Capítulo 5: Na Fronteira das Sombras
Jatyr avançava em direção ao fim da floresta que conhecia, aquela que ainda lembrava o toque protetor de Mãe Yaci. Cada passo, no entanto, parecia atraí-lo para uma escuridão palpável, não apenas pela ausência de luz, mas por uma densidade crescente no próprio ar. O frescor das últimas árvores exuberantes, com seus troncos cobertos de musgo verde-vivo e o aroma adocicado de orquídeas selvagens, cedia rapidamente a uma atmosfera opressiva, quase asfixiante. O ar tornara-se pesado, impregnado pelo cheiro doce e enjoativo de folhas em avançada decomposição, um odor que alertava para a decadência. Sob seus pés descalços, o solo úmido, antes macio e receptivo, agora pulsava com uma energia inquieta e sutil, como se a própria terra estivesse febril, agitada por um mal-estar profundo.
O céu acima, antes um mosaico de azul e verde visível entre as copas altas, agora se ocultava progressivamente por um emaranhado de galhos retorcidos e escuros, entrelaçados como os dedos de um gigante esquelético. Essa teia sombria formava um teto que o isolava do mundo exterior e da luz do sol, que lutava para penetrar. As árvores que restavam ali, na fronteira daquele novo território, pareciam observá-lo; seus troncos eram deformados, cobertos por nós semelhantes a olhos vigilantes, e seus galhos se inclinavam em ângulos estranhos, como sentinelas silenciosas de uma fronteira proibida e há muito esquecida.
O silêncio ao redor de Jatyr era antinatural, uma ausência que gritava mais alto que qualquer som. Não era a quietude respeitosa da mata em descanso, nem o silêncio promissor que precede a chuva. Este era um vácuo, sem o canto dos pássaros que Einar lhe ensinara a identificar, sem o zumbido dos insetos que eram a pulsação constante da floresta. Pairava uma tensão palpável no ar, como o momento antes do bote de uma sucuri. Jatyr apertou os punhos, os sentidos aguçados ao extremo, cada nervo vibrando em alerta. A despedida da igreja, último vestígio de uma estrutura que, embora estranha, oferecera breve refúgio, ecoava em sua mente como uma porta pesada se fechando atrás dele, lançando-o no desconhecido.
Ele parou abruptamente, o coração saltando no peito, ao ouvir um farfalhar à sua esquerda. Era um som leve, quase imperceptível, que em Mãe Yaci um caçador experiente como ele aprenderia a ignorar, mas que ali, naquele silêncio opressor, soava como um trovão. Seus músculos se retesaram instantaneamente, os olhos varrendo as sombras densas entre as raízes expostas de uma árvore de casca escura e doentia. Foi então que o avistou: um pequeno roedor, não maior que sua mão, de pelos escuros e eriçados. Mas eram seus olhos que o fizeram prender a respiração: brilhavam com uma luz fraca, pálida, quase sobrenatural, como duas pequenas luas doentias na penumbra. O animal o encarou por um momento que pareceu uma eternidade, a cabeça pequena inclinada, como se julgasse sua presença, questionando-o por ousar pisar naquele domínio. Então, com a mesma rapidez com que surgira, desapareceu nas sombras, deixando Jatyr com a pele arrepiada e a incômoda, quase palpável, sensação de que estava sendo observado.
O silêncio voltou, ainda mais opressor, após a fuga do pequeno roedor de olhos brilhantes. A floresta aqui, nesta zona de fronteira, parecia prender a respiração. Jatyr lançou um olhar para a esfera metálica inerte, presa agora ao seu cinto improvisado. Estava desligada, silenciosa, mas havia um peso reconfortante em sua presença, uma promessa silenciosa de companhia e conhecimento, mesmo que ainda adormecida.
À medida que avançava com cautela, o terreno continuava a mudar de forma sutil, mas perturbadora. As pequenas pedras cobertas de musgo verde e saudável, características de Mãe Yaci, davam lugar a blocos maiores e irregulares, de uma rocha mais escura, que pareciam emergir do solo como os ossos de uma criatura colossal há muito esquecida, semi-enterrada e lutando para se libertar da terra. A vegetação também era diferente; as árvores tornavam-se mais espaçadas, seus troncos mais finos e com uma coloração acinzentada, e o sub-bosque, antes um emaranhado vibrante de vida, agora era escasso, composto por samambaias de folhas pálidas e cipós que pareciam secos e quebradiços.
Jatyr se agachou ao lado de uma dessas pedras maiores, que se projetava do solo como um dente quebrado. Passou os dedos calejados por sua superfície fria e áspera, sentindo os sulcos quase apagados de antigas inscrições. Eram linhas retas e ângulos que não se assemelhavam a nada que a natureza criaria, mas que tinham uma vaga, perturbadora semelhança com os símbolos que por vezes via dançar em seu amuleto. O amuleto em seu peito, de fato, pareceu vibrar sutilmente, um formigamento quase imperceptível contra sua pele, como se reconhecesse um eco distante de sua própria natureza.
Einar costumava contar histórias sobre terras amaldiçoadas, lugares onde civilizações perdidas, em sua arrogância ou desespero, haviam deixado marcas que a floresta hesitava em apagar, marcas que, segundo o velho, ninguém de bom senso ousava decifrar. O nome que Einar dava a essas regiões proibidas, onde a própria Mãe Yaci parecia recuar, voltou à mente de Jatyr como um vento frio. “As Terras de Anhangá,” ele sussurrou para si, a palavra um gosto amargo na boca, sentindo o peso daquelas sílabas, o eco das advertências de seu mentor.
Ele ainda não estava nelas, não de todo, mas sentia sua proximidade como o calor que precede a labareda, como o silêncio que antecede o rugido da onça. Estava no limiar onde a vida ainda lutava, mas a sombra já lançava seus dedos longos. Um arrepio percorreu sua espinha, um instinto de autopreservação mais forte que a curiosidade. Ele se levantou rapidamente, o olhar varrendo a mata ao redor, agora com uma nova e terrível compreensão.
O crepúsculo avançava, tingindo o céu já carregado com matizes de um roxo doentio e um laranja que parecia o reflexo de um incêndio distante. A escuridão que se instalava naquela fronteira não pertencia apenas à noite; era mais densa, mais antiga, impregnada pelo peso da terra que adoecia.
No horizonte, recortada contra a última luz moribunda, uma árvore monumental se erguia, seus galhos retorcidos como os braços de um gigante desesperado. Era a última sentinela de um verde mais escuro e resistente antes da vastidão pálida e cinzenta que se anunciava como as Terras de Anhangá propriamente ditas. Suas raízes imensas se entrelaçavam no solo como serpentes de madeira petrificada, e as poucas folhas que ainda se agarravam aos seus galhos mais altos balançavam ao sabor de um vento frio que trazia o cheiro da desolação e um sussurro que não era apenas de ar entre folhas, mas de algo mais… vazio.
— Um bom lugar para parar por hoje, — murmurou Jatyr para si mesmo, tentando encontrar algum conforto em suas próprias palavras, embora seu coração ainda estivesse apertado pela estranheza do lugar. Com a agilidade de quem nasceu entre as copas, ele subiu na árvore monumental, buscando um ponto alto e seguro entre seus galhos mais grossos, onde poderia observar os arredores e se proteger de qualquer criatura noturna que rastejasse por aquele solo profanado. Ali, improvisou um abrigo com as poucas folhas secas que encontrou e alguns galhos retorcidos que conseguiu quebrar, um ninho precário contra a noite que se aprofundava.
O céu, agora um breu absoluto sem o consolo das estrelas, pesava sobre ele. Jatyr suspirou, a exaustão da jornada e a tensão daquele ambiente hostil começando a cobrar seu preço. Fechando os olhos, ele repousou instintivamente as mãos sobre o amuleto que pendia em seu pescoço, seu frio familiar uma pequena âncora na vastidão daquela estranheza.
Enquanto o sono o envolvia em seu véu incerto, uma memória emergiu, não das Terras de Anhangá com seus horrores sussurrados, mas de um tempo mais sereno, das histórias de Einar. Uma tribo, que seu mentor mencionara apenas uma vez, num tom solene e quase reverente: a Tribo da Floresta Eterna.
— Será que eles ainda existem? — murmurou para si, sentindo o eco das palavras reverberar em sua mente cansada, uma pergunta lançada à escuridão. O pensamento persistiu, misturando-se com o sussurro do vento nas folhas secas acima, um vento que parecia carregar mais lamentos do que canções. A Tribo, segundo Einar, era guardiã de segredos antigos, vivendo em harmonia com espíritos que protegiam as árvores e o solo sagrado de um lugar chamado Coração de Ananí, um santuário que resistia à corrupção do mundo. Eram mais que lendas, ele dissera; eram sobreviventes de um tempo em que o mundo ainda não havia sido dilacerado pela destruição, uma chama de sabedoria ancestral em um mundo de esquecimento.
Um ruído suave interrompeu o silêncio de seus pensamentos, um farfalhar delicado logo acima de sua cabeça. Jatyr abriu os olhos, o corpo instantaneamente alerta, mas não havia sinal de perigo iminente. Apenas uma folha, singular e estranhamente luminosa, caía suavemente, girando no ar como uma pena esmeralda, até pousar ao seu lado. Ele a pegou com curiosidade. Não era como nenhuma folha que ele já tivesse visto. Seu verde era profundo, quase sobrenatural, com veios que pareciam brilhar com uma luz própria muito fraca, e, ao tocá-la, sentiu uma leve e rítmica pulsação em seus dedos, como se um pequeno coração batesse dentro dela.
Ele franziu o cenho. Aquilo não era uma folha comum, nem mesmo entre as árvores mais saudáveis de Mãe Yaci. Era como se aquela folha fosse um mundo em si mesma, um fragmento de vida que continha tanto a resiliência da floresta que ele conhecia quanto a estranheza da fronteira em que se encontrava – uma fusão, talvez, da pureza de Mãe Yaci com a energia anômala das Terras de Anhangá, um ecossistema em miniatura lutando para existir no limiar da corrupção. Mesmo ao guardá-la com cuidado em um dos pequenos bolsos de sua vestimenta, sentia um calor sutil emanando dela, e a pulsação, embora abafada pelo couro, persistia fracamente contra sua pele. Jatyr decidiu continuar com aquilo em mente. Não sabia o que significava, mas sentia que era importante. Talvez fosse um presságio, um sinal dos espíritos. Ou talvez, apenas uma peculiaridade daquelas terras onde a vida e a morte dançavam uma estranha e perigosa ciranda.
De qualquer forma, ele sabia que, ao amanhecer, atravessaria a fronteira para o desconhecido, deixando para trás o mundo que conhecia, e pela primeira vez entraria de vez naquelas terras.
Quando finalmente se deitou em seu abrigo improvisado, o sono novamente veio lentamente, pesado pelas incertezas e pela estranha pulsação da folha esmeralda que guardara. A imagem de Einar, as palavras sobre a Tribo da Floresta Eterna, e a energia sutil da folha ainda ecoavam em sua mente.
— Talvez eles tenham as respostas que procuro… — murmurou, antes de se entregar ao sono.
No dia seguinte, Jatyr despertou no topo da árvore, os primeiros raios de luz filtrando-se fracamente pelas nuvens densas que encobriam o céu. O amanhecer trouxe consigo uma sensação de inquietação, como se o próprio mundo ao seu redor estivesse sussurrando advertências silenciosas. Ele se levantou lentamente, os músculos ainda rígidos e doloridos após uma noite desconfortável em um leito precário.
Ao olhar ao redor, para a linha que separava a familiaridade de Mãe Yaci daquele novo e ameaçador território, percebeu que as folhas das árvores fronteiriças, do lado que ele ainda considerava seu lar, agora estavam esmaecidas, suas pontas amarelecidas e pendentes, como se tivessem adoecido da noite para o dia. O cheiro familiar da floresta viva fora substituído por um odor pungente e desagradável – o azedo da decomposição e da decadência que se infiltrava no ar. Até os sons da floresta estavam estranhamente diferentes, abafados e distantes, como se as árvores que morriam lentamente sugassem qualquer vestígio de vida e alegria do ambiente.
Jatyr sentou-se em um dos galhos mais grossos, os olhos fixos no horizonte carregado de nuvens. Aquele mundo parecia diferente de tudo que ele já havia conhecido, uma sombra do que Einar lhe ensinara a amar e respeitar.
Com cuidado, ele pegou a esfera metálica, que deixara estrategicamente posicionada para receber os primeiros e tímidos raios de sol que conseguiam romper a barreira de nuvens.
— Só mais um pouco… — murmurou, traçando os contornos lisos e frios da esfera com os dedos sujos de terra. Sabia que Echo, como a esfera se nomeara, ainda levaria alguns ciclos de sol para despertar completamente, mas a sensação de ter algo tão poderoso e, ainda assim, tão vulnerável e adormecido ao seu lado, trazia um desconforto silencioso, uma responsabilidade que ele não pedira, mas que não podia ignorar. Era como carregar uma resposta muda para uma pergunta que ele ainda não sabia formular.
Jatyr fechou os olhos por um instante, tentando acalmar a mente. Sabia que precisaria de mais do que suas habilidades de caça com o arco para sobreviver naquele território amaldiçoado.
“O arco é bom para a caça silenciosa, para a presa que foge,” pensou, lembrando-se talvez de um encontro anterior não detalhado nas bordas daquelas terras, onde uma criatura menor e mais ágil quase o alcançara antes que pudesse preparar uma segunda flecha. “Mas o que rasteja nestas sombras… o que grita na escuridão… exigirá mais do que uma flecha para ser mantido à distância.”
Precisaria de uma arma de maior alcance e impacto, algo para enfrentar o que quer que estivesse à espreita. Decidido, começou a vasculhar os arredores da árvore com o olhar, buscando o material certo. Descendo cautelosamente, ele se movia com a destreza de quem passou a vida nas florestas, mas agora com um novo nível de atenção, cada sentido aguçado para o perigo.
Após algum tempo de busca, encontrou o que precisava: um galho de Bacuri-bravo, uma madeira grossa, mas surpreendentemente flexível e resistente, adequada ao que tinha em mente. Jatyr passou a mão pela madeira, sentindo sua textura. Não era perfeita, mas serviria.
De sua mochila surrada, retirou com cuidado um objeto envolto em um pedaço de pele de anta: a ponta enegrecida e parcialmente queimada de sua antiga lança, aquela que Einar o ajudara a fazer e que fora perdida no incêndio de Mãe Yaci. O fogo a danificara, mas a obsidiana afiada ainda mantinha seu gume mortal.
Com o galho em uma mão e a ponta da lança na outra, voltou ao seu abrigo improvisado e começou a trabalhar. A lâmina de sua faca de osso deslizava pela madeira do Bacuri-bravo, e cada corte, cada lasca que caía, trazia à tona memórias de Einar e suas lições sobre estar sempre preparado, sobre como a floresta oferecia tudo o que um guerreiro precisava, se ele soubesse olhar e respeitar.
Enquanto entalhava a haste, seus sentidos permaneciam alerta, os ouvidos atentos ao menor ruído suspeito, os olhos varrendo constantemente as sombras ao redor. O trabalho era meticuloso e lento, mas necessário. Com fibras resistentes de cipó-titica, prendeu firmemente a ponta de obsidiana à haste de madeira, testando sua firmeza, seu equilíbrio.
A nova lança tomou forma, sua ponta de obsidiana brilhando com uma promessa sombria. Aquela arma não era apenas uma ferramenta de sobrevivência; era um símbolo de sua determinação, de sua recusa em se render, sua luta silenciosa contra as sombras que o cercavam e que ameaçavam engolir tudo o que ele conhecia.
As histórias que ouvira a vida toda, sussurradas por Einar ao redor da fogueira, sobre criaturas que ganhavam vida nas profundezas das lendas, sobre bestas que espreitavam onde a luz do sol não ousava tocar, agora pareciam mais reais do que nunca, ecoando no silêncio opressor daquela floresta adoecida.
Jatyr ergueu a lança recém-entalhada, sentindo seu peso e equilíbrio na mão. A madeira do Bacuri-bravo flexionou levemente, mas manteve sua firmeza, a ponta de obsidiana brilhando com uma promessa sombria. Satisfeito, apoiou a arma contra o tronco da árvore e começou a reorganizar seus poucos equipamentos: a mochila com o livro e a esfera adormecida, seu arco e a aljava com as flechas que precisariam ser reabastecidas em breve. Suas mãos se moviam de forma automática, amarrando provisões e ajustando as tiras de couro, mas sua mente vagava longe, entre as lembranças de Einar e a crescente apreensão que emanava daquele lugar.
De repente, um som rasgou o ar pesado, agudo e cortante, quebrando o silêncio mortal. A princípio, Jatyr pensou que fosse o vento, mas o som ecoou novamente, mais próximo, mais claro — era um assobio lancinante, como o da lendária Rasga-Mortalha, mas que se quebrava em um lamento gutural e profundo, ecoando a tristeza ancestral do Urutau. Era diferente de qualquer grito de animal que ele conhecesse, uma nota de angústia que parecia carregar a própria tristeza daquela terra devastada.
Seu corpo enrijeceu instantaneamente, cada músculo tenso, os sentidos em alerta máximo. Ele ergueu os olhos para o céu cinzento e opressor. Algo se movia entre as copas das árvores mais distantes, um vulto escuro contra a luz fraca. O som veio de novo, um chamado que arrepiava a pele.
Então, uma sombra colossal cruzou o horizonte, vasta e rápida, obscurecendo por um instante a pouca luz que se filtrava pelas nuvens. Jatyr sentiu o estômago revirar, um medo primordial tomando conta de si. Aquilo não era uma ave comum, nem mesmo o maior dos gaviões-reais que ele já vira caçando sobre Mãe Yaci. O que quer que fosse, era imensamente maior e mais poderoso do que qualquer criatura alada que ele já havia visto ou imaginado.
Com a lança recém-entalhada em uma mão e o arco e a aljava presos às costas, Jatyr começou a caminhar, o coração ainda um tambor descompassado no peito. Ele se movia na direção do lamento distorcido, cada passo fazendo o chão sob seus pés parecer mais traiçoeiro, como se o terreno estivesse vivo e tentando derrubá-lo. Sentia as sombras ao seu redor se fechando, cada vez mais densas e ameaçadoras, mas sua vontade, forjada na perda e na necessidade, o empurrava adiante.
Conforme avançava, ruínas de antigas construções começaram a surgir em meio à floresta moribunda. Blocos de pedra cinza, cobertos por um limo escuro e escorregadio, com inscrições desgastadas pelo tempo, jaziam sem vida ao longo do caminho, vestígios de uma civilização há muito desaparecida, palavras de um povo esquecido que ele não podia ler. Lembrou-se de algumas histórias de Einar, contadas em noites de tempestade, que falavam que quando os deuses partiram para o novo mundo, o antigo ficou em ruínas, um cemitério de glórias passadas. Agora, o amanhecer não trazia mais a promessa de vida, e as poucas aves noturnas que ainda ousavam cantar pareciam lamentar o que restara da outrora vibrante floresta.
“Será que um novo mundo ainda é possível,” murmurou Jatyr, a voz um sopro no silêncio opressor, “ou tudo está perdido, devorado pelas sombras?”
E então, o grito veio novamente. Mais próximo desta vez. Inconfundível. Algo estava vindo.
Ele olhou para a esfera metálica presa em seu cinto, ainda escura e silenciosa.
— Ouça, Esfera… — murmurou, a necessidade de verbalizar seus pensamentos uma forma de afastar a solidão esmagadora. — Deve ser o lamento do pássaro da noite. Mas um pássaro que chora como se carregasse o peso de toda a dor deste lugar. — O som vibrava em sua alma, um eco de sua própria perda. — Cada passo que dou, esta floresta parece mais um túmulo… como se as sombras ao meu redor quisessem me consumir.
Ele observou as poucas flores que ainda ousavam brotar entre as raízes retorcidas das árvores mortas. Eram pálidas, cinzentas, suas pétalas murchas e caídas como sonhos esquecidos.
— Quando olho para elas, é como se todo o conforto, toda a cor, tivesse sido arrancado deste mundo, — continuou, o olhar perdido na desolação. — As flores caem, como se suplicassem aos deuses por um toque de vida, mas eles se foram… não há mais quem ouça seus lamentos silenciosos. — Jatyr apertou o amuleto em seu pescoço, um gesto instintivo, uma prece silenciosa à Mãe Yaci, mesmo sabendo que estava longe de seu abraço protetor. — Guie-me por entre essas sombras… não me deixe ser consumido por essa tristeza.
À medida que Jatyr avançava, a prece ainda ecoando em seu coração, as Terras de Anhangá se revelavam em sua distorção total. As árvores eram esqueletos retorcidos, com galhos curvados e estendidos como garras desesperadas tentando alcançar um céu que nunca lhes responderia. A vida ao redor era quase inexistente, e os poucos sinais que restavam eram inquietantes, sussurros de uma natureza profanada.
Jatyr cruzava por carcaças apodrecendo ao longo dos caminhos, como advertências silenciosas deixadas por um predador invisível. Ossos brancos e frágeis de pequenos animais se empilhavam em montes improvisados, cobertos por uma vegetação escurecida e pegajosa, e insetos de cores doentias se moviam devagar sobre eles, como se até eles estivessem sendo drenados pela decadência ao redor.
O ar era pesado, saturado pelo odor acre de decomposição e sangue coagulado, um sinal claro de que algo poderoso e faminto dominava aquele território. Cada passo que ele dava parecia ecoar mais alto do que o normal na quietude mortal, o som reverberando por quilômetros na floresta fantasma. Jatyr, acostumado ao burburinho constante das florestas vibrantes de Mãe Yaci, agora se sentia como se estivesse caminhando por um cemitério a céu aberto.
Então, o silêncio opressor foi brutalmente rompido novamente. O som que a criatura emitiu era algo que Jatyr nunca havia escutado antes — um lamento gutural misturado com um assobio estridente e agudo, algo que parecia à beira da morte, mas ainda vivo o bastante para instilar um medo profundo. Era como se o vento trouxesse o grito de almas perdidas, um som que penetrava seus ossos e fazia seu sangue gelar. O grito cortava o ar, mas ao mesmo tempo, carregava uma melodia triste, quase hipnótica.
Jatyr parou bruscamente, seus sentidos em alerta máximo, o corpo tenso como a corda de seu arco. Olhou ao redor, tentando localizar a origem do som, mas só viu sombras se esgueirando furtivamente entre os galhos altos e retorcidos das árvores esqueléticas.
O grito soou novamente, desta vez inconfundivelmente mais perto. Jatyr levantou os olhos e, por entre as frestas dos galhos que formavam uma grade contra o céu cinzento, viu algo se mover – não no chão, mas acima, entre as copas mais altas e o céu opressor.
Sombras de asas gigantescas cortaram a pouca luz que conseguia romper as nuvens densas, um piscar fugaz de escuridão contra o cinza. Jatyr apertou o cabo de sua lança improvisada, sentindo a madeira áspera que oferecia uma sensação mínima e quase irrisória de segurança diante do que pressentia. Ele sabia, com a certeza gelada que precede os grandes perigos, que aquilo não seria suficiente. A criatura que o espreitava não era comum.
Respirou fundo, tentando conter a adrenalina que subia como uma maré em seu sangue, afiando seus sentidos, mas também trazendo o espectro do medo. A ameaça era quase tangível agora. O ar ao redor pareceu congelar, tornando-se denso e carregado com uma eletricidade silenciosa, como o momento de quietude que antecede o estouro da tempestade.
Então, um som distinto quebrou o silêncio tenso — o bater poderoso de asas enormes, um fuum-fuum grave e profundo, seguido por um deslocamento de vento que agitou as árvores mortas abaixo, fazendo seus galhos estalarem como ossos secos.
Jatyr ergueu os olhos rapidamente e, desta vez, viu claramente a criatura que o caçava. Do céu opressivo, como se materializando das próprias nuvens carregadas, uma criatura colossal emergiu, soltando outro grito que reverberava pela floresta morta – uma sinfonia aterradora do assobio da Rasga-Mortalha, o lamento do Urutau e a fúria penetrante de uma Harpia-Real em seu mergulho final.
Suas asas, largas e escuras como uma noite sem lua, batiam com uma força impressionante, movendo o ar com uma violência que parecia sobrenatural. A plumagem, uma mescla de um negro profundo e um prateado doentio, parecia ondular e se transformar ao contato com a luz escassa, como se carregasse consigo as sombras do próprio céu e o brilho pálido de ossos expostos. Seus olhos, incandescentes em um vermelho profundo e febril, ardiam como brasas vivas na penumbra, fixos em Jatyr. As garras, curvas e afiadas como as foices da morte, pendiam de patas poderosas, prontas para dilacerar qualquer coisa que se colocasse em seu caminho.
A criatura pairava acima de Jatyr como um espectro alado, suas asas abertas em um arco ameaçador, cada movimento gerando redemoinhos de vento e a poeira cinzenta do solo. Jatyr sabia que não tinha muito tempo. Aquele ser, um predador natural daquelas terras distorcidas, adaptado à morte e à decadência, o havia encontrado.
— “Einar sempre dizia que o medo é só uma sombra… mas e quando a sombra tem garras e um grito que gela a alma?” — pensou Jatyr, seus dedos apertando o cabo da lança com uma força que fazia os nós dos dedos embranquecerem. O coração batia acelerado contra suas costelas, mas sua mente, por um estranho paradoxo, estava estranhamente calma, focada, como se uma parte dele já soubesse que esse momento chegaria.
— “E se eu não estiver pronto? E se isso for só o começo do que estas terras guardam?”
A criatura não atacou imediatamente. Parecia estudá-lo, seus olhos flamejantes fixos nele como se pudessem ver além da carne, além da coragem aparente, até o cerne de seus medos mais profundos. Jatyr sentiu um frio percorrer sua espinha, mas não desviou o olhar. Ele sabia, com a certeza de quem já enfrentara a morte de perto, que virar as costas seria o fim.
— Eu não vou fugir, — sussurrou para si mesmo, as palavras um desafio frágil contra o poder esmagador da criatura, como se tentasse dar força a si mesmo. — “Eu não posso ser mais aquele garoto assustado que sempre foge. Eu sobrevivi até aqui. Eu vou sobreviver a isso.”
Mas, no fundo, uma dúvida persistia, fria e cortante como o vento da desolação. “E se não for o suficiente?”
O vento uivou ao seu redor, um lamento que parecia vir das próprias árvores mortas, carregando consigo um sussurro que parecia vir das próprias sombras, da terra doente sob seus pés. Jatyr não sabia se era sua imaginação ou se as Terras de Anhangá estavam realmente falando com ele, com a voz da própria desolação.
A criatura alada inclinou a cabeça, como se ouvisse o mesmo sussurro, e então abriu as asas em toda a sua envergadura aterradora, cobrindo o pouco que restava do céu pálido. Naquele momento, Jatyr entendeu que não estava apenas lutando contra um animal selvagem adaptado àquele ambiente hostil. Ele estava lutando agora com um verdadeiro ser das Terras de Anhangá — um lugar onde o medo tinha forma, onde a escuridão respirava e onde cada passo adiante era uma aposta contra o desconhecido absoluto. Aquela criatura era apenas o mensageiro de algo muito maior, algo que ele ainda não podia compreender.
E, enquanto o vento levava seus sussurros para longe, Jatyr percebeu que, talvez, a verdadeira batalha ainda nem tivesse começado.
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