Capítulo 49 - Mudança de Ares
O orc bebe todo o líquido no vidro, depois deixa o fraco cair sobre a grama. O líquido começa a brilhar em seu corpo, com uma fraca luz carmesim, e a ferida exposta na cintura começa a se fechar. Alguns dos hematomas em sua pele também somem. Suas mãos param de tremer e até sua respiração se estabiliza.
Um olhar revigorado instaura-se em seu rosto, enquanto ele respira profundamente, recuperando o fôlego. “Obrigado”, ele diz, sentindo um visível alívio.
Rubi se afasta um pouco, com uma expressão contente, dando espaço ao orc. Ainda bem que ele escolheu viver, ela pensa. Seria um desperdício vê-lo morrer assim.
Byron se aproxima dos dois e para ao lado da demônio. “Como podemos nos referir a você?”, ele questiona.
O orc olha para o demônio, ainda recobrando o ar. “Me… chamam de Brok”, ele responde, a última palavra saindo com uma entonação seca e grave, soando como um ruído áspero e rústico.
Que nome… diferente, Rubi pensa, com alguma estranheza. O do outro orc era um pouco esquisito, mas pelo menos soava normal. Era Estoracoisa? Estoramola? Estora… bola?
“E como… devo chamar vocês?”, Brok pergunta.
“Pode me chamar de Rubi”, diz a demônio, se apresentando, depois aponta para o lado. “E esse diabo simpático, você pode chamar de Byron.”
O diabo sorri e abaixa a cabeça em um gesto de respeito. “Espero que possamos colaborar bem, Brok”, diz ele, com uma cortesia inesperada.
Rubi se surpreende. Eu disse com ironia, mas não estava esperando esse respeito todo, ela pensa, intrigada. Perdi algum detalhe?
A brisa bate naquele lugar, e os ouvidos do orc tremem atentos. Ele fareja o ar, inquieto, e começa a lançar olhares desconfiados para os lados.
Os diabos percebem Brok agitado e ficam sem entender o motivo.
“Aconteceu alguma coisa?”, Rubi pergunta.
“Devemos continuar em outro lugar”, avisa ele, em alarde. “Tinha garras-brancas por perto, e o vento mudou. Com o cheiro de sangue, elas vão chegar logo.”
Esse lugar não dá uma folga, né?, Rubi reclama internamente.
Diante do aviso, Byron também fica diligente aos arredores, mostrando alguma preocupação. “De fato, seria bem incômodo ter que ficar lidando com monstros, enquanto conversamos”, ele constata.
“Conhece algum lugar mais calmo aqui perto?”, Rubi pergunta ao Orc.
Brok, em dúvida, desvia o olhar por um momento, como se ponderasse algo mais sério. “Podemos… ir até a terra da minha tribo”, ele responde, com uma pausa, sentindo o peso de sua decisão. “Não é longa e lá é calmo.”
Rubi e Byron trocam olhares, ambos com um semblante de dúvida. Rubi sutilmente acena com a cabeça e Byron responde acenando da mesma forma, concordando silenciosamente.
“Não é uma ideia ruim”, Rubi comenta. “Mas nós não podemos encontrar outros orcs.”
Brok ergue uma sobrancelha, intrigado. “Por quê?”, questiona ele.
“Preferimos manter a informação da nossa presença na floresta restringida ao mínimo”, Byron responde, com sua voz firme e cautelosa. “E até esse momento, o único ser vivo que sabe que estamos na floresta é você, e preferimos manter assim.” O diabo ressalta aquilo, quase como uma ameaça velada.
Brok fica tenso, sentindo-se pressionado pela situação dos diabos. “Eu… não vou contar a ninguém”, ele diz, abaixando a cabeça. “E na minha terra… não há muitos monstros nos arredores. Não precisam entrar na tribo.”
“Então é perfeito!”, diz Rubi, animada e apressada. “Você pode ir à frente, e a gente te segue escondido. Pode deixar a sua… carne na sua tribo e, depois, conversamos com mais calma.”
“Se a senhorita não vê problema nisso, tampouco eu tenho algo a contestar”, Byron acrescenta, concordando de forma tranquila. “Há poucos lugares seguros por aqui.”
Sem hesitar, o orc concorda e rapidamente agarra o corpo do monstro no chão. “Apenas me sigam”, diz ele com urgência, disparando pela floresta e guiando o caminho.
Os diabos aguardam pacientemente o Brok tomar distância. Byron mostra uma postura diligente, cauteloso a qualquer sinal que vem das árvores e dos arbustos que os circundam, enquanto Rubi observa o orc com um ar contemplativo.
Quando Brok toma distância, a ponto de quase desaparecer da visão dos diabos, Rubi estende uma mão em sua direção. “Sentinela Cinzento”, ela pronuncia, e conjura um corvo cinza que começa a seguir o orc.
Enquanto ela conjura, o diabo vai até o vidro vazio da poção que está jogado no chão, o pega e retira um pouco da poeira do chão que se acumulou nele.
“Até que eu gostei do Buro… Brok”, ela comenta, esperançosa, porém com um pouco de dificuldade em pronunciar aquilo naturalmente. “Ele é bem direto.”
“Orcs são criaturas simples. Não costumam optar por decisões muito complexas”, Byron fala. “Mas devo reconhecer que esse em especial, mostrou-se mais esperto que a maioria.”
Uma feição curiosa surge em Rubi. “Me fala ai, qual foi a ‘espero que possamos colaborar’?”, a demônio questiona, cheia de curiosidade. “Pensei que você fosse ficar guardando rancor dele ou algo assim.”
Byron, antes de responder, pondera por um instante. “Acho que a minha perspectiva sobre ele realmente mudou um pouco…”, ele responde, calmo.
É, eu percebi a diferença. Antes, você queria partir ele no meio, ela pontua.
“… Consegui enxergar nele o valor que você disse”, o diabo continua, em sua reflexão. “E ele, aparentemente, aceitou a nossa proposta. Então, o considero um aliado.”
“Ele tinha muitas desvantagens e ainda conseguiu fazer muitas coisas”, Rubi analisa. “Não tinha como ele ser só mais um orc. Ainda bem que ele aceitou.”
“Mas ressalto, que antes, ele era alguém que atrapalhou seus planos. Em outras palavras, um inimigo. Não devemos permitir que alguém sequer pense que pode agir contra nós e sair ileso. Isso pode custar caro depois”, Byron adverte, em seu tom severo. “Medo é uma boa ferramenta, não há por que não usá-la.”
“Eu entendo o que você quer dizer”, responde a demônio de cabelo rosa, com um olhar introspectivo.
Isso me soa como algo que o Silvana diria, Rubi reflete, com um suspiro ao final.
“E ainda agora, temos que ficar de olhos abertos”, o diabo aconselha. “Ele pode ter aceitado nosso acordo, mas ainda não fez nenhum pacto.”
“Eu sei. No pior dos casos, ele ainda pode nos trair”, ela supõe, com uma ponta de preocupação.
E ainda vamos ter gastado uma poção à toa, Rubi pensa.
“Mas apesar de tudo isso, sua visão ponderada sobre o orc Brok me revelou uma oportunidade valiosa que teria passado despercebida a mim”, Byron comenta com uma expressão otimista. “Uma abordagem que não compreendi até ver o que você queria dizer.”
Rubi sente-se mais confiante diante da análise de Byron, e esboça um leve sorriso, mas logo sua postura se torna mais séria. Seus olhos se estreitaram e ela aguça os sentidos, pois ao longe escuta o som de folhas secas sendo pisadas e galhos se partindo, quebrando a tranquilidade do momento. “Acho que eles estão vindo”, ela avisa.
Antes de partir, o diabo ergue o fraco vazio para a diaba. “Pretende usar isso ou eu posso destruí-lo?”, ele pergunta.
“Eu não sei, deve ser difícil achar vidro inteiro por aqui, né? Talvez devêssemos guardar. Mas por que você quer destruir?”, ele pergunta, achando aquilo estranho.
“Esse objeto ficou com você por muitos dias. Não podemos deixá-lo em qualquer lugar. Com certeza já se impregnou com sua magia.”
Rubi sente um mau pressentimento ouvindo aquilo. “E… por que isso seria ruim?”, ela pergunta, com uma leve preocupação. “Eu não sei nem o que é essa impregnação aí.”
Byron gasta alguns segundos pensando na melhor forma de responder aquilo. “Objetos próximos a seres como nós absorvem um pouco da nossa magia com o tempo e se adaptam a nós”, ele explica. “É como minhas roupas, elas se ajustam e ficam etéreas quando me transformo.”
“Certo, isso aí eu entendi.”
“Porém, essa impregnação dura por muito tempo, mesmo longe do dono, eles ainda podem ficar ligados. E, por conta disso, é possível fazer rituais e algumas magias envolvendo esses objetos.”
“Isso… não parece uma coisa boa”, Rubi fala, agora com uma preocupação tratável.
“Definitivamente não é. Sempre que possível, devemos recolher ou destruir qualquer objeto desse tipo para evitar dor de cabeça”, diz Byron, depois ergue o vidro em sua mão. “Mesmo esse único frasco, no meio dessa floresta. Quem sabe nas mãos de quem ele pode estar daqui a duzentos anos?”
Rubi trava, sentindo um calafrio que percorre todo seu corpo. É por isso que ele não tinha muita coisa no covil…, ela conclui e relembra alguns dos passos de sua longa jornada até aquele momento. Acho que eu me ferrei legal.
Os sons dos animais se movendo na floresta ao redor se tornam mais audíveis, ao ponto de Byron começar a percebê-los. “Já demos uma boa distância ao nosso colaborador, creio que já podemos partir”, ele responde, firme.
O Byron tem razão, ela pensa, recobrando sua expressão decidida. Depois eu me preocupo com isso. Temos coisas mais importantes pra resolver agora.
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