Capítulo 21 - Conheça-te a prata
Em uma rua pavimentada com pedras negras, Jenny, Arielle, Helga e Rubi caminham lado a lado. Naquela região, as construções se resumem a casas simples, de um ou dois andares, em contraste com os grandes prédios e lojas do centro da cidade.
Há pouquíssimas pessoas transitando por aquela área. Ainda assim, enquanto Jenny, Arielle e Helga andam despreocupadas, Rubi segue de maneira cautelosa. Novamente, ela está usando um pano para esconder seu cabelo e seus chifres e tenta manter sua cauda sob controle.
“Pode ficar tranquila”, diz Arielle, tentando reduzir a inquietação de Rubi. “Aqui é bem deserto a essa hora.”
“Percebi. Já tem um tempo que eu não vejo ninguém na rua”, Rubi comenta. “O que seria exatamente essa região?”
“Aqui é onde moram pessoas que vêm de fora de Gramina. Tipo caçadores, aventureiros e guardas”, Jenny explica. “Normalmente, a essa hora, eles estão fora da cidade, trabalhando no centro ou pegando alguma missão.”
“Também podem estar dormindo”, Helga supõe. “Tem muita gente que caça à noite e dorme durante o dia. Esses são os mais mal-humorados e os piores de se trabalhar.”
“São todas casas de aluguel?”, pergunta Rubi.
“A maioria sim”, Jenny responde. “Porém, tem algumas pessoas que se acostumam tanto que compram as residências.”
“Só loucos fariam isso”, Helga comenta.
“Eu compraria a nossa casa se pudesse”, diz Arielle. “Eu gosto dela.”
“Como eu disse, só loucos fariam isso”, Helga pontua.
As garotas seguem por aquela região até pararem na casa onde o grupo de Jenny reside. A construção não difere das outras na mesma rua. As paredes são de pedra cinza, o telhado triangular é feito de madeira escura, e as portas e janelas são de uma madeira mais clara. Ao fundo, é possível ver uma borda do grande muro que cerca a cidade.
Jenny pega um molho de chaves de sua mochila e destranca a porta da frente. Bem devagar, ela abre a porta devagar e faz um sinal com a mão para as demais aguardarem. “Raquel?”, ela pergunta, chamando pela irmã, sem entrar na casa.
Nenhuma resposta é ouvida, deixando claro que o lugar está vazio. Vendo que está tudo tranquilo, Jenny dá o sinal e todas entram. E logo em seguida ela tranca a porta novamente.
O cômodo em que elas entram aparenta ser uma sala de estar. O piso é feito de pedras claras retangulares. As paredes internas são cinzas, iguais às externas. E além da entrada, há outras quatro portas na sala, três delas estão fechadas e a que está aberta leva ao que seria a cozinha.
Dentro da sala há um sofá recostado na parede, duas poltronas, sendo uma poltrona de cada lado do sofá.
Ao lado da porta de entrada estão presos cinco ganchos cabideiros feitos de ferro.
No meio da sala, há uma mesa de centro com um vaso de plantas em cima. E, preso na parede em frente à entrada, há um grande suporte para armas feito de madeira. Nele estão penduradas uma espada e um machado, também há um espaço para uma terceira arma que está desocupada.
Jenny, Arielle e Helga penduram suas mochilas nos ganchos e deixam suas armas e as outras coisas que carregavam no chão logo abaixo dos cabides.
Aliviada do peso de seus equipamentos, Jenny se encaminha para uma das poltronas e se senta. “Eu já estava cansada de ter que levar tanta coisa por aí”, diz ela, relaxada.
Arielle faz a mesma coisa e vai até o sofá. “Eu também”, ela diz, já deitada. “Não aguentava mais.”
“Vocês são muito moles”, diz Helga, inconformada com as outras duas. “Minha arma é mais pesada, eu carrego um escudo e ainda uso armadura de ferro.”
“Pra você é fácil, você é mais g…”, diz Arielle, porém acaba interrompendo a fala, percebendo o olhar intimidante que Helga começa a desferir. Pensando na própria segurança, a meia-elfa reavalia por um segundo a palavra com que vai concluir a frase. “Forte! Eu ia dizer mais forte.”
Helga gira os olhos e, sem falar nada, segue até a cozinha.
“Era melhor ter dito grande”, sugere Jenny.
Arielle, bate a mão na testa. “Droga! Grande. Eu devia ter falado grande”, ela diz, arrependida.
Enquanto isso, Rubi encara os objetos que mais chamam sua atenção no momento, as armas que estão no suporte. Tem algo diferente nelas, ela pensa, bastante interessada naqueles equipamentos. Elas parecem mais novas do que as armas da Jenny e da Helga, mas não é só isso. Tem algo a mais.
O machado possui duas lâminas prateadas e lustrosas, um pescoço de metal quase tão brilhante quanto as lâminas, e um cabo de couro preto. A espada, igualmente reluzente, tem uma guarda cruzada com detalhes dourados, um cabo de couro marrom e, no final, um pomo dourado que combina com a guarda.
Rubi encosta seu arco na parede, próximo às armas das meninas, tira o casaco das costas, pendura-o em um dos ganchos e, cheia de curiosidade, se aproxima do suporte. Ao se aproximar, percebe que seu reflexo nas lâminas da espada e do machado é tão nítido quanto o de um espelho.
“Tem alguma coisa especial nessas armas?”, ela pergunta.
Jenny, relaxada na poltrona, levanta a cabeça e olha para o suporte. “São de prata branca”, ela diz. “O machado é a Helga e a espada é minha.”
Interessante, Rubi pensa. Não me lembro desse tipo de material no HTO. Acho que nem de prata normal.
“Acho que a Raquel levou a dela”, Arielle ressalta. “Será que ela foi para o leste enfrentar o exército do Edric?”
“Antes, a ouvir dizer que não queria ir”, responde Jenny.
Helga volta da cozinha com uma maçã na mão. “E ela sabe que até chegar lá, de um jeito ou de outro, já teria acabado. Ela teria que ter partido há uns 10 dias”, diz ela, logo antes de morder um pedaço da maçã.
Rubi liga alguns pontos no diálogo das garotas. “Essas armas são para matar demônios?”, ela pergunta.
“Demônios, fantasmas, fadas, lobisomens. Esse tipo de coisa”, Helga responde com sua voz abafada por estar mastigando.
“Deveriam ter levado elas quando foram até as ruínas”, diz Rubi.
Helga encara Jenny como se a condenasse por algo. Ela engole o pedaço de maçã e diz enraivecida, “Eu disse para fazermos isso. Mas alguém disse que não era necessário.”
“Era só uma missão de verificar alguns lugares, não tinha como saber o que ia acontecer”, Jenny se justifica.
“E na teoria, elas só serviriam para, talvez, matar a Rubi”, Arielle pontua.
Um sentimento de alívio passa pela demônio. Ainda bem que não levaram, ela pensa. Se eu tivesse uma arma assim, levaria ela comigo quase o tempo todo, ao invés de uma arma comum.
“Elas são melhores ou piores do que as suas outras armas?”, Rubi pergunta, curiosa pela afirmação de Arielle. “Elas não seriam úteis contra os cultistas?”
“São melhores. Mas elas são pesadas, caras e, como não são mágicas, desgastam com facilidade”, Jenny explica. “Contra pessoas, elas são tão efetivas quanto nossas armas comuns. Só vale a pena levar se você souber que vai precisar.”
“E elas chamam muita atenção”, Helga pontua.
Isso faz sentido. Existe a variável da logística nesse mundo. Sem um inventário mágico, enorme, para guardar as coisas, é inviável sair levando muitos objetos por aí, Rubi analisa. Além de que, existe o risco de ser roubado. Até na época do jogo, alguns itens do jogador podiam ser roubados se ele morresse. Não era incomum que a pessoa com melhores itens equipados fosse a mais focada em uma emboscada. Imagino que por aqui seja a mesma coisa. Será que meus itens ainda são Soul Linked? Se bem que, não faz muita diferença, não vai ter ponto de renascimento para onde eu voltar. Os itens devem ficar onde eu cair morta. No máximo, vou evitar ser roubada.
“Aliás, na teoria, ferro fere alguns demônios também”, diz a meia-elfa. “Mas definitivamente não foi o seu caso.”
“Ainda doeu”, diz Rubi, lembrando-se daquele momento. “A prata branca é mais forte?”
“Prata é bem mais efetivo para expurgar espíritos”, diz Jenny.
“Ferro fere, e prata faz queimar”, Helga comenta.
A conversa sobre esses equipamentos, apenas atiça mais ainda a curiosidade de Rubi. Será que eu…, diz ela, elaborando uma teoria.
A demônio retira a luva esquerda e estende a mão,sem proteção, em direção à lâmina da espada. Hesitante em se ferir, Rubi para o movimento a poucos centímetros da arma.
“Vai mesmo tocar?”, Jenny pergunta em um misto de curiosidade e preocupação.
“Você vai se queimar”, Helga adverte.
“Talvez você não se queime”, Arielle supõe.
“Eu preciso saber”, diz Rubi. “Talvez eu precise lutar contra alguém que use prata.”
“Faz sentido”, diz Jenny, concordando. “Mas pode doer.”
Além disso…, Rubi pensa. Eu sempre tive um fraco por itens especiais. Não tem como eu ficar parada vendo algo novo aqui.
Rubi respira fundo e toca a espada com o dedo. As garotas permanecem ansiosas, aguardando a reação da demônio. Ela deixa o dedo no mesmo lugar por alguns segundos, depois leva os outros quarto e começa a tatear a espada em diferentes partes. “Está quente”, ela comenta.
“Muito quente?”, Jenny pergunta.
“Não muito. Quente como uma pedra que ficou sob o sol por algum tempo. Eu diria, bem morninho. Não chega a incomodar.”
Rubi leva a mão até a ponta da espada e pressiona, de leve, um de seus dedos contra ela. Ela retira o dedo e nota que a ponta da espada realmente furou seu dedo um pouco. “Acho que isso pode me machucar”, ela diz.
“Só isso?”, Helga pergunta, incrédula.
“Por que você parece decepcionada?”, Rubi pergunta.
“Ela ta assim porque seu dedo devia queimar a ponto de sair fumaça”, Arielle explica.
Rubi se espanta um pouco. “Eu não achei que devesse me queimar a esse ponto”, ela diz.
Não é um pouco cruel usar isso contra alguém?, ela se pergunta.
Jenny fica impressionada com a afirmação de Rubi. “Você é bem resistente”, ela afirma. Uma preocupação surge em sua mente. “Se prata branca é o mínimo necessário para causar danos a um Lorde Demônio, o pessoal que foi lutar contra os outros cinco vai ter problemas.”
“Tem gente muito forte por lá, se todos eles forem como a rosada aqui, não vão causar tantos problemas”, diz Helga.
“Mas, pelo que ouvimos, eles são bem perigosos”, diz Jenny.
“Rubi”, diz Arielle, chamando a atenção da demônio. “Os Lordes eram tão problemáticos?”
“Não”, ela responde. “Algo… mudou neles.” Algum pesar ressoa em sua voz. “Eles não deveriam ser agressivos assim.”
Eu sei que mudou, a demônio pensa, com preocupação. Da mesma forma que alguma coisa mudou em mim também. Não me sinto estranha, mas eu sei que estou diferente. E é isso que me preocupa. Sei que fiz muita coisa que jamais considerei fazer antes. E não tenho certeza se isso está acontecendo só pelas circunstâncias ou se muita coisa mudou em mim por ser demônio.
“Não se preocupe com eles”, diz Jenny, confortando Rubi. “Não tem o que você possa fazer quanto a isso.”
“É. Não tem”, Rubi concorda. “É só aceitar e ver onde dá.”
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