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    À frente da entrada da guilda de Gramina, encontra-se Jenny, a líder das Damas da Floresta. Ela está usando uma camisa azul-escuro e uma calça de couro. Embora esteja sem seu colete protetor, em sua cintura está pendurada sua espada embainhada.

    Atrás dela, algumas pessoas estão observando o mural de avisos com feições alegres e aliviadas. A euforia deve-se a um anúncio no mural informando a captura do homem mais procurado das últimas semanas, Edric.

    Em contraste com a alegria das pessoas, Jenny encara a porta com uma expressão preocupada. O que será que ele quer?, ela se pergunta, logo antes de abrir a porta e adentrar no prédio.

    A sala onde ela entra é a principal do prédio, um grande salão onde estão outros aventureiros. Na parede oposta à entrada, há um balcão de madeira com dois atendentes atrás e, na frente, cadeiras altas como as de um bar. À direita do balcão, está uma grande escada de madeira que leva até o próximo andar.

    Os atendentes são um humano e uma garota com características bestiais. O humano tem cabelo preto e pele clara, enquanto a garota é semelhante a um lobo humanoide, com focinho, pelo cinza e grandes orelhas apontadas para cima. Ambos usam camisas brancas, calças pretas com suspensórios e gravatas borboletas combinando.

    À esquerda, há um grande mural bastante similar ao do lado de fora, mas, além de anúncios, há cartazes de recompensa, pedidos de caça, escolta, treinamento com armas e magias, além de encomendas de materiais e outras demandas. 

    Espalhadas pelo salão, há mesas de diversos tamanhos, variando desde circulares com quatro assentos até távolas que acomodariam mais de quinze pessoas. Jenny passa ao lado de algumas delas. Duas mesas estão ocupadas por grupos conversando, e em uma delas, ossos e chifres estão espalhados sobre a superfície.

    Quando Jenny passa próximo a essa, vê rapidamente, de relance, entre os objetos sobre a mesa, um cartaz de aviso sobre um novo demônio pela região. Não tem como ser a Rubi, ela afirma para si mesma. 

    Ela acaba ignorando as demais pessoas no salão, e dirige-se diretamente ao balcão. A atendente, com aparência de loba, sorri ao vê-la se aproximar.

    “Jenny!”, diz a atendente, alegre. “Já faz mais de uma semana que não vejo você ou as garotas por aqui. Já estão tirando férias?”

    “Boa tarde, Yomi. Só tiramos alguns dias de descanso. Foram dias… complicados”, Jenny responde, sem jeito.

    “Eu imagino. Com aquele clima de guerra, não estava fácil por aqui também. Muita gente viajou nos últimos dias”, comenta Yomi. “Até a Raquel.”

    “É verdade. Até a Raquel…”, diz Jenny, um pouco aflita ao lembrar da irmã. 

    O outro atendente, ouvindo um pouco da conversa, se aproxima das duas. “Jenny, viu as notícias, não viu?”, ele pergunta. “Quem diria que aquele cara estaria por aqui?”

    “É… quem diria?”, diz Jenny, tentando fingir surpresa.

    “Ninguém esperava”, comenta Yomi. 

    “E a Helga?”, pergunta o atendente, pretensiosamente. “Já que vocês ainda estão pela cidade, podia chamar ela e vir beber um pouco com a gente. O que você acha?.”

    O pedido deixa Jenny incomodada. O Thino não perde tempo, ela pensa. 

    “Ela não anda muito disposta. Nossa última tarefa foi muito… cansativa para ela”, explica Jenny, tentando desconversar. “Enfim, vim aqui resolver isso.” Ela rapidamente corta o assunto, retirando do bolso um papel e entregando-o para Yomi. 

    A atendente lê rapidamente o que está escrito no papel e o devolve para Jenny. “Foi um dia corrido para ele também”, diz Yomi. “Ele está no terceiro andar, pode ir lá.”

    “Obrigada”, diz Jenny. Ela acena com a cabeça para os atendentes e vai até a escada.

    É melhor eu subir, antes que eu tenha que ficar de cupido para a Helga de novo, Jenny pensa, querendo se afastar dali o mais rápido possível. Ela sobe a escadaria, passando rapidamente pelo segundo andar até alcançar o terceiro. Eu prefiro a escada dos empregados. É mais rápida.

    Ela segue pelo corredor até a última porta, a sala de Silvana, e bate.

    “Quem é?”, pergunta um homem lá dentro. 

    “Sou eu”, Jenny responde.

    “Ah sim. Pode entrar.”

    Jenny entra na sala e vê Silvana sentado, com os cotovelos repousados sobre a mesa e seus dedos cruzados. Ele usa seu usual robe de mangas longas acompanhado de um colete de couro roxo, aparentemente novo. 

    Logo ao entrar, ela nota um detalhe diferente naquela sala. “Mesa nova?”, ela pergunta. 

    “Que bom que notou. A última estava rachada e velha, então troquei por uma nova”, ele responde com um sorriso. “Mas não se preocupe, não vou descontar o valor inteiramente da recompensa que vocês vão ganhar, apenas uma parte.”

    Jenny ergue uma sobrancelha. “É bom ver que pelo menos vamos receber algo por capturar o Edric”, ela ironiza. “Do jeito que você soltou a notícia, o crédito fica todo para a guilda, ou melhor, para você.”

    “Eu jamais faria isso. É tudo uma jogada de publicidade e uma forma de proteger a frágil convidada. Se as pessoas descobrissem que foram vocês quem trouxeram, estariam sendo procuradas em todos os lugares, até em casa.”

    Do jeito que ele fala, quase soa como se ele não estivesse adorando isso, ela pensa.

    “Como andam as meninas?”, pergunta Silvana.

    “Até que bem. Nesses dez dias, a Arielle tem tentando ensinar a Rubi a ler. Ela é uma boa hóspede, a Helga diz que é até boa demais.” Ela revira os olhos ao mencionar esse assunto.

    “Estão tendo algum problema?”, Silvana questiona.

    “Mais ou menos. A Rubi não dorme e isso deixa a Helga meio paranoica. Ela entrou em uma de que alguém sempre tem que ficar de olho na Rubi e passa a noite toda acordada de olho nela”, diz Jenny, esgotada. “E a Rubi também não ajuda. Ela passa a noite toda encarando a Helga, só para provocar, o que deixa a Helga mais paranoica ainda. Ela agora passa o dia dormindo para nem piscar os olhos à noite.”

    “Bem, pode dizer para elas que isso não vai durar muito mais tempo. A reunião deve acontecer aqui, em pouco mais de oito dias.”

    “Sabe qual membro vai vir?”

    “Ainda não sei quem ao certo vai vir, mas será pelo menos um membro da Cremea e um grupo de militares para escolta. Ainda irei elaborar o roteiro da reunião e escolher em qual sala será.”

    “Ainda bem, mas… você me chamou aqui só para isso?”, Jenny pergunta, desconfiada. “Não poderia ter deixado escrito no papel ou ter ido à nossa casa?”

    “Eu poderia, mas existe muita gente de olho em mim por aí. Além disso, existe algo me angustiando e eu queria um momento para conversarmos a sós.” A expressão de tranquilidade e ponderação de Silvana é trocada por uma expressão preocupada e séria.

    “O que é?”, Jenny pergunta, alarmada com aquela postura.

    “Aquela Jenny de duas semanas atrás enlouqueceria em pensar que faria o que você está fazendo pela Rubi”

    “Eu?”, Jenny pergunta, sem entender o que ele quer dizer.

    “Já pensou no que vai falar para a Raquel?”

    “Ah! É isso? Eu vou explicar tudo com calma, ela vai entender. Eu espero…”

    “Bem, eu imagino um cenário. Primeiro, ela vai se preocupar se sua mente está sendo controlada. Depois, virá a raiva por você defender a Rubi. E, finalmente, sentirá nojo e traição ao descobrir que um demônio está morando com vocês.”

    “Pode até ser, mas em algum momento ela vai entender”

    “Se você entendeu, talvez ela entenda mesmo. Ela é a mais velha”, diz ele, suspirando ao final. “Só não espere que ela também deixe de lado o que os demônios fizeram com ela e com seus pais.”

    Jenny se irrita com esse comentário. “O que você quer dizer com isso? É essa a sua preocupação?”

    Silvana se demonstra frustrado. Ele tira seu olhar de Jenny e encara a janela, exibindo o céu laranja do entardecer. “Sabe por que a primeira instrução da Cremea sobre os diabos é matar ou correr, enquanto para os outros demônios as instruções são mais detalhadas?”

    “Porque eles são mais perigosos”, Jenny responde, mesmo sem entender ao certo o motivo da pergunta.

    “Sim. E sabe por que eles são mais perigosos?”

    Eu nunca pensei nessas diferenças, ela pontua.

    “É porque eles são fortes, não?”, ela responde, ainda sem entender o motivo daquilo.

    “Não. É porque eles são convincentes”, Silvana afirma, com muita certeza e simplicidade na voz.

    “E o que isso tem a ver comigo e com a Raquel?”

    “Diferentemente de outros demônios, os diabos, na maior parte das vezes, não atacam ou matam à primeira vista. Eles têm objetivos específicos e são diabolicamente planejados para nos convencer do que quiserem, seja uma succubus, um primum, ou até mesmo um behemoth. Por isso, as instruções são matar ou correr instantaneamente ao avistar um. É para evitar que alguém seja persuadido por eles.”

    Confusa com as insinuações, ela questiona, “Onde você quer chegar?”

    “Na Rubi. Os olhos, as expressões, o cabelo e até o cheiro, tudo nela foi metodicamente criado para influenciar as pessoas, ainda mais por ela ser uma succubus.”

    Jenny se vê preocupada. “Acha que a Rubi está mentindo?”, ela pergunta.

    Silvana volta seu olhar para Jenny. “Eu tenho certeza de que a Rubi não mentiu. Acredito em cada palavra que ela disse. Para dizer a verdade, ela deve ser uma das piores mentirosas que já passou por aqui”, ele afirma, convicto de suas palavras.

    Jenny fica mais confusa ainda. “Não entendi o ponto da conversa ainda.”

    “Ela não precisa mentir para te sugestionar, mesmo que ela não queira, é a natureza dela. Ela só precisa que alguém a ouça. Pelo que eu vi, vocês três parecem ter simpatizado bastante com ela. Talvez até demais.”

    “A Rubi nos ajudou muito e sinto que estou em débito com ela. A Arielle também, e a Helga não parece tão simpatizada assim.”

    “A Helga também foi influenciada, e muito. É estranho pensar nela conversando com um demônio, o mesmo vale para você. A diferença é que ela prefere pensar com o machado, ainda usa o senso crítico e não baixa a guarda em nenhum momento. A Arielle é tão boba que seria enganada até por um daimon. Minha preocupação é com você”, ele alerta. “Estou preocupado de que quando alguém tratar a Rubi como um demônio perigoso, você reaja como se ela não fosse um.”

    “Eu não deixaria alguém falar ou fazer mal a ela, nem com nenhuma outra amiga minha.”

    “É disso que eu estou falando, ela não é como outra amiga sua. É muito fácil ser influenciado por um diabo e esquecer o que eles são de verdade. Você olha para ela como um gatinho abandonado entre os leões, só que ela é o leão com as garras mais afiadas. E eu te conheço, você está sempre pensando nos problemas dos outros, e tentando resolvê-los. Não pode culpar alguém por tratá-la como o demônio.”

    Ela franze os olhos, indignada com a indiferença dele. “Quer que eu deixe à própria sorte?!”, ela questiona em voz alta.

    Silvana bate forte na mesa. “Quero que você seja a Jenny!”, ele exclama, perdendo sua compostura momentaneamente. “A Jenny lógica que pensa antes de agir. E não essa Jenny vislumbrada, que pensa que achou ouro no meio da lama e que vai se matar, junto da Arielle, defendendo um demônio.”

    Ela finalmente compreende sobre o que Silvana está tentando dizer. Será que ele…, ela pondera, permanecendo alguns momentos quieta processando as informações. 

    “Por acaso isso já aconteceu com você?”, ela pergunta, mais calma. 

    Silvana suspira, se reclina para trás e volta a olhar para a janela com uma expressão triste. “Quando eu era mais jovem, uma das poucas pessoas que eu pude chamar de amigo ficou muito doente. E na cidade não havia médico que pudesse ajudá-lo. Ele era bondoso, me ajudou quando mais precisei e não me julgava muito pelas minhas relações duvidosas. Eu não podia deixá-lo morrer.”

    “E o que você fez?”

    “Por sorte, na época, um diabo me devia um favor…”

    “Não era para ser o contrário?”, interrompe Jenny.

    “Eu já não era tão correto na época”, pontua Silvana. “Continuando, eu apresentei meu amigo a esse diabo e ele o curou. Meu amigo ficou maravilhado com a graça e o poder do demônio e sentia muita gratidão a ele.”

    “Eles viraram amigos?”

    “Se perguntassem para ele, sim. Se perguntassem ao demônio, não faço ideia. Mas eu diria que não.”

    “E o que aconteceu depois?”

    “Um dia, na Guilda daquela cidade, surgiu uma missão para caçar esse mesmo demônio e, quando meu amigo descobriu, um grupo já havia pegado a missão e partido para a caça. Eu disse para ele não ir, que o demônio conseguiria se cuidar. Sabe o que aconteceu?”

    “Ele foi atrás…”

    “O grupo matou meu amigo e depois o demônio trucidou todo mundo do grupo.”

    “Ele fez isso por vingança?”

    “Não sei, nunca perguntei. Para mim, não fazia diferença. Meu amigo ficou conhecido como um cultista de demônios. Sua reputação foi jogada no lixo e a família dele sofreu muito por isso. Eu os vi sair da cidade praticamente expulsos. Eu também fui embora depois disso.”

    “E você não quer que isso aconteça com a gente”, Jenny conclui, com um ar de compreensão.”

    “E eu não quero ver isso acontecendo com vocês”, diz Silvana. Ele volta seu olhar para Jenny. “Vocês são umas das poucas em quem eu posso confiar.”

    “E o que você acha que eu devia fazer?”

    “Continue normalmente. Ajude-a no que puder, só mantenha sua cabeça no lugar. Não precisa pensar nela como um animal indefeso. Não pense que precisa levar um golpe pela Rubi ou que tem que convencer o mundo a amá-la, nem deixe a Arielle fazer isso. Eu duvido que a Helga faria algo do tipo”, ele adverte. “Se a situação apertar de verdade, ela vai se virar. Não é atoa que temem os Lordes Demônios.”

    “Só isso?. Pensei que você fosse falar para nos afastarmos ou algo do tipo.”

    “Não é como se você estivesse sendo controlada, só perdeu um pouco a noção das coisas. Como uma formiga intoxicada pelo perfume de uma planta carnívora ou uma mariposa atraída pela vela. Além disso, não faz o seu tipo deixar um amigo em necessidade. Só quero que fique ciente dos riscos que você pode correr.”

    “Eu vou me manter atenta de agora em diante. Da forma que você fala, isso também aconteceria se eu tivesse falado com outros diabos?”

    “Com alguns sim. Muitos que crescem pensando que todos os demônios são monstros devoradores de crianças ficam deslumbrados ao se encontrarem conversando com um.” 

    “Assim como aconteceu comigo.”

    “A maioria, quando percebe o erro que cometeram, já caiu em tentação e se veem em tramoias, no meio de cultos demoníacos ou sendo usados como brinquedo. E mesmo quando encontram um demônio mais brando, ainda se dão muito mal. Você teve sorte de encontrar um demônio bobo como a Rubi.” 

    “Essa história tem a ver com aquele pacto que você comentou antes?”

    “Eu já tive as minhas experiências”, diz Silvana. “Me dei bem em algumas, mas em outras me dei muito mal. Essa foi uma delas.”

    “Era isso?”

    “Sim”

    “Então eu vou voltar para casa, preciso informar a Helga sobre as notícias antes que a Arielle o faça”, diz ela enquanto se levanta e vai até a porta. “Obrigado.”

    “Até mais, e dê boa noite às garotas”, diz Silvana se despedindo.

    Depois que ela vai embora, Silvana se levanta da cadeira e vai até a janela. Lá ele permanece parado e contemplativo, observando o sol se pôr. Diabos são mesmo… cativantes. É sempre fascinante observar como articulam suas coisas. Me pergunto que tipo de planos a Rubi e os outros lordes têm…

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