Capítulo 66 - Presas faceis
Um orc recobra a consciência lentamente, sentindo uma dor aguda no centro do peito, enquanto o cheiro familiar de carne assando invade suas narinas. De olhos fechados, ele escuta uma conversa acontecendo nos arredores.
Aos poucos, ele abre os olhos, e a luz quente do sol que ilumina o lugar ainda o encandeia. Mesmo com sua visão turva, ele consegue discernir que, mais adiante, há um grupo de pessoas próximo a uma fogueira ao fundo.
“Senhorita Rubi…”, diz uma elegante voz masculina. “Creio que o último está acordando.”
“É verdade”, alguém que possui uma voz feminina concorda.
Em meio às imagens turvas das pessoas, uma começa a caminhar em sua direção. Ele consegue distinguir que é alguém que possui uma pele mais rosada e uma roupa branca.
Quando ela se aproxima, se abaixa, leva a mão ao queixo do orc e ergue a cabeça dele. Nesse instante, a imagem distorcida se torna clara e ele percebe que quem está diante dele é Rubi, encarando-o diretamente com suas pupilas rosadas brilhantes.
Seus olhos se arregalam, mas antes que ele possa gritar ou tentar fugir, o brilho das pupilas rosadas dela invade os olhos dele como uma chama que consome lentamente. Sua visão escurece por um instante, apenas para retornar com um tom vibrante e artificial.
Pupilas essas que são exatamente as mesmas dos outros quatro orcs que estão sentados atrás dela. Todos eles exibem uma expressão distante e exausta, seus hematomas e arranhões ainda se destacam sobre sua pele verde.
De pé, em frente aos prisioneiros, Brok observa-os com olhos firmes e a postura rígida de um soldado em serviço. Já Byron, encostado em um tronco atrás dos prisioneiros, aparenta descontração, mas seu olhar atento rastreia cada movimento deles com precisão calculada.
Alguns gravetos repousam ao redor das chamas da fogueira ao fundo, sustentando pedaços de carne rosados e cobertos por uma camada de gordura brilhante. Enquanto assam lentamente, o aroma suculento se mistura ao ar, acompanhado pelo som ritmado da gordura que crepita e borbulha sobre as chamas.
Após o charme bem-sucedido, Rubi esboça um sorriso.
“Eu…”, começa a falar o orc, incerto sobre o que ocorre ali.
“Se sente e fique quietinho, certo?”, ela pede, interrompendo-o gentilmente. “Estou fazendo algumas perguntas ao seu líder. Só fale se alguém pedir ou se algum dos seus companheiros falar algo que não bata com o que você responderia.”
O orc de feições jovens, hipnotizado, acena a cabeça com uma feição estática e, conforme o pedido, se senta, com alguma dificuldade, com as pernas cruzadas.
Rubi se levanta e se encaminha até o lado de Brok. A ponta de sua cauda, que escapa por baixo do casaco, balança animada. “Com esse, são cinco tentativas e cinco sucessos”, ela comenta, orgulhosa. “Acham que eu sou bonita nos padrões dos orcs?”
O orc sério fica sem jeito, olhando para a demônio de cima a baixo. “Hum…”, ele murmura, um eco profundo e grave que sair de sua garganta, mentalizando sua resposta. “Nós não temos isso de… padrão”, ele começa, mas sua voz enfraquece ao olhar para Rubi, como se temesse ofendê-la. “Valorizamos força. E isso você… tem. Só que…”
“Músculos”, Byron interrompe, direto, cortando o orc.
Rubi ergue o olhar, surpresa. “O quê?”, ela questiona, sem entender.
“Orcs não têm de fato um critério de beleza muito elevado. É até comum a copulação de orcs com membros de outra espécie. Uma prova disso é que, em alguns lugares, é mais provável encontrar orcs mestiços do que elfos mestiços. Eu diria que o maior critério seria que eles preferem parceiros saudáveis, mas também é fato que preferem parceiros grandes e musculosos”, Byron continua, sem tirar os olhos do grupo de prisioneiros. “Creio que, para o nosso amigo, a sua beleza delicada não seja a mais atraente.”
Rubi olha de volta para Brok. “É sério?”, ela pergunta, os olhos brilhando, buscando validação.
O orc baixa o olhar antes de responder. “Mulheres grandes… têm filhos fortes e que lutam melhor”, ele admite, com relutância. “Mas… a sua pele parece saudável.”
Rubi acena com a cabeça, um olhar de compreensão em seus olhos ao ouvir a resposta de Brok. Eu achei que estava com a bola toda com os orcs. Mas, pelo visto, alguém como a Helga faria mais sucesso aqui, ela reflete, ouvindo a risada da grande guerreira em sua mente. Esse lugar selvagem é bem a cara dela mesmo.
Ela desvia o olhar para os prisioneiros, seus lábios se curvando em um sorriso leve e confiante. No final, esses carinhas só são bem fracos contra minha magia, ela conclui, com sua cauda serpenteando mais animada ainda. Não há por que não aproveitar disso. Não é todo dia que eu acho uma presa fácil assim.
“Certo, vamos continuar”, diz Rubi.
A succubus fixa a atenção no último orc da fila, o guerreiro mais velho, com a testa marcada por um calo. Ele mantém o olhar baixo e é o prisioneiro mais próximo da fogueira.
“Olhotorto, você dizia que vieram para cá em uma tarefa especial”, ela começa. “Por quê? Qual era essa missão?”
“… Nós viemos… limpar esse lugar”, o guerreiro responde com sua voz lenta e arrastada. Seu olhar entreaberto, com as pálpebras tremendo, é o único movimento visível além de sua respiração pesada.
Esse aqui é o que mais sabe, mas, desde a hora em que eu o coloquei em transe, já deu pra sentir que ele é um pouco relutante em falar, Rubi pensa, encarando o orc. Provavelmente, ele é o que tinha mais chances de resistir ao charme.
“E o seu chefe veio também? Tem muitos outros da sua tribo por aqui?”, ela continua.
“… Não. Estoratora não está por aqui. Nessa parte da floresta só tem eu… esses aqui e outros três… que ficaram fazendo vigia no nosso acampamento desse lado da floresta.”
“Vão se… mudar para cá?”, Brok questiona.
“… Não.”
“E onde… está o Estoratora?”, Brok pergunta diretamente.
“… Ele… Ele…”, o prisioneiro começa a responder, porém, dessa vez, apresenta maior relutância.
“Responda. Por favor, Olhotorto”, pede Rubi, sua voz doce, mas com um tom que não deixa espaço para recusa.
“Estoratora… está caçando os ursos na terra para onde nossa tribo vai nessa época”, o guerreiro responde, cedendo à ordem.
Com a resposta dada, ele abre a boca em um som abafado, quase como um rugido preso, enquanto sua cabeça se move de forma brusca. Seus ombros tremem, e o desconforto em seu rosto é quase palpável, revelando o conflito interno que sente.
“Então diga, por que estão se livrando dos monstros daqui afinal?”, Byron demanda.
“O dragão… ele quer vir para essa terra. Por isso limpamos.”
Todos se calam. Brok, Byron e Rubi trocam olhares e acenos em uma conversa silenciosa. O crepitar das chamas e os sons distantes da floresta preenchem a quietude daquele momento.
“E por que ele vai vir para cá?”, Rubi questiona.
“… Cahjiah está sendo invadida pelas garras-brancas”, ele responde. “Estoratora disse que… não… vai aguentar muito tempo.”
“Há algum motivo específico para que o dragão deseje esse lugar?”, Byron pergunta, desconfiado.
“Foi… só um pedido deles… Não disseram nada.”
Rubi fica calada, refletindo por um instante. Não pode ser à toa que ele desejou esse lugar, ela analisa.
“Como é esse dragão?”, o diabo questiona, insistindo.
O guerreiro franze os olhos, mais uma vez relutante em responder.
“Responda agora”, Rubi ordena, usando um tom autoritário.
Se o Olhotorto ficar nessa recusa, vamos só estar gastando nosso tempo à toa, ela pensa, incomodada.
O orc exala um ar profundo antes de continuar. “Ele é grande… maior do que aquele monstro vermelho que nos… atacou. E também é verde, com pescoço… longo que se move como uma serpente.”
Espera, Verde?, ela pensa. Com aquela informação, a demônio rapidamente desvia o olhar pelo ambiente atrás do orc. Os altos troncos espaçados e cobertos de musgo verde a fazem compreender algo.
Ela olha para seus companheiros com um ar de dúvida. “Acham que ele viria aqui só por… comodismo?”, ela pergunta, ainda carregando um pouco de incerteza.
Os dois ficam momentaneamente em dúvida quanto ao que ela insinua.
“O que a leva a pensar assim?”, diz Byron.
“Bem, é um dragão grande e verde. Não é como se ele pudesse viver em qualquer lugar. Aqui as árvores são altas e espaçosas, ele deve conseguir se camuflar e até mesmo voar por aqui”, ela explica, apontando para a floresta. “Eu não imagino ele conseguindo fazer isso naquele trecho onde encontramos o Brok, por exemplo.”
Byron fica pensativo. “Isso faz sentido”, ele comenta. “Os dragões são conhecidos por preferirem hábitos que requerem pouco esforço.”
“Mas ainda… há algo estranho”, Brok comenta.
“O que?”, Rubi questiona.
“Ainda que os porcos estejam mais fracos do que as garras-brancas, por que ele mandaria tão poucos se é um pedido do dragão?”, Brok responde.
“Oito são poucos?”, Byron questiona.
“Sim”, Brok responde. “Eu mandaria o dobro, só para garantir.”
Rubi se volta para o prisioneiro e pergunta, “Por que isso acontece?”
O prisioneiro olha profundamente nos olhos dela. “É… por causa dos elfos. Se andarmos em grupos grandes sem Estoratora, eles aparecem e atacam.”
Brok franze as sobrancelhas, reagindo àquilo com estranheza. “Os elfos não deviam estar aqui”, Brok comenta, a voz carregada de raiva e surpresa.
Rubi também fica um pouco confusa e olha para Byron. “Tem elfos por aqui?”, ela questiona. “Eu sei que tem outras raças nessa floresta, mas eu não esperava elfos.”
“Sim. Sei que há uma sociedade de elfos sombrios que vive por essas terras”, o diabo responde. “Mas duvidei que nós encontrássemos tão cedo algum deles.”
“Por quê?”
“Eles vivem em regiões sombrias, como cavernas ou cidades subterrâneas”, diz Byron. “Lugares onde a luz quase não chega.”
“Tem uma parte da floresta onde é sempre noite”, diz Brok. “Além de ser difícil se enxergar, tem muita magia naquele lugar… por isso os orcs não vão naquela parte.”
Por um segundo, achei que fosse encontrar uma vila cheia de pessoas parecidas com a Arielle, Rubi pensa.
“Sabe algum motivo de terem elfos por aqui?”, ela pergunta, encarando o prisioneiro.
“O dragão… mandou Estoratora mostrar sua força a eles e ele mostrou. Mas eles não respeitam a nossa força e agora invadem nossas terras…”
É isso que dá mexer com quem está quieto, Rubi avalia. Esses caras não cansam de arrumar problemas? Agora eu tenho certeza, se eu cuidar do dragão, vou estar fazendo um favor pra um bocado de gente.
Brok baixa o olhar e emite um murmúrio contínuo que deixa clara sua desaprovação. “Isso… vai dar problema”, ele diz. “Agora eu entendo… Estoratora nunca teve o controle de nada.” Sua voz transbordando desdém.
O diabo, atrás dos orcs, sorri satisfeito. “Eu lhe avisei”, comenta, vangloriando-se.
“Bem, como nenhum dos outros disse nada, todas as informações que o líder disse devem bater com a deles. Nesse caso, eu já descobri tudo o que eu queria”, diz Rubi, confiante. “Tem mais alguma coisa que vocês dois querem perguntar?”
O orc e o diabo trocam olhares antes de negarem, balançando a cabeça lentamente.
“Então, já que ninguém tem mais nada a falar…”, a demônio começa. “Vamos ver o que os prisioneiros acham do acordo que eu vou propor. E depois podemos fazer nossa refeição.”
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.