Índice de Capítulo

    Neve rala cai de nuvens cinzentas sobre uma planície branca, já coberta por gelo. No horizonte, montanhas altas circundam a região e no chão, árvores similares a pinheiros altos e escuros decoram pontualmente a paisagem. 

    No meio do vasto tapete gelado, uma mancha vermelha quebra a monotonia. Estalos e estalidos secos cortam o silêncio.

    Metade de uma carroça de madeira queima, cercada por seus próprios destroços misturados aos de várias outras. Caixas quebradas e objetos variados estão espalhados pelo chão.

    Quatro cavalos jazem próximos, mutilados por inúmeros cortes. Sob os corpos mutilados, o sangue se espalha em poças escuras sobre a neve.

    Há alguns metros dali, estão cinco cavaleiros humanos caídos inertes no chão, sem mesmo o movimento da respiração. Suas armaduras estão perfuradas, quebradas e com partes faltantes. Das brechas abertas, mais sangue escorre pelo chão. 

    Um pouco à frente, um bando de sete homens e mulheres, trajados com robes vermelhos, onde a maioria porta espadas e outros seguram cordas, cerca um grupo de uma dezena de pessoas com vestes comuns e desarmadas.

    Aqueles armados esboçam olhares de empolgação, como bandidos que veem uma carteira esquecida na mesa. As pessoas tremem de medo, acuadas pelos que se aproximam como predadores.

    “Por favor, não…”, suplica um deles.

    “Tenham piedade…”, insiste outro.

    Os pedidos são inúteis. O avanço calculado e metódico do bando vermelho continua lentamente, tal qual predadores indo lentamente contra as presas antes do abate.

    Sobre o ombro de um deles, pousa um demônio pequeno como uma coruja, com a pele rubra, asas membranosas, garras afiadas, orelhas pontudas, de cauda e chifres curvados longos, usando roupas azuis, similares a robe.

    “Vão com calma”, alerta ele, demonstrando um semblante sério e olhando fixamente para as pessoas. “Precisamos do maior número deles vivos e inteiros.”

    O homem sob o demônio, eufórico, ri. “Certo”, diz ele, assertivamente. “Sangue ao lorde do sangue…”

    Todos os demais membros do bando avermelhado acenam. “… Sangue ao lorde do sangue…”, eles repetem de maneira uníssona, como uma prece profana.

    Os cercados recuam um passo. O medo intensifica-se. E a certeza de que algo muito ruim está prestes a acontecer os envolve como o frio da neve, algo inevitável, indiferente e cruel.

    Mais adiante, há uma grande figura emanando uma aura ardente, que faz o gelo no chão virar vapor, um demônio, quase três vezes mais alto do que qualquer pessoa na redondeza, com uma pele vermelha como lava viva, pulsando como se escapasse da boca de um vulcão.

    Seus músculos são robustos, dos dedos à ponta da cauda. Possui asas membranosas e usa uma armadura negra como carvão que cobre seu peito e membros. Sua cabeça é larga, com os chifres saindo pelo lado, curvando-se para frente e na ponta se dobram-se ao céu. Os olhos dele são profundos e ardem como uma forja.

    A neve que cai do céu próximo a ele desaparece no ar sem deixar resquícios. Transformada instantaneamente em vapor ao entrar nos domínios da aura que o demônio emana.

    Ele empunha em mãos uma alabarda cinzenta, inteiramente feita de metal, com lâmina e extremidade afiadas como navalhas. A arma chia com sangue residual nela fervendo sem nem mesmo gotejar.

    Aos pés do demônio está outro cavaleiro caído com uma fenda aberta na armadura, completamente sem vida. 

    Metros à frente do demônio, um último guerreiro se mantém de pé. Um homem adulto, não muito velho, com barba negra, trajando a mesma armadura metálica que os demais. 

    Uma trilha vermelha escorre do cabelo até a bochecha. Ele arfa, empunhando uma espada longa, que treme entre suas mãos, exibindo preocupação.

    Ao fundo, os gritos desesperados ecoam. Pedidos de socorro e piedade que o guerreiro sabe que não pode atender. A impotência faz um amargor seco, pior que veneno, subir pela garganta do cavaleiro, ameaçando sufocá-lo antes mesmo que o demônio possa.

    “Por quê?! Por que um ato tão desproporcional e sem sentido?!”, ele questiona. “Não viemos até aqui para lutar. Somos apenas uma escolta!”

    O demônio fica calado e quieto, como se ponderasse se deveria responder.

    “Responda!”

    “Vocês escolheram isso…”, diz o demônio, com uma voz grave e estridente. “Dei uma chance e vocês ergueram armas.”

    “Escolha?! Chama submissão de chance?!”, retruca o cavaleiro indignado. “Meus homens e eu jamais escolheríamos isso!”

    “Eu sei. Por isso, os outros têm mais valor se capturados vivos. Vocês, guerreiros, por outro lado, só têm valor para mim quando o sangue de vocês escorrer.”

    O demônio avança de súbito, as asas se abrem e ele salta como um projétil vivo, planando rente ao chão. A alabarda ergue-se em sua mão esquerda, preparada para a estocada.

    O cavaleiro solta um grito de guerra e levanta a espada num reflexo, mirando na cabeça do demônio. Porém, antes mesmo da lâmina ter chance de encostá-lo, a ponta da arma inimiga atravessa sua armadura como se fosse papel, perfura o tórax e crava-se no solo com um som seco e abafado.

    O homem sente as suas forças esvaindo-se a cada instante. O metal quente crepita dentro de seu tórax, queimando carne, osso e esperança, e a aura do demônio faz a pele arder como se estivesse no interior de uma fornalha. 

    Os dedos do guerreiro perdem a força. A espada cai. E então, o monstro se inclina, ficando cara a cara com o homem.

    “Não fale de proporcionalidade ou de coisas sem sentido para mim”, diz o demônio, como um sussurro baixo que só o cavaleiro pode escutar. “Não foram vocês que me aprisionaram nesse lixo que vocês chamam de mundo, mas farei questão de descontar toda a minha raiva em qualquer oportunidade que surgir. Queriam Abbadon, o diabo da ira, e vão ter ele.”

    O guerreiro tenta gritar, mas já não há forças em seu corpo para exalar um único ruído. Seus músculos amolecem e a vida se esvai completamente de seu corpo. 

    A planície branca volta a ficar silenciosa. Os gritos ao longe se apagam como brasas na neve.

    O demônio se ergue. Flutuando atrás de sua cabeça, uma auréola translúcida vermelha, com sete espadas cruzadas no centro. A do meio brilha mais intensamente que as outras, com um tom mais rubro e menos opaco que as demais.

    Erguendo a alabarda diante do rosto, ele encara o reflexo trêmulo no metal, como diante de um espelho profano.

    Uma pronta, constata o diabo. Faltam seis.

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