Capítulo 61 - Um bolo simples
O javali e a demônio trocam olhares, as pupilas rosadas emanando uma leve luz fraca. O animal, alheio ao perigo que corre ali, foca-se apenas na figura à sua frente, ao ponto de ignorar completamente os arredores. Bastante contente pelo toque dela, nem a dor latejante de sua ferida o incomoda mais.
Com a mão sobre a testa do javali, Rubi também o encara com um sorriso leve entre os lábios, carregando um sentimento alegre similar ao animal, porém com seus olhos exibindo um olhar um pouco mais sombrio, pois sente a vida dele pulsando entre seus dedos.
Será que ele ainda se sentiria tão confortável se entendesse o que estávamos conversando? Ou se soubesse o que eu vou usar agora?, ela se pergunta, impressionada. Porém, antes de se mover, sua feição muda, ela se mostra momentaneamente hesitante.
Espera, se eu vou usar o dreno maior, aonde é que eu vou…, Rubi analisa, olhando todas as partes da face dele. Os pelos grossos, o cheiro forte e o focinho úmido parecem intimidá-la de alguma forma. Eu devia ter escolhido um alvo mais limpinho.
Brok, posicionado atrás de Rubi, segura o machado erguido em uma postura cautelosa, enquanto foca sua atenção no animal. O que ela vai fazer com ele?, ele se pergunta, intrigado.
Em contraste, o diabo, um pouco ao lado, se mostra calmo e aguarda diligentemente pela ação dela.
A feição de Rubi volta a exibir firmeza. Não é tão difícil assim, certo? Sempre foi fácil antes, ela pensa, fixando o olhar na presa do animal. Se eu quiser mesmo testar essa habilidade, vai ter que ser ali mesmo. A succubus respira fundo e concentra-se.
Determinada, ela aproxima a cabeça do javali e curva os lábios em um beijo nas presas brancas dele. Uma fina aura azul no ponto onde ela encosta no javali que ainda não mostra nenhuma reação.
Com um movimento rápido e delicado, ela afasta os lábios dele e a energia azulada a acompanha, desprendendo-se do corpo do animal. Num instante cruel, a alegria que ele sente se converte em uma dor aguda que rasga cada fibra de seu ser.
Assustado, ele arregala os olhos vermelhos, agora sem a luz rosa. Suas pupilas começam a ficar esbranquiçadas e as pálpebras lentamente se fecham. As únicas coisas que ele enxerga, naquele breve momento, é a succubus esboçando um sorriso diante dele.
Um grunhido seco e sufocado escapa de sua boca. Quase como um misto entre um grito de raiva e um pedido de ajuda. Suas pernas fraquejam, incapazes de sustentar seu peso, e por fim cedem, fazendo o animal desabar com um som pesado.
Rubi sente aquela energia calorosa fluir para dentro de si, entrando por seus lábios, passando por seu pescoço e se espalhando por seu corpo. O prazer que ela tem a deixa levemente eufórica e sua cauda reage se enrolando por baixo do casaco.
Foi bom e com certeza ele tinha um bocado de energia vital, mas…, ela avalia, enquanto passa a ponta do polegar no lábio, limpando-o. Dessa vez, foi diferente.
Quando Brok vê o javali cair imóvel, sente segurança e se aproxima para verificar. Ele logo se espanta ao notar que o animal já nem respira mais. “Ele… morreu?”, ele pergunta.
“Ele já estava ferido”, Rubi responde, mostrando-se distraída. “Então, aquilo só foi o golpe de misericórdia.”
Byron também se aproxima e posiciona-se ao lado do orc. “A senhorita Rubi consumiu toda a energia vital dele”, ele complementa, pragmático.
Brok abre os olhos, com compreensão, depois se volta à demônio. “É assim que… você se alimenta?”, ele pergunta. “Pensei que fosse… provar a carne dele também.”
“O quê?!”, Rubi reage, surpresa e sem jeito. “Não!… ou seria, sim? É um pouco dificil… Mas de qualquer jeito eu quero experimentar a carne dele mais tarde.”
“Hummm”, murmura o orc. “Magia e demônios são… complicados pra mim.”
De certa forma… Eu entendo como você se sente, Rubi pensa, olhando para o animal morto no chão. Sua expressão baixa deixa transparecer um incômodo sutil.
Byron prontamente reconhece isso. “Algo errado?”, ele pergunta, preocupado.
“Não é nada sério, é só que…”, Rubi começa a falar, divagando. “Senti que faltou algo.”
Não achei que fosse possível sentir gosto disso, mas, mesmo tendo mais energia, a do Couby parecia melhor, ela pondera, sentindo-se um pouco desapontada. A do javali parecia sem graça, como comer um bolo simples. Já a do Couby era mais caprichada, como uma fatia com recheio e cobertura.
“Acho que… prefiro drenar de humanos. O sabor é… um pouco melhor”, a demônio completa, ainda reflexiva e até um pouco distante.
“Entendo…”, diz Byron, com um ar de compreensão. Em seguida, olha para Brok. “É bom saber disso, não é?”
O diabo acena levemente, e o orc retribui de imediato, em uma conversa silenciosa.
Antigamente, era bem menos problemático usar essa habilidade, ela divaga. Só de pensar nas criaturas gosmentas e peludas em que eu já usei o Beijo do Vazio me dá agonia.
Ela exala um ar profundo. “Já é bom ir averiguar de onde ele veio, né?”, a demônio pergunta, querendo mudar o assunto.
“É um bom momento”, diz Byron, concordando. “Só precisamos ter cautela para não cairmos em uma armadilha.”
O orc dá um passo à frente, em direção à floresta. “Antes de irmos… preciso verificar algo”, diz Brok.
Ele se aproxima de uma árvore próxima ao corpo do javali e desliza os dedos pelo tronco com atenção. Circunda-a lentamente e, após uma inspeção cuidadosa, passa para outra árvore, repetindo o mesmo gesto. Os diabos observam em silêncio enquanto o orc examina várias árvores, até que ele finalmente para diante de uma específica.
Com um movimento firme do machado, Brok raspa o musgo que cobre o tronco, revelando uma cruz talhada na madeira.
“O que é isso?”, Byron pergunta.
“É uma marca de tribo”, o orc responde. “Por aqui… viviam outros orcs.”
“As árvores perto da sua tribo também tinham umas marcas, não é?”, Rubi questiona.
“Nós marcamos para avisar que naquela terra já tem orcs. Temos que ficar… refazendo elas o tempo todo, se não, elas somem e causam briga”, Brok explica. “Essa estava escondida porque Estoratora mandou os orcs daqui embora. Então, não tinha ninguém mais para cuidar dela. Se tem alguém caçando aqui… não é alguém que vive nessa terra.”
“Acha que podem ser os orcs de Estoratora?”, Byron questiona, sério.
“Eu não… sei. Aqui é bem longe de onde a tribo deles devia estar.”
Rubi reflete um pouco. “O território deles já deve estar infestado de garras-brancas”, ela pontua. “Acha que eles já podem ter deixado o lugar para ir para outro mais seguro?”
“É difícil. Ainda… não é a época”, Brok nega, acenando. “Mesmo que eles fossem embora, o lugar para onde eles vão é para o norte da floresta, bem longe daqui. E também, eles têm que proteger a cidade para o dragão.”
“E, considerando como são os dragões, ele não vai querer deixar o covil dele tão facilmente”, Byron supõe, pensativo. “Ele vai querer ficar por lá até o último momento que puder.”
“Então, o melhor agora é tentar encontrar esses caçadores e obter algumas informações”, Rubi conclui. “Nesse caso, é melhor vocês irem na frente e eu ficar atrás.”
Byron e Brok trocam um olhar surpreso, as sobrancelhas erguidas, sem entenderem de imediato aquele pedido.
“Por que o motivo disso?”, Byron questiona.
“Capturar pessoas vivas é… complicado para mim”, admite Rubi, com uma ponta de constrangimento. “Se eles estiverem caçando, minha habilidade de charme provavelmente não vai funcionar.”
E assim eu também posso ficar de olho no nosso lanche, ela pensa, desviando o olhar para o javali. Não quero que algum engraçadinho roube a gente.
“Se esse é o seu pedido, eu farei”, diz Byron, abaixando a cabeça em um sinal de reverência.
“Eu posso fazer isso”, diz Brok, assentindo, com um urro baixo ao final.
“Obrigado. Mas não é como se eu não fosse ficar fazendo nada”, ela continua. “Vou ficar atrás dando apoio.”
Afinal, essa é a minha especialidade, pensa Rubi.
Com um gesto, ela aponta para um dos galhos mais altos das árvores. “Sentinela cinzenta”, ela proclama.
Uma névoa cinzenta se forma na ponta de seus dedos, materializando-se em um corvo espectral. Ele alça voo e pousa no galho indicado. Assim que ele se acomoda, a demônio foca sua atenção em Byron e o pássaro também faz o mesmo.
“Ele vai seguir vocês e eu vou ficar de olho. Se algo acontecer, vou poder ajudar”, a demônio afirma segura, fazendo um sinal com a mão.
Byron exibe uma expressão determinada, seus olhos irradiam confiança. “Pode ficar tranquila”, diz ele com uma voz serena, mas carregada de intensidade. “Se encontrarmos alguém, darei o meu máximo para que a senhorita não precise intervir.”
Brok sente a energia fervente do diabo ao seu lado e, instintivamente, dá um passo para trás, apreensivo.
Ele sabe que é para capturar as pessoas vivas, né?, Rubi pensa, preocupada, enquanto observa a chama ardente nos olhos de Byron.
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