Capítulo 22 - Aceita a ti mesmo
Jenny sente o baixo astral de Rubi. “Bem, já chegamos e sentamos. Agora precisamos nos organizar”, ela fala, mudando de assunto. “Quem vai tomar banho primeiro? Não vou por agora.”
Arielle instantaneamente levanta a mão. “Eu vou!”, ela exclama. “Quero me limpar e ir dormir logo.”
“Pode ir então”, diz Jenny.
Arielle se levanta do sofá com um movimento preguiçoso, estalando as costas como uma velhinha. Ela caminha até um dos quartos com a porta fechada. Ao abrir a porta, um sorriso surge em seu rosto ao olhar para dentro. “Oi, dona cama. Só vim pegar umas coisas, mas daqui a pouco volto para colocarmos o sono em dia”, ela diz, antes de entrar no quarto.
Coitada. Ela deve estar exausta, pensa Rubi. A única vez que eu vi ela dormir foi na noite em que derrotamos o Edric.
“Eu vou por último”, diz Helga. “Vou limpar a minha armadura e meus outros equipamentos antes. Quero ver se eles precisam de reparo logo.”
“Bem, eu queria ir organizar o quarto e as mochilas”, diz Jenny, se virando para Rubi. “Pode usar o banheiro para se limpar e se arrumar depois da Arielle se quiser.”
“Eu vou aceitar. Obrigado.”
A demônio dá uma olhada em seus braços e pernas e passa a mão em seu cabelo, refletindo. Um banho não faria mal, pensa. Pelo que notei, não sai suor da minha pele, então não devo estar fedendo. Mas essa poeira da viagem não vai sair sozinha.
“Você é igual aos outros demônios daqui do sul. Sempre limpinhos, engomados e cheios de frescuras”, reclama Helga, enquanto pega os equipamentos que estão ao lado da porta de entrada. “Na minha terra, os demônios fedem e estão sempre sujos.”
“Credo”, diz a demônio de cabelo rosa, com repúdio. “Sei que fiquei esses dias sem uma higienização decente, mas não me imagino sendo esse tipo de demônio.”
“A maior parte do tempo, eles estão sujos de sangue”, Helga continua, ficando contemplativa por alguns instantes. “Até bateu uma saudade de casa.” Se levanta e leva as coisas que pegou até o mesmo quarto onde Arielle está.
Depois de alguns minutos, a meia-elfa sai de lá com toalhas brancas e um conjunto de roupas em sua mão e entra em um outro quarto.
Jenny, assim com Helga, também pega sua mochila na porta e vai para um dos cômodos começar seus afazeres.
Sem muito o que fazer, Rubi se senta no sofá e aguarda quieta. Ela ouve um barulho de água correndo saindo do quarto onde está a meia-elfa. Ali deve ser o banheiro, ela supõe.
Helga sai do quarto, sem armadura. Ela agora usa roupas leves, uma calça de couro claro e uma camisa de tecido bege. Seu cabelo castanho está solto, ele bate nos ombros. Em suas mãos estão suas armas e várias peças metálicas de sua armadura.
Rubi a olha com surpresa. Ela parece outra pessoa, ela pensa. Uma outra pessoa bem grande.
Helga se dirige à cozinha, onde deixa suas coisas sobre a mesa, puxa uma cadeira e começa a examinar os objetos peça por peça.
Rubi, de longe, observa a grande garota de cabelos castanhos verificar cada pequena parte de seus equipamentos. Ela se distrai por alguns momentos, até uma voz lhe chamar.
“Ei”, diz Jenny da porta de um quarto. Ela também está sem sua armadura e usa roupas casuais. Uma camisa branca com botões claros e uma calça de tecido preto. “Vem cá”, ela diz, chamando Rubi.
Rubi se levanta, vai até o quarto e entra. Nele há duas camas de solteiro, uma janela com vista para a parte de trás da casa, uma mesa de cabeceira ao lado de cada cama, um grande baú de madeira e um guarda-roupa com as portas abertas.
Pendurado na parede está outro suporte de armas. Nele há três espadas e uma lança. Diferentemente do suporte da sala, as armas guardadas nele não são novas nem lustrosas, são foscas e com o cabo desgastado.
Em outra parede, está um grande quadro emoldurado de um mapa que cobre uma grande faixa territorial. O papel amarronzado, os rabiscos e as rasuras indicam que ele é bem velho.
Dentro do guarda-roupa estão várias roupas dobradas e penduradas, a maioria é branca e algumas poucas coloridas.
Sobre uma das camas estão dobradas as roupas e o colete de couro que Jenny estava usando. E sobre a outra, está estendido um vestidinho branco.
“Vamos lavar nossas roupas depois que cada uma tomar banho”, diz Jenny. “Se quiser, podemos lavar as suas também.” Ela aponta para o vestidinho branco na cama. “Você pode usar aquilo, acho que deve servir.”
Até que ele é bonito, pensa Rubi. Minha roupa não está rasgada, mas está com fuligem, terra e um pouco de sangue.
“Minha roupa já viu dias melhores”, diz Rubi com um sorriso.
Jenny também ri. “Já viu sim”, ela comenta. “Ela aguentou bastante coisa.”
“Pode usar essa cama também”, diz Jenny, oferecendo a mesma cama onde está o vestido.
“Eu não acho que eu vá precisar por agora”, diz Rubi.
Desde que eu cheguei, ainda não senti sono algum, a demônio analisa. Arielle me disse que, por ser meio-elfa, consegue ficar até uns dois dias sem dormir, por isso ela é quem normalmente fica de guarda para as garotas. Imaginei que comigo seria a mesma coisa, só que já tem dias e nada de sono. Também não senti fome, sede e nem vontade de fazer necessidades. Talvez seja porque sou um bicho espiritual ou algo do tipo. Apesar disso, eu consegui comer, então, talvez eu também consiga dormir, mas não quero testar isso por agora. Tem outra coisa que me chama mais atenção.
Rubi aponta para o quadro na parede e pergunta, “Aquele mapa, é desse continente, não é?”
“Sim”, ela responde. “É boa parte de Eldoria.”
A demônio, interessada, se aproxima do mapa e começa a examiná-lo.
O papel ilustra diversas regiões. Ao sul, duas grandes florestas são separadas por uma estreita faixa de terra. No centro, há uma vasta região de planícies com bosques esparsos. No norte, uma cordilheira de montanhas se estende por quase metade do mapa, alcançando o leste, onde as montanhas começam a se espaçar, dando lugar a um clima árido. No noroeste, uma enorme e densa floresta domina a paisagem.
Rubi aponta para a marcação de uma cidade isolada no sudoeste das planícies. “Aqui é Gramina?”, pergunta ela.
Jenny se surpreende com a pergunta de Rubi. “Como você sabe?”, indaga.
Rubi esboça um sorriso confiante. “Mapas eu sei ler”, responde. “Reconheci porque tem algumas coisas parecidas com aquele outro mapa que indicava as ruínas. Mas não é exatamente igual, tem algumas coisas faltando,”
“Esse mapa só indica as cidades grandes e as estradas principais. Não tem tudo nele.”
A demônio volta a atenção ao mapa e se surpreende ao perceber o quão grande é a faixa de terra que aquele mapa representa. “Tem muitos países nessa parte?”, ela pergunta.
“Existem quatro reinos nesse mapa. O reino em que estamos se chama Pra’ados. É um reino com um rei humano, mas tem muita gente de outros lugares do continente por aqui.”
“Só quatro?”, pergunta Rubi em choque. “Eu pensei que a tal Cúpula dos Reinos era bem maior.”
“Você confundiu. Esse é só um pedaço de Eldoria”, diz Jenny. “A Cúpula seria algo como um conselho que reúne quase todos os reinos do continente como membro. Ela faz algumas legislações gerais para o continente.”
“Tipo, não declarar guerra ou não deixar demônios nas cidades?”
“Na verdade, é mais voltada para questões políticas e financeiras. A maioria dos reinos e países é independente e tem seus próprios problemas e religião. As políticas da Cúpula tentam evitar que essas disputas pessoais se espalhem e afetem outros países.”
“Seria como eu não gostar de você, mas não poder impedir que você faça negócios com outras pessoas? Ou não poder destruir seu país se isso acabar destruindo um país vizinho no processo?”
Jenny pensa na analogia de Rubi por um momento. “É exatamente isso”, confirma.
“Onde entra a Cremea nisso?”, pergunta Rubi.
“Ela é uma organização independente com sede nos quatro reinos deste mapa. Esses são os que têm a melhor relação entre si, muito por conta da guerra no passado. Eles são chamados de Eixo Unido do Sul. Membros desses reinos regimentam a Cremea e os reinos do Eixo seguemna à risca. No resto do continente, alguns outros reinos seguem ela ou parte dela.”
Rubi sente a desilusão nas palavras de Jenny. “Então, mesmo que eu consiga a minha anistia, ela não serve em todo o continente?”, pergunta.
“Muito provavelmente não. Embora, ter um lugar seguro, já é o bastante, não é?”
Rubi suspira, se conformando com a situação. “É sim”, ela diz. “Algum lugar, é bem melhor que lugar algum.”
O mundo é tão grande, ela pensa, lamentando. Eu gostaria de explorá-lo quando tudo estivesse tranquilo.
Jenny vai até o mapa e aponta para um lugar no leste, quase na borda da região árida. “Eu e a minha irmã viemos daqui”, ela diz, e em seguida aponta para uma região em uma das florestas do sul. “A Arielle veio daqui.”
Uma dúvida paira por Rubi. “E a Helga?”, ela pergunta.
“Ela veio do norte. Tão no norte que nem está no mapa.”
Rubi coloca o dedo sobre a floresta indicada a noroeste. “Aqui já são as Terras Livres?”, ela pergunta.
“É o começo delas. Elas se estendem muito, bem mais que muitos países. Dizem que um Orc conseguiu dominar todo o lugar uma vez. Mas depois que ele morreu, o reino caiu por conta das invasões constantes de monstros.”
A cauda de Rubi começa a serpentear para os lados. “Um orc? Sozinho?”, ela pergunta, curiosa.
“Ele tinha uma tribo muito grande e foi muito famoso no passado. Chamam-no até hoje de Rei Orc.”
Interessante, Rubi pensa.
A conversa das duas é interrompida quando ouvem o barulho da porta do banheiro se abrindo. Arielle sai de lá com um vestido azul com detalhes em dourado e o cabelo enrolado em uma toalha. “A próxima pode ir. Deixei a banheira enchendo e uma toalha seca”, diz a meia-elfa.
“Eu vou indo então”, diz Rubi. “Depois eu quero saber mais sobre isso.”
“Claro. Pode perguntar à vontade”, diz Jenny.
Rubi se encaminha até o banheiro, há vapor saindo pela porta. A demônio entra e vê um cômodo um pouco menor do que o quarto de Jenny. Nela há uma janela alta na parede, uma pia com um espelho.
Ao lado da porta há outros ganchos cabideiros com uma toalha pendurada.
Encostada em uma parede está uma privada feita de pedras escuras e no meio do banheiro tem uma banheira de madeira, se enchendo com água quente saindo de uma torneira.
É bem melhor do que eu achei que seria, pontua Rubi. Como elas conseguem água quente?
Ela fecha a porta e tira as luvas brancas, pendurando-as nos ganchos. Em seguida, remove o restante das roupas e as coloca no mesmo local. Antes de se dirigir à banheira, vai até a pia, limpa o espelho embaçado pelo vapor e, pela primeira vez, dá uma boa olhada em si mesma.
Ela passa a mão pelo rosto, como se estivesse procurando por algo. Começa pelas bochechas, depois vai pela testa. Verifica atrás das orelhas e na nuca. Por fim, pelo espelho, olha para a parte da frente de seu corpo, depois para a parte de trás.
Ufa. Não tenho nenhuma cicatriz, nem no rosto, nem no corpo, ela constata aliviada. Me preocupei que houvesse alguma da época do jogo ou dos golpes que levei nesse mundo.
Mesmo depois de se dar conta, ela continua se observando no espelho, não mais à procura de falhas, mas admirando alguns detalhes.
É a primeira vez que ela nota o tom claro de amarelo em seus olhos e que seus chifres vermelhos possuem alguns círculos desenhados, quase como entalhes. Repara também que sua fina cauda é quase tão longa quanto seu corpo. As curvas suaves e perfeitas de seu corpo chamam sua atenção, destacando uma beleza natural e sensual que ela só agora percebe.
A Rubi é… Eu sou bem bonita, ela conclui, impressionada. Ela suspira e sorri em seguida, sentindo algum conforto consigo mesma. Eu posso estar diferente e não ser mais humana, mas, mesmo que as coisas deem errado daqui para frente, não ser um monstro horrível torna tudo um pouco mais fácil de aceitar.
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