chamou pela mãe. A palavra… eu a entendi.) — Ela se virou para Anara, a voz agora um sussurro carregado de uma certeza mística. — Nda’e’i pokatu o-nhorai, Anara. O-arõ i ‘anga pûera. (Ele não está lutando para nos ferir, Anara. Ele está defendendo uma memória.)

    Nayara observou a cena, seus olhos analíticos processando a nova informação. A fúria de Jatyr não era um ataque; era uma defesa desesperada. Ele não tentara pegar uma arma, apenas proteger o colar. A dor de um filhote protegendo seu ninho. A percepção mudou toda a equação tática. Remover o amuleto à força irá quebrá-lo… ou torná-lo incontrolável.

    — YVYPÝRI! (Afaste-se!) — O comando de Nayara, desta vez, foi um grito de autoridade absoluta que cortou a tensão como uma lâmina.

    Anara recuou, a contragosto, o facão ainda em punho.

    O silêncio tenso voltou a cair sobre a praia. Jatyr estava sozinho no centro daquele círculo de lâminas, de pé, ofegante, o corpo tremendo incontrolavelmente. A mão direita estava cravada em seu peito, agarrando o amuleto como se fosse seu próprio coração. A adrenalina começou a se esvair, deixando para trás apenas a exaustão, a dor latejante e um desespero estampado em seu rosto. Elas não são dele… O pensamento surgiu, confuso, em meio ao caos. Se fossem ilusões de Anhangá, por que recuariam? Por que iriam querer minhas coisas? A paranoia começou a ceder, dando lugar a uma confusão ainda mais profunda. Ele não estava mais lutando contra fantasmas. Estava enjaulado por algo real, algo que ele não compreendia, mas que, por um instante, pareceu reconhecer sua humanidade.

    O comando de Nayara cortou o ar como a própria lâmina de sua naginata. A fúria instintiva cedeu à disciplina treinada. Anara, com um rosnado de frustração contida, avançou ao mesmo tempo que Lyra, as duas flanqueando Jatyr, que ainda ofegava, o corpo tremendo, a mão cravada no amuleto como sua única âncora.

    Ele não resistiu mais. A explosão de força o deixara oco, um invólucro vazio onde a adrenalina queimara até a última gota de energia. Ele assistiu, como se de longe, Hanna se aproximar, o rosto uma máscara de conflito e dever. Viu o pequeno tubo de bambu em seus lábios, a zarabatana. Sentiu a picada aguda na coxa, quase insignificante em comparação com a dor que já o consumia. Então, a névoa começou. Um torpor frio e pesado subiu por sua perna, entorpecendo seus músculos, silenciando o caos em sua mente.

    A última coisa que viu antes da escuridão o engolir foi o rosto de Hanna. Ela se virou rapidamente, incapaz de sustentar seu olhar. Em seus olhos, o que sua mente confusa interpretou como culpa. A escuridão, finalmente, o reclamou.


    Com o jovem inconsciente, a tensão da batalha cedeu lugar a uma análise fria e calculista. O caos deu lugar ao procedimento. Nayara, Anara e Lyra formaram um semicírculo ao redor do corpo caído, suas sombras alongando-se na luz pálida da manhã. Hanna permaneceu um pouco afastada, observando as líderes, o peso do que fizera visível em sua postura.

    — Yacy pochy! (Fúria da lua!) Que força estranha ele tem — Anara quebrou o silêncio, a voz áspera. Agachou-se, o facão ainda em punho, e apontou a lâmina para o pulso direito de Jatyr. — Esta coisa… pulsou com malícia quando ele lutou, Nayara. Tem o fedor do Sul. Deveríamos cortá-la fora. A purificação deveria começar aqui.

    — Cautela, Anara — a voz de Nayara era calma, mas firme. — A pele ao redor não está apodrecendo como nas crias. Parece uma marca, não uma infecção. Tocar nisso sem entender sua natureza pode despertar algo muito pior.

    Lyra ajoelhou-se do outro lado, focada na cicatriz. Ela não tocou. Em vez disso, passou a mão a centímetros da pele de Jatyr, os dedos abertos, como se estivesse lendo o calor, a energia, a própria textura do invisível.

    — Não toque nisso, Lyra. A podridão se espalha — Anara rosnou, recuando instintivamente.

    Lyra ignorou-a, a concentração total.
    — A sombra ainda dorme por baixo, um vazio faminto que parece sugar as forças dele — ela murmurou, a voz distante. — Mas a serpente de luz o silenciou. — Seus olhos se voltaram para Nayara. — Há outro poder sobre a marca, Comandante. Um poder que parece… um selo de contenção. A marca é como um rio de veneno, e este selo é a barreira que o segura. Cortar a marca… pode ser o mesmo que quebrar a barreira.

    Nayara assentiu, absorvendo a informação. A imagem era poderosa, clara. Ela olhou para o rosto adormecido de Jatyr.
    — A língua dele, Lyra. O que ele gritava? você entendeu algo não foi?

    Lyra fechou os olhos, os dedos tocando levemente as próprias têmporas.
    — A língua é antiga. Tem a forma do dialeto que os comerciantes Ro’ysanga usam, mas é mais crua. Ele não nos amaldiçoou. — Ela se concentrou nos ecos da voz dele, sentindo a forma e a intenção das palavras. — Ele falou de uma “sombra”… avisou de uma “armadilha ao Sul”. Suas primeiras palavras foram de pergunta… Quem. E de aviso… Longe. E a última, a que o fez lutar… Mãe. O tom… era o de um animal encurralado, Comandante. Não o de um caçador.

    Nayara processou a informação. Um animal encurralado que sobreviveu a Iara e a Anhangá, mas protegido por outro poder. Contradições. Seu olhar se voltou para os artefatos confiscados, dispostos sobre um pedaço de couro.

    — E esses desenhos… — Anara zombou, cutucando a Bíblia aberta com a ponta da bota. — Homens com asas de pássaro. Histórias para crianças tolas.

    Lyra pegou o livro com cuidado, sentindo seu peso.
    — É mais que isso. Há muitas mãos aqui. Muitas vozes… e muita dor. É antigo. Mais antigo que a própria Yaci’na, talvez.

    — E este outro? — Anara indicou com o facão o rolo de peles que caíra da mochila, o tomo secreto de Einar. — Mais rabiscos?

    Lyra, que não o notara antes, focada no livro maior, pousou a Bíblia e pegou o tomo com uma delicadeza quase reverente. Desenrolou as peles ressecadas e seus olhos se arregalaram. Um arrepio visível percorreu seus braços.
    — Não… — ela sussurrou, a voz um fio de pura incredulidade. — Não são rabiscos. São… runas.

    Ela traçou com o dedo trêmulo um dos símbolos angulares que Einar gravara, uma escrita que ela conhecia das histórias de sua avó, dos entalhes nas pedras sagradas das Montanhas Gélidas do Norte.
    — Isto é Ro’ysanga. É a escrita ancestral do meu povo.

    Um silêncio chocado caiu sobre o grupo. Nayara se aproximou, o olhar analítico cravado nas inscrições. Anara franziu o cenho, o desprezo dando lugar a uma profunda desconfiança.
    — Ro’ysanga? — ela cuspiu a palavra, o tom carregado de ceticismo. — Olhe para ele, Lyra. A pele dele é escura como a nossa, não pálida como a do seu povo das montanhas. E os olhos… — ela gesticulou com desdém para o rosto adormecido de Jatyr. — São como fendas, como os de nenhuma gente que já vimos. Ele não tem nada de Ro’ysanga nele.

    Nayara não disse nada, mas Anara tinha razão. Os traços do jovem eram um enigma. A pele bronzeada pelo sol o assemelhava aos povos da floresta, mas a forma de seus olhos era distintamente alienígena para elas, uma herança de uma ancestralidade há muito esquecida.

    — Eu sei o que vejo, Anara — Lyra insistiu, a voz firme, embora ainda abalada pela descoberta. — A língua pode mentir. A pele pode enganar. Mas as runas… as runas guardam a alma de um povo. Como este ser do Sul, carrega consigo a sabedoria ancestral dos Filhos do Gelo? É uma impossibilidade. Um presságio que não consigo decifrar.

    O olhar de Nayara pousou então sobre a esfera metálica.
    — Lyra. A esfera. O que ele disse sobre ela?

    Hanna se adiantou, hesitante.
    — Ele… ele chamou de… “amigo”. Disse que estava “dormindo”. — Ela franziu o cenho, tentando organizar o quebra-cabeça de palavras. — E que precisava de… sol. Luz. Para “acordar”. Acho que é isso.

    — Um espírito de metal que se alimenta de sol — Anara riu, um som sem alegria, cheio de desprezo. — Uma piada de mau gosto. Tudo que nasce da podridão do Sul foge da luz. Eles temem o olhar de Guaraci, o Pai-Sol, pois sua pureza queima a mácula deles como fogo em palha seca. Dizer que esta coisa se alimenta de Sua luz é a mais vil das mentiras.

    — Verdade ou mentira, não importa — Nayara interrompeu, a decisão tática já formada. — Se a luz o desperta, então ele permanecerá na escuridão, até que saibamos o que ele é. Envolvam-no.

    Hanna e Lyra trabalharam juntas, envolvendo Echo em uma grossa camada de couro de anta, silenciando seu brilho e sua estranha canção. Por fim, o olhar de Nayara voltou-se para o amuleto, ainda no peito de Jatyr.

    — E isto. A fonte de sua fúria. Anara, remova-o.

    Anara se aproximou, mas no momento em que seus dedos tocaram o cordão de cipó, o corpo inconsciente de Jatyr reagiu. Um gemido baixo e doloroso escapou de seus lábios. Seus dedos contraíram-se em direção ao peito, e a Marca em seu pulso pulsou com uma luz vermelha fraca.

    — Eu disse! — Anara recuou. — É a fonte de seu poder!

    — Não, Comandante, espere! — Lyra interveio, a voz urgente. — A reação não é de dor física. É de perda. É parte da alma dele. E veja, a marca se agita. O amuleto é o contrapeso para a sombra. Sinto isso. Retirá-lo à força pode quebrar seu espírito… ou despertar o que quer que o selo da serpente esteja contendo.

    Nayara observou a marca se acalmar assim que a mão de Anara se afastou. A evidência era clara. Ela suspirou, um som de pura frustração tática.
    — Deixem. Por enquanto. Amarrem suas mãos para que ele não possa tocá-lo quando acordar. A análise, por ora, terminou.

    — Vamos — Nayara ordenou, a voz cortando o ar carregado. — O sol já passa do meio-dia. Não podemos permanecer neste vale.

    O trabalho começou como um ritual de eficiência silenciosa. Em minutos, usando a força bruta de Anara para quebrar galhos resistentes de Bacuri-bravo e a perícia de Lyra e Hanna para trançar cipós-titica com uma rapidez impressionante, a estrutura de transporte tomou forma. Não era uma maca, mas algo mais brutal e prático: um suporte rígido, semelhante a uma escada rústica, projetado para ser carregado nas costas.

    Com uma eficiência fria, Anara e Nayara amarraram o corpo inconsciente de Jatyr à estrutura. Os cipós grossos prendiam seus pulsos, tornozelos e torso, imobilizando-o completamente, transformando-o em pouco mais que uma carga, um fardo a ser transportado. Antes de erguerem o prisioneiro, Lyra traçou um pequeno selo de proteção com cinzas sagradas da Yaci’na na testa de Jatyr.

    — Para que a sombra que dorme nele não desperte com o chacoalhar do caminho — ela explicou a Nayara, que apenas assentiu.

    Anara ajustou as alças de couro sobre os ombros largos, agachou-se e, com um grunhido de puro esforço físico, ergueu a estrutura com Jatyr amarrado, colocando-o em suas costas. A prótese de madeira da Yaci’na fincou-se na terra, suportando o peso extra sem um tremor. Para ela, canalizar sua frustração e ódio naquele esforço era mais fácil do que lidar com a complexidade do que ele representava. Ele não é uma pessoa. É um fardo. Um perigo que carregamos para longe de nosso coração.

    A jornada de volta começou. A marcha era um teste de resistência silenciosa, um balé de tensão através de uma floresta que parecia observá-las com mil olhos invisíveis. Nayara ia na vanguarda, a naginata em mãos, seus olhos varrendo cada sombra, cada galho quebrado, lendo o terreno com uma perícia ancestral. Atrás dela, Anara seguia, seus passos pesados e firmes sob o peso extra, tratando o corpo de Jatyr com a mesma delicadeza que daria a um tronco podre. Lyra vinha logo depois, a sentinela espiritual, seu foco não apenas na trilha física, mas na teia de energias que as cercava. E Hanna, na retaguarda, fechava a formação, o coração apertado pela culpa e pela visão do jovem amarrado como um animal abatido.

    A floresta era um inimigo sutil. Nayara, com um simples sinal de mão, desviou o grupo de uma clareira onde o chão estava coberto por uma fina camada de pó iridescente – os esporos de um fungo que, segundo as lendas, fazia os incautos verem seus piores medos até enlouquecerem. Mais tarde, ela parou abruptamente, apontando com o queixo para o chão. Ali, na lama, um rastro fresco. Eram pegadas disformes, maiores que as de qualquer onça, com um brilho oleoso e doentio. Motatapûerhára (O Rastejador Cinzento), Anara pensou com um arrepio, reconhecendo a marca da criatura que as lendas de sua tribo diziam ser o eco da própria agonia da terra. Silenciosamente, Nayara mudou a rota, conduzindo-as por um caminho mais íngreme e seguro.

    Durante uma pausa para beber água, Hanna, não suportando mais a visão, aproximou-se de Anara. A cabeça de Jatyr pendia em um ângulo desconfortável, o rosto arranhado roçando na madeira áspera da estrutura. Com cuidado, Hanna tentou ajeitar um feixe de folhas macias entre a bochecha dele e a madeira.

    Anara não se virou. Apenas ergueu a prótese e, com a ponta de madeira entalhada, empurrou a mão de Hanna para longe, o gesto preciso e desprovido de emoção. Lançou-lhe um olhar por cima do ombro, um olhar frio como o aço, que dizia claramente: Ele não é um convidado. É uma carga.

    Hanna recuou, o rosto corando de vergonha e frustração. Nayara, que vira tudo, fez um som baixo, um clique com a língua, um aviso sutil. Anara soltou um rosnado baixo e se virou para a frente, mas a tensão entre ela e a jovem permaneceu no ar, pesada e cortante.

    A jornada era duplamente exaustiva para Lyra. Ela sentia a respiração lenta e doentia da floresta, o medo dos pequenos animais que se afastavam, não apenas delas, mas da aura que emanava do prisioneiro. Ela sentia as duas energias em Jatyr, uma dança macabra e silenciosa em suas costas. Em um momento, ela parou, a mão erguida. O grupo congelou.

    — O que foi? — Nayara sinalizou.

    Lyra tocou o próprio pulso, onde a marca de Jatyr estaria, e depois fez um gesto de “dormir”. A sombra… está quieta. Estava monitorando a energia da Marca, um lembrete constante de que o perigo que carregavam não era apenas físico.

    O sol já começava a descer no horizonte quando finalmente alcançaram o abrigo rochoso que usaram na noite anterior. O lugar, antes um simples refúgio, agora parecia uma cela improvisada. A jornada, um teste brutal de seus corpos e espíritos, havia terminado. Mas a provação de verdade estava apenas começando.

    Horas se arrastaram. O efeito do dardo sonífero cedeu lentamente, não como uma maré que recua, mas como um gelo que se quebra em fragmentos dolorosos na consciência de Jatyr. Ele despertou para uma sobrecarga sensorial. O cheiro agudo da fumaça de uma fogueira misturado ao aroma herbal do ritual de contenção. A aspereza das amarras de cipó roçando a pele ferida de seus pulsos. O frio implacável da pedra em suas costas.

    Sua primeira visão foram as quatro silhuetas recortadas contra as chamas dançantes. Predadores ao redor de uma fogueira, e ele, a presa enjaulada no centro de sua vigília. A confusão era uma névoa espessa em sua mente. Onde estou? O que eles querem? Ele tentou se mover, mas as amarras eram firmes, e cada pequeno esforço enviava ondas de dor por seu corpo maltratado.

    Resignado, ele se deixou ficar, os olhos semicerrados observando-as. A exaustão o puxava de volta para a inconsciência, mas ele lutou para se manter desperto. Um murmúrio escapou de seus lábios, um fluxo de consciência que buscava se ancorar na realidade.
    — Einar… o fogo… a água… — As palavras em português arcaico eram um lamento baixo, a melodia da dor e da perda.

    As guerreiras, que até então permaneciam em um silêncio tenso, reagiram ao som de sua voz. A comandante, Nayara, fez um sinal quase imperceptível. A do olho branco, Lyra, se aproximou, agachando-se a uma distância segura.

    — De… onde… você… vem? — A voz dela era estranha. As palavras eram familiares, mas a pronúncia era dura, as sílabas cortadas de uma forma que ele nunca ouvira, com um sotaque que parecia carregar o frio de montanhas distantes.

    Jatyr piscou, a mente lutando para processar. Ela… falava sua língua? Ou um eco dela?
    — Sul… — ele conseguiu dizer, a garganta seca. — Da… Mãe Yaci. O fogo… Mãe Yaci… queimou.

    Lyra franziu o cenho. Mãe… Yaci… Ela reconheceu as duas palavras separadamente, embora juntas não fizessem sentido imediato em seu dialeto. Virou-se para suas companheiras.
    — Ele aponta para o sul. Fala de um grande fogo. Confirma o que vimos. E fala de uma… Mãe. E da Lua. Yaci. — A palavra Yaci fez as outras guerreiras trocarem um olhar. Era a Filha da Lua, a Yaci’na, que eles chamavam de Mãe? A confusão se aprofundou.

    Lyra se voltou para Jatyr, o rosto tenso. Ela apontou para o pulso dele.
    — Isto… que… nome?

    O corpo de Jatyr enrijeceu. Um terror frio e visceral subiu por sua espinha. Falar sobre a marca… era como dar voz à própria sombra, convidá-la para dentro. Ele desviou o olhar, o silêncio sua única resposta.

    — Ele teme a marca — observou Lyra para Nayara. — Não se orgulha dela.

    Nayara assentiu e sinalizou para os artefatos. Lyra pegou a Bíblia.
    — Isto… o que… é?

    — É um livro… dos Antigos Deuses, eu acho — Jatyr respondeu, a voz baixa. — Tinha um nome nele. Theodore.

    Lyra traduziu o que pôde. “Livro dos Deuses Antigos.” O nome “Theodore” ela não reconheceu. Ela então pegou o tomo de Einar.
    Sua atenção se voltou então para o rolo de peles, o tomo secreto de Einar. A lembrança do que vira na praia voltou com força.
    Ela desenrolou as peles ressecadas. Ali, sob a luz trêmula da fogueira, as inscrições angulares se revelaram novamente.
    — E isto? — ela perguntou, a voz carregada de uma intensidade contida enquanto pegava o objeto com uma delicadeza quase reverente.

    Os olhos de Jatyr se encheram de uma dor renovada, uma vulnerabilidade que quebrou por um instante a máscara de desafio.
    — São as palavras… do meu mestre — sua voz era um murmúrio rouco, carregado de uma saudade palpável. — Einar…

    Lyra desenrolou as peles ressecadas. Ali, sob a luz trêmula da fogueira, as inscrições angulares se revelaram novamente.

    — As runas… são Ro’ysanga. Escrita antiga — ela disse em sua língua para Nayara, a voz um fio de pura incredulidade e fascinação.

    Ela se voltou para Jatyr, a curiosidade sobrepujando a cautela.
    — Isto… Ro’ysanga. Onde… você… achou?

    Jatyr franziu o cenho, completamente perdido.
    — Ro’ysanga? Não… o nome dele é Einar, Einar.

    Anara interrompeu — Ele pode ter encontrado no corpo de algum tolo que se aventurou ao Sul — Anara interrompeu, a voz cortante. Ela chutou uma pequena pedra em direção ao fogo. — O Sul está cheio de ossos. Não significa nada.

    — Significa tudo, Anara! — Lyra retrucou, a voz ganhando uma urgência que surpreendeu as outras. — Esta não é uma escrita comum que se encontra em qualquer ruína. São palavras de poder. Nenhum de meu povo nunca foi perdido tão ao sul, Como isto chegou aqui? Como chegou às mãos dele?

    Nayara interveio, a voz calma, mas final.
    — Outro enigma para os Anciãos ponderarem. Não encontraremos a resposta aqui esta noite, Lyra. Temos uma ameaça mais imediata.

    A tensão era máxima. O mistério se aprofundava a cada resposta. Finalmente, Lyra apontou para o invólucro de couro onde Echo estava escondido.
    — E… isto? O que… é?

    — Ele… é um amigo — Jatyr disse, a voz cheia de uma convicção protetora. — Um… espírito. Um Espírito da Tecnologia.

    Lyra traduziu, hesitante. “Espírito da Tecnologia”. A frase pairou no ar, absurda e aterrorizante.

    Nayara havia ouvido o suficiente. As peças, embora confusas, formavam uma imagem de perigo imenso. Ela se aproximou, o rosto uma máscara de autoridade fria, e se agachou diante de Jatyr, apontando diretamente para a marca.
    — A Sombra. Que nome ela tem? — a voz de Nayara, ordenando para que Lyra insistisse na pergunta.

    O terror nos olhos de Jatyr foi a única resposta que ela precisou. Ele fechou os olhos, o corpo tremendo. O nome. Dizer o nome era dar-lhe poder. Mas o olhar da comandante era implacável.
    Com um suspiro trêmulo, as palavras escaparam de seus lábios, um veneno sussurrado.
    — Anhangá…

    O nome caiu no silêncio do abrigo como uma pedra em um poço sem fundo. Uma reação em cadeia explodiu. Lyra deu um passo para trás, um arrepio visível percorrendo seu corpo. Hanna soltou um suspiro agudo e assustado. Anara, com um rosnado que era pura fúria e medo, sacou seu facão, o som metálico e seco ecoando na noite.
    — PE’YUKA! (MATE-O!) — ela gritou em sua língua.

    — PYTÁ! — O comando de Nayara foi um trovão. Anara congelou, a lâmina a centímetros de avançar. Nayara ergueu a mão aberta, silenciando-a.

    A comandante encarou Jatyr, que agora parecia menor, quebrado pelo peso da confissão. A informação crucial estava ali.
    — Hanna — Nayara chamou, a voz fria e tática. — Faça-o dormir.

    Jatyr viu a jovem se aproximar, a zarabatana em suas mãos. Seus olhos se encontraram. Não havia mais luta nele, apenas uma exaustão infinita e uma resignação amarga. Ele não resistiu. A picada veio. A escuridão, desta vez, foi quase uma misericórdia.

    Ao amanhecer, o grupo retomou a marcha. A atmosfera era pesada, a revelação da noite anterior pairando sobre eles como uma nuvem de tempestade. A jornada era mais lenta agora, o terreno mais íngreme e traiçoeiro à medida que se aproximavam do território seguro da Tribo.

    Quando o sol atingiu seu ponto mais alto, Nayara parou. Eles haviam chegado a um riacho de águas claras, um marco que sinalizava que estavam a apenas algumas horas do Posto Avançado Sul.
    — Hanna — Nayara disse, a voz carregada com a autoridade de seu comando. — A partir daqui, o caminho é seguro e você o conhece. Vá na frente. Voe como o vento.

    Hanna a encarou, surpresa.
    — Comandante?

    — Alerte o posto. Diga-lhes que estamos chegando com um prisioneiro do Sul. Diga-lhes para preparar uma cabana de contenção e convocar a Comandante Potira e os líderes de esquadrão presentes. Diga aos xamãs para prepararem os rituais de purificação e proteção. Eles precisam estar prontos para o que estamos trazendo. Agora vá!

    Hanna assentiu, o rosto sério. A responsabilidade da mensagem pesava em seus ombros. Com um último olhar para o fardo inconsciente nas costas de Anara, ela se virou e desapareceu na mata, seus passos leves e rápidos, uma mensageira correndo para anunciar a chegada de um presságio.

    Nayara observou-a partir e depois se voltou para o caminho à frente. A jornada estava quase no fim.

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