Capítulo 37: Varrendo as Missões (2/3)

Ainda era de madrugada, mas a praça do primeiro andar da Zona Neutra continuava lotada de pessoas. Desde que as classes de todos haviam Despertado, as missões se tornaram muito mais viáveis. Consequentemente, a taxa de sobrevivência também melhorou consideravelmente.

Antes do Despertar, poucos se arriscavam a tentar missões de dificuldade Normal. Mas agora, desde que a composição do grupo fosse bem planejada, essas missões podiam ser concluídas sem grandes riscos. Até circulavam rumores de que um grupo havia conseguido completar com sucesso uma missão de dificuldade Difícil.

Havia três fatores motivadores que levavam os sobreviventes a se tornarem mais proativos.

Eram eles: concluir mais missões, ganhar mais pontos de Sobrevivência e, então, comprar habilidades ou equipamentos melhores. Todos podiam ver que ficavam visivelmente mais fortes ao gastar seus PS, o que levava os sobreviventes a se imergirem completamente nas missões.

Podia-se dizer que isso era como a famosa fita de Möbius; Cinzia acertou em cheio nessa estratégia.

— Huaaam…

Um homem sentado na área do saguão do primeiro andar abriu a boca e soltou um longo bocejo. Ele lambeu os lábios e analisou os arredores como se estivesse esperando por alguém.

Ele ergueu levemente a cabeça ao ouvir passos firmes se aproximando. Seus olhos se arregalaram um pouco em antecipação ao olhar para a escadaria. Mas sua curiosidade durou apenas um breve momento. Ele apoiou o queixo no cotovelo e observou sem interesse a pessoa que descia as escadas.

Era um jovem segurando uma lança. Todos sabiam quem ele era. O sobrevivente que ocupava o primeiro lugar e que monopolizou os holofotes depois de completar sozinho uma missão de dificuldade Difícil.

Claro, isso era no passado. Já se passaram dois meses desde então, e agora, as pessoas não o viam mais como alguém especial.

As ações do jovem com a lança não faziam muito sentido. Ele não realizava nenhuma missão de verdade. Apenas repetia as mesmas missões básicas de treinamento que não rendiam recompensa alguma. Era natural que todos achassem seu comportamento estranho.

Muitos rumores circularam sobre ele e suas maneiras inexplicáveis, mas até isso durou pouco antes de desaparecer completamente. Como ele não atrapalhava ninguém, as pessoas perderam o interesse. Somando ao fato de que já tinha muitos pontos de Sobrevivência desde o início, parecia que ele não tinha motivo algum para fazer qualquer outra coisa.

Os pensamentos do homem no saguão chegaram a essa conclusão, e ele desviou sua atenção por completo.

“O que há de divertido em correr o tempo todo, afinal? …Hm?”

O homem no saguão percebeu de repente uma pequena mudança no comportamento do jovem naquele dia.

Normalmente, ele rasgava o pergaminho da missão de corrida assim que chegava à praça e desaparecia de vista. No entanto, por algum motivo, ele estava parado em frente ao quadro de avisos há um tempo. E o lugar onde estava também era um pouco diferente do normal.

Ele finalmente escolheu um pergaminho e o rasgou com cautela. No segundo seguinte, desapareceu.

“A missão de corrida não fica nessa parte do quadro, fica…?”

Será?

O homem no saguão se levantou. Seus olhos não se desviaram do exato lugar onde o jovem estava antes, e ele correu para lá como se tivesse criado asas.

“Ele pegou esta aqui.”

Na segunda fileira de baixo, no canto direito — o homem pegou o pergaminho da missão e leu.

As sobrancelhas do homem se franziram ao ler os detalhes da missão.

O local onde Seol apareceu era uma selva repleta de vinhas retorcidas e enormes árvores que bloqueavam o céu acima.

Ele puxou um pequeno saquinho de sua bolsa. Ergueu-o sobre a cabeça e o sacudiu, fazendo com que um pó rosado se espalhasse pelo ar.

O nome do saquinho era Cheiro de Carne. Vendido nas lojas da Zona Neutra, seu efeito era atrair monstros. Foi uma das coisas que Agnes recomendou que ele comprasse.

A questão era que, em missões onde o objetivo era Sobreviver na Natureza, era na verdade mais rápido matar todas as feras e monstros da área da missão do que tentar evitá-los pelo tempo limite de duas horas ou qualquer que fosse o prazo.

Excluindo missões que não envolviam combate, como Encontre o Caminho Correto ou Escape do Labirinto, Seol planejava ao menos tentar todas as missões disponíveis no quadro. Então, esse Cheiro de Carne era um item indispensável se ele queria acelerar o processo de conclusão.

Enquanto esperava, Seol esvaziou um frasco de Competência garganta abaixo. Os que comprou na loja VIP já haviam acabado, então ele comprou um novo lote na loja comum. Ele pensava que um aumento de quatro vezes na eficiência do treinamento era certamente melhor do que não ter nada.

Os Cães-Macacos possuíam um olfato altamente desenvolvido, então não demorariam a chegar até Seol. Como esperado, o som de arbustos se agitando logo começou a ecoar em seus ouvidos.

O barulho vinha do seu lado; Seol descartou o frasco e segurou firmemente sua lança. A vegetação se agitou suavemente algumas vezes antes que dois Cães-Macacos emergissem lentamente da mata.

Cobertos inteiramente por uma pelagem negra, os monstros tinham um porte grande e musculoso. Não apenas seus quatro membros, mas todo o corpo era robusto e definido por músculos ondulantes. Eles lembravam gorilas, mas um pouco menores, com a diferença mais marcante sendo seus focinhos caninos.

Um dos dois Cães-Macacos se posicionou diretamente à frente de Seol. O outro começou a se mover lentamente para o lado, circulando em sentido anti-horário, como se estivesse tentando atrair sua atenção.

Seol engoliu em seco enquanto mantinha os olhos nos monstros. Sua garganta estava seca, e gotas de suor escorriam por sua testa. Ele não sentiu medo ao enfrentar dezenas de esqueletos, mas agora, diante de apenas dois monstros semelhantes a cães, seu corpo estava completamente tenso. Era uma mudança notável em sua mentalidade em comparação a dois meses atrás.

Mesmo sentindo essa ansiedade sufocante, sua mente continuava funcionando. A mana que circulava por seu corpo fluía para a lança ao mesmo tempo, fazendo a arma vibrar suavemente em suas mãos.

“Devo esperar que eles ataquem primeiro?”

“Não, não devo.”

Se ficasse parado, as duas criaturas logo se posicionariam de forma a atacá-lo dos dois lados, o que significaria enfrentar inimigos à sua frente e atrás ao mesmo tempo. Nesse caso, era melhor…

“O primeiro a atacar vence a batalha.”

No instante em que ele mirou com a lança, o Cão-Macaco que caminhava lentamente parou no lugar.

Pouco antes de se mover, Seol regulou sua respiração.

Era tão difícil assim dar o primeiro passo? Ele ficou surpreso consigo mesmo.

Seol nem estava pensando em travar uma batalha espetacular, como as que presenciou inúmeras vezes em seus sonhos. Não, ele só queria lutar de acordo com o treinamento que recebeu até agora.

“Vamos lá.”

Ele já estava na postura correta. Seu olhar ficou afiado.

No momento em que decidiu agir, sua perna esquerda se impulsionou com força contra o chão, enquanto ele estendia os braços. O Cão-Macaco rapidamente saltou para o lado e avançou ferozmente. O monstro estava atento à lança.

Com esse ângulo, a lança erraria o alvo, sem dúvida. Mas Seol não estava parado esperando. Assim que viu o monstro desviar para o lado, ele ajustou o aperto na lança.

O ataque mudou de Estocada para Corte.

A ponta da lança, que avançava em linha reta, traçou um arco afiado e passou pela garganta do Cão-Macaco. A sensação era como cortar um bloco endurecido de tofu. Ao ver o sangue jorrar do ferimento, Seol saltou para trás rapidamente; garras que tentavam emboscá-lo passaram raspando por sua cintura.

O ataque surpresa do segundo Cão-Macaco falhou por um fio de cabelo; o monstro deslizou pelo chão e girou o corpo como se fosse um mestre do drift, deixando marcas de garras na terra. Mas, quando tentou olhar para o humano, uma ponta afiada já estava cravada em sua cabeça. A lança se enterrou profundamente no cérebro do monstro. O corpo do Cão-Macaco estremeceu antes de desabar.

Seol cuidou de dois Cães-Macacos num piscar de olhos, mas ainda não tinha terminado. Ele puxou a lança, agora pingando sangue, girou o corpo como uma roda e desferiu um golpe.

“Golpe!”

Slam!

A boca escancarada do último Cão-Macaco, que avançava para mordê-lo pelas costas, jorrou sangue como uma fonte. A criatura girou no ar algumas vezes antes de cair de cabeça no chão com um baque pesado. Seu corpo se contorceu como uma minhoca agonizante antes de finalmente ficar imóvel. Seol olhou para o monstro morto com uma expressão atônita.

Ele já suspeitava que o terceiro Cão-Macaco estivesse escondido. Como no pergaminho da missão dizia que eram três, isso era esperado.

O que realmente o surpreendeu, no entanto, foi seu próprio poder de ataque inesperadamente alto.

Para uma batalha que o deixou tão apreensivo, tudo terminou de maneira quase insignificante. No momento, ele não pôde deixar de achar isso engraçado, lembrando-se de como teve que se forçar a dar o primeiro passo.

“E eles nem pareciam tão fracos assim.”

Antes que percebesse, o ambiente ao seu redor mudou.

Foi uma vitória digna de ser chamada de perfeita, mas Seol não se sentia nem um pouco satisfeito com isso.

“Havia necessidade de recuar e depois atacar?”

Ele revisou a batalha em sua mente, passo a passo.

“Quando mudei de Estocada para Corte… Eu poderia ter eliminado os dois ao mesmo tempo.”

Agnes disse que essas missões também eram uma forma de treinamento. Apenas o treino de técnicas básicas não poderia preencher certas lacunas, ela disse. Agora era hora de passar por diferentes situações de combate e ganhar experiência valiosa, ela também disse. Os pontos de Sobrevivência ganhos seriam apenas um bônus, ela acrescentou.

“Mais uma vez.”

Com um sorriso animado no rosto, Seol pegou o último pergaminho restante da missão e o rasgou ao meio.

Finalmente, a ignição foi acionada.

Atualmente, o sobrevivente que detinha a maior influência na Zona Neutra era, sem dúvida, Odelette Delphine. Ela não só era uma das mais cobiçadas detentoras da classe ‘Maga’, mas seus PS iniciais de 7500 também lhe conferiu uma espécie de par de asas para alcançar grandes alturas.

Ela comprou várias habilidades e equipamentos assim que seu Despertar foi concluído. Logo, ela se viu elevada ao status de mais falada na Zona Neutra. Talvez, para combinar com sua personalidade, ela optou por formar seu próprio grupo, ao invés de entrar no grupo de outra pessoa.

A sobrevivente da mesma área que ela, Leorda Salvatore, e o Hao Win da área 7 entraram para o seu grupo. O que significava que chamá-los de grupo líder dentro da Zona Neutra não era exagero. Era um fato.

— Quem?

— Aquele homem. O de rank mais alto.

Odelette Delphine olhava para o usualmente excitado Leorda com um olhar curioso. O que poderia ter agitado o normalmente calado detentor da classe Arqueiro assim?

— Ah… Será que desde ontem? Ouvi dizer que ele começou a fazer as missões novamente.

— Mas isso é…

— Não é algo bom, então?

— …Desculpe?

— Eu já esperava que ele começasse a se mover em breve… De qualquer forma, eu mesma vou falar com ele. Aquele homem… Honestamente, ele era a pessoa número um que eu queria recrutar, sabia?

Leorda só conseguia sentir uma frustração crescente enquanto ouvia os planos de futuro brilhante vindos dessa ainda-ingênua garota adolescente, que ainda não tinha entendido o que estava acontecendo.

— Esse não é o ponto aqui.

— …? Então, qual é?

— Dois dias atrás, todas as missões Fácil e Razoavelmente Fácil sumiram do quadro. Desapareceram. Aquele homem as completou todas. Sozinho.

— Humm…

Hao Win murmurou entre uma baforada de cigarro enquanto se recostava na cadeira, com os pés sobre a mesa. Ele parecia sugerir que não havia motivo para fazer tanto alarde.

Havia um total de 9 níveis de dificuldade nas missões.

Básico.

Muito fácil, Fácil e Razoavelmente Fácil.

Normal.

Levemente Difícil, Difícil e Muito Difícil.

E finalmente, Impossível.

As tentativas restantes para as missões classificadas como Muito Fácil, Fácil e Razoavelmente Fácil já estavam praticamente todas consumidas, devido aos sobreviventes terem corrido para completá-las durante o primeiro mês de estadia na Zona Neutra. Sem contar que o número de tentativas era baixo desde o início, então era inevitável que desaparecessem completamente mais cedo ou mais tarde.

Após o Despertar das suas classes, os sobreviventes estavam agora se concentrando em missões de dificuldade Normal e Levemente difícil. No entanto, isso ainda estava aceitável, pois o número de tentativas foi dramaticamente aumentado para coincidir com o Despertar.

O número de tentativas disponíveis para o próximo nível de dificuldade era muito menor em comparação. Claro, os grupos tentando missões Difícil eram bem escassos.

Não, o verdadeiro problema era…

— Veja, um terço das missões Normais desapareceram também desde ontem à noite.

— …O quê?

Os olhos de Odelette Delphine se arregalaram. Se era ontem à noite, ela estava no meio de tentar completar uma missão Difícil com seu grupo.

— Não é só isso. Eu pessoalmente fui lá e confirmei… Até as missões Levemente Difícil estão sumindo a uma velocidade alarmante.

— O que você disse?!

Hao Win teve que abaixar os pés e se sentar direito.

— Eu não te falei isso? A praça inteira está em alvoroço.

— Vamos lá.

— Vamos dar uma olhada!

O homem e a garota se levantaram simultaneamente de seus lugares.

Odelette Delphine correu para o primeiro andar, apenas para se deparar com um espetáculo que ela não entendeu imediatamente.

Dezenas de sobreviventes estavam cercando um homem enquanto sussurravam entre si. No meio da multidão, Seol estava ocupado rasgando um pedaço de papel ao meio.

— O que está acontecendo…?

Odelette Delphine ficou aflita ao ver Seol desaparecer. Ela estava prestes a empurrar as pessoas que bloqueavam a passagem e correr até o quadro de avisos, quando parou de repente.

— O quê…?!

A adolescente não pôde deixar de exclamar em choque ao ver Seol reaparecer na praça.

Foi cerca de um minuto? Definitivamente não mais do que dois minutos… Ela até sentiu um certo medo ao ver o rosto impassível dele enquanto ele caminhava até o quadro e rasgava outro pergaminho.

“O que ele escolheu?”

Quando Seol desapareceu novamente, ela correu até o quadro.

— Acabei de ouvir que essa é a sexta vez que ele está fazendo essa missão.

Leorda estava ao seu lado antes que ela tivesse a chance de perceber. Ele balançou a cabeça enquanto uma risada amarga escapava de sua boca.

Delphine contou mentalmente, “Um, dois, três, quatro…” Quando chegou a 57, Seol retornou à praça. O jovem então escolheu outra missão.

Raramente ele tentava uma missão apenas uma vez; na maioria das vezes, repetia duas ou três vezes antes de seguir em frente. Algumas missões, ele tentou bem mais de cinco vezes.

Antes que percebesse, até Odelette Delphine se tornou uma das espectadoras atônitas. Em apenas 20 minutos, ouviu o som de pergaminhos sendo rasgados mais doze vezes. Cada missão era relacionada a combate. De qualquer forma que se olhasse, Seol estava concluindo cada missão em um ritmo assustador.

Dois homens observando do saguão só puderam estalar a língua em espanto.

— Uau… Isso é sequer humanamente possível?

— Não sei. Mas olha só, ele fez de novo.

— Que inveja, ser um Selo de Ouro e tudo mais.

— Hah. E eu aqui me perguntando por que ele não fez nada até agora. Parece que tudo é brincadeira para ele, não?

Selo de Ouro? Brincadeira?

Agnes bufou em desprezo ao ouvir do canto do saguão.

“Bando de tolos.”

Esses dois nunca enxergariam a verdade, nem se fossem enviados para o inferno e voltassem. Enquanto caíam na armadilha de Cinzia e se concentravam em concluir missões, apenas Seol teve que suportar um regime de treinamento implacável.

Seol não queria completar missões e ganhar PS? Claro que queria. Ele queria muito. Mas ele simplesmente suportou. As habilidades e capacidades que acumulou nos últimos dois meses sem reclamar finalmente estavam dando frutos deliciosos agora.

Como se quisesse provar algo, Seol continuou a aparecer e desaparecer por um longo, longo tempo.

Um sorriso sutil e discreto flutuou nos lábios de Agnes.