Capítulo 43 - Alma e preço
Iluminados pela luz da Lua cheia, Rubi e Byron estão sentados em frente a uma fogueira. Acompanhados pelo som de grilos e do canto de aves noturnas distantes. O chão ao redor é constituído de grama verde, ao fundo, é possível ver árvores altas e cheias de folhas banhadas pela luz do luar, indicando que estão longe da colina seca de Byron.
O demônio trajado em preto segura com a mão esquerda um crânio alongado e seco, o formato se assemelha ao de um canino. O tamanho daquele osso dá a entender que pertence a um animal maior que o próprio Byron. Ele gira aquela caveira, admirando-a de vários ângulos e com um sorriso no rosto.
Rubi, ao lado, observa o diabo quieto, perdido em seus próprios pensamentos, fascinado por aquele objeto, na opinião dela, no mínimo incomum. Por que ele quis trazer aquilo?, ela se pergunta, intrigada.
Depois, mira sua atenção para o outro lado da fogueira, onde estão duas mochilas, uma dela e a outra, consideravelmente menor, de Byron. Antes de desmoronar o próprio covil, ele quase não pegou nada. Mas também não é como se ele tivesse muita coisa naquele lugar além de ossos, ela relembra. Talvez ele seja alguém bem desapegado aos bens materiais… a não ser por aquilo.
“Isso aí é importante?”, Rubi pergunta.
“Não. É apenas um mero troféu que encontrei enquanto me arrumava”, ele responde sem tirar os olhos da caveira.
“É algum bicho que você caçou? Tinha várias dessas na floresta.”
“Peço perdão pelo incômodo. É um mau-hábito meu. Eu costumo pegar os crânios de inimigos com quem batalhei.”
“Não tem problema. Eu só fiquei… curiosa.”
Deu pra ver que ele adora caveiras, Rubi pontua.
“Por que essa é especial? É a única que você trouxe. Foi uma batalha difícil?”
“Foi um prêmio especial, era de um garm-da-floresta. Mas não é o animal em si que torna esse objeto especial. Foi o acordo que fiz.”
Rubi fica bastante interessada. “Que acordo?”, ela pergunta.
“Essa coisa aqui comeu as três crianças de um homem que morava em uma fazenda. Me lembro que primeiro ela comeu o filho mais velho. E pelo visto ela gostou, na semana seguinte ela voltou e comeu o do meio, e duas semanas depois, ela comeu o caçula restante.”
“Foi o pai que pediu um acordo?”
“Ele ficou destruído e queria ver o animal morto, não importava o preço. Até que ele era valente, mas não tinha força para caçar um garm. Ele me contratou para eu matar a fera.”
“E aqui está a caveira dela, e o que aconteceu com o homem?”
Byron lentamente leva a mão até a barriga. “Ele ainda está aqui também”, ele comenta, ainda com o mesmo sorriso.
“Você comeu ele?!”, ela pergunta surpresa.
“Não”, ele nega, balançando a cabeça. “Não tenho o costume de comer humanos. Eu comi a alma dele.”
“Ah. Faz mais sentido agora.”
É bom saber que ele não vai querer parar um dia pra lanchar algum humano que encontrarmos, ela pensa, aliviada. Seria uma cena meio estranha.
“Fizemos um pacto, se eu conseguisse matar a fera e vingasse os filhos dele, eu poderia comer e reivindicar totalmente a alma dele. E foi o que eu fiz.”
“Ele morreu?”
“Ele já não tinha muito pelo que viver depois de perder os filhos. E um corpo não pode viver sem nenhum pedaço da alma.”
“Como funciona isso… de alma?”
“Ela se dívida em duas partes, espírito e essência. O espírito é a parte imortal, irredutível, representa a posse e o que mantém a pessoa vinculada a esse mundo. A essência é a energia vital e a consciência mortal da pessoa, a parte de onde vêm sua magia e energia.”
“Então, se eu comer ou corromper uma alma, a pessoa morre?”
“Depende dos termos do pacto. Você pode comer a parte da alma ligada ao espírito, de forma total ou parcial, sem consumir a essência do indivíduo. Assim, a pessoa continua viva normalmente. Se ela tiver todo pedaço da alma ligado ao espírito consumido por um diabo, a alma da pessoa pertence totalmente ao diabo, mesmo com ela viva. E, a depender dos termos, o diabo pode fazer o que quiser com a pessoa.”
“Isso é corromper?”
“Uma alma com alguma ligação com demônios é dada como corrompida. Alguns diabos colocam restrição de tempo nos acordos e reivindicam a alma quando o prazo acaba ou só reivindicam depois que o mortal morre. No meu caso em específico, o homem não fazia questão de continuar vivendo. Hoje em dia, os pactos são menos comuns, então não perdi a chance.”
Rubi se aproxima um pouco na direção de Byron, não conseguindo conter sua curiosidade. “E além de… cumprir o nosso propósito, o que a gente ganha comendo uma alma?”, ela questiona.
Byron ergue o braço direito e começa a abrir e fechar os dedos da mão com força. “Consumir a essência e o espírito que vem com a alma nos deixa mais fortes”, ele responde. “Além de que consumir uma alma é uma sensação única.”
“É bom assim? Qual é o gosto?”
O demônio começa a pensar. “É difícil colocar em palavras, mas eu diria que é algo próximo à completude”, ele responde.
Qual é o gosto de completude? Será que é doce?, ela se pergunta, extremamente curiosa. Não, não faz sentido. Talvez… deve ser difícil mesmo colocar em palavras.
“O que acontece com as almas que eu reivindicar? Elas vão pro abismo?”
O demônio aponta com o dedo para a barriga de Rubi. “Se você consumir uma alma completa, ela fica dentro de você e perde toda a individualidade que um dia teve, se tornando apenas um pequeno pedaço da sua força, condenada ao oblívio enquanto você viver”, ele responde.
Rubi divaga um momento. “E suponhamos que eu morra?”, ela pergunta. “Não que eu ache que isso possa acontecer.”
Byron aponta para a fogueira. “Se você morrer, vai levá-las até o nosso pai. E elas terão que ficar no abismo pela eternidade”, ele responde, enquanto olha as chamas estalarem em brasas ardentes.
Se corromper parece um destino bem complicado, ela pensa. É por isso que tem que pensar bem antes de aceitar qualquer acordo.
“E se eu não comer o espírito todo? Você disse que eu posso pegar só uma parte.”
“Ela fica partida, e após a morte percebe o vazio do pedaço faltante. A maioria dos deuses não aceita almas assim no pós-vida, ainda mais se forem corrompidas. No final, elas ainda acabam indo parar no Abismo, na maioria das vezes ou, para evitar a agonia eterna de estarem fracionados, voluntariamente aceitam o oblívio no estômago do diabo que tem a outra parcela de sua alma.”
“É. Não tem meio-termo no final”, Rubi comenta, olhando para a madeira queimando.
“Também há acordos que não envolvem a alma como pagamento”, Byron continua. “São mais raros, pois dependendo dos termos, o diabo pode sair em muita desvantagem.”
“Esse daí não parece muito bom”, diz Rubi, com repúdio.
“Por isso é mais difícil ocorrer, mas é quase sempre o primeiro que pedem. Muitos querem poder, mas não querem lidar com as consequências disso.”
“Além de executar tarefas e favores, o que podemos fazer com um pacto?”, Rubi pergunta curiosa.
Eu ouvi muita coisa sobre isso, mas parece tão vago, ela pensa.
“Somos como ferreiros de almas. Podemos moldá-la, dar e tirar poder, colocar regras, sensações, retirar e colocar limites”, Byron responde. “Desde que o diabo que conduza o pacto tenha permissão do dono e poder para isso, ele pode fazer quase qualquer coisa. ”
“Isso parece bom demais para ser verdade”, Rubi pontua.
“E é exatamente isso que seduz os mortais. Sempre há um preço pelo poder, e na maioria dos casos, é a alma.”
O preço de um pacto é bem alto, ela conclui. Alguém sempre vai pagar.
“A alma é o bem mais precioso dos mortais”, Byron destaca. “Um grande presente dado pelos deuses que eles dizem seguir. Ainda sim, muitos não dão o devido valor a ela. Ao ponto de que nos dão ao custo de ninharias.”
Os dois demônios permanecem quietos enquanto admiram as labaredas incandescentes por algum tempo.
“Acha que consegue me ensinar a fazer um pacto até amanhã, antes de chegarmos à floresta das Terras-Livres?”, Rubi questiona, interessada.
Eu sei que corromper não é a atitude mais ética e tal, mas, pelo menos, de todas as coisas não muito legais que eu já fiz, essa não depende só de mim. Além de que parece meio que uma habilidade bem básica dos diabos. Seria interessante aprender isso, ela reflete. Ainda mais se eu puder ficar mais forte.
“Não é difícil”, Byron responde, sem desviar os olhos da fogueira. “Fazer um pacto é tão natural quanto respirar. E, segundo as lendas, pactos feitos com demônios que possuem uma coroa são mais poderosos. Mas não sei exatamente como isso funciona, é uma magia muito antiga.”
A coroa da ganância não fez muita coisa ainda, Rubi pontua. Ela devia ter vindo com um tutorial junto do título de Lorde Demônio. Alias…
“E também… pode me explicar o que significa uma patente para os diabos?”, ela pergunta, sem jeito. “Quer dizer, você me falou isso e é parte do meu dever, né?”
E eu nem sei o que significa, ela pontua.
O diabo volta a atenção a ela. “Não conhece o conceito?”, ele pergunta.
“Não para os diabos.”
“Isso está relacionado à hierarquia dos diabos. Eu, como um Cavaleiro, tenho uma patente bem menor do que a sua, uma Lorde.”
“Hummm. Entendi”, Rubi murmura, compreendendo. “E o que significa gerenciar uma?”
Byron se cala por um momento, fica pensativo, elaborando sobre como responder aquilo. “É um dos poderes dos Lordes Demônios”, ele diz. “Elevar ou rebaixar a patente dos diabos dentro da hierarquia.”
“E isso é muito importante? Por que precisam dos Lordes Demônios para fazer isso?”
“Isso é muito importante”, ele infere. “A hierarquia define o máximo poder de um demônio. Eu, como cavaleiro, posso treinar minhas habilidades e consumir almas para ficar mais forte, mas existe um limite do quão poderoso posso ficar. Para transcender isso, eu precisaria subir minha patente para pelo menos Comandante Diabo.”
“E só dá pra conseguir isso com um lorde?”
“Desde que um diabo adquira os requisitos mínimos, qualquer outro diabo de patente maior pode promovê-lo.”
Rubi acha aquele conceito anormalmente familiar. Caramba. Isso soa exatamente como a limitação de nível do HTO, ela relembra. Em certos níveis, tem que fazer missões específicas pra poder continuar progredindo.
“O problema é que um diabo não pode conferir uma patente igual ou maior que a dele”, Byron continua. “E a maior patente que existiu por muito tempo foi Comandante. Metade da hierarquia dos diabos estava extinta nesse mundo.”
Rubi fica em silêncio por um momento, absorvendo a revelação. Então, cavaleiro é a maior posição que o Byron podia assumir, ela conclui. Não só ele, mas qualquer outro diabo.
“E… será que eu conseguiria te promover agora?”, ela oferece, com um sorriso gentil.
Byron, inicialmente, fica quieto e volta a olhar para as chamas, pensativo. “É uma oferta bem tentadora”, ele comenta, depois de algum tempo. “Mas penso que, por enquanto, é melhor você adquirir mais experiência, e economizar seu poder para aplicar no plano que me contou.”
“Tem certeza?”
“Sim. Uma promoção consome mais magia do que um pacto, e até onde a senhorita me contou, você não acumulou magia além da sua. Além do mais, ainda não tive a oportunidade de mostrar meu valor. Nem sei se tenho o mínimo para transcender”, ele divaga, novamente contemplativo. “Farei por merecer.”
“Se você prefere assim. Tá tudo bem por mim”, ela comenta, com um sorriso leve.
Melhor não insistir muito, sei como ele é intenso. E também não sei o quão forte é o Byron nem como ele luta. Acho que ainda eu não saberia como ajudá-lo, ela analisa, curiosa. E é bom saber que a Coroa da Ganância serve pra alguma coisa além de me causar problemas.
“Ressalto que isso não é algo com que devamos nos preocupar por agora. Vamos ter um dia longo amanhã”, Byron fala, empolgado.

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