Capítulo 051 - Quarentena negra!
Capítulo 051 – Quarentena negra!
O peso do preconceito atingiu os algozes. Eles perambulavam pelas ruas recebendo olhares de julgamento, os mercadores estavam oferecendo preços exorbitantes pelos seus produtos.
Comércios fechavam suas portas ante suas presenças, transeuntes mudavam suas rotas para evitar cruzar caminhos. Experimentavam uma pequena fração de como os necromantes eram tratados.
Uma reviravolta interessante, pois, desde a guerra contra os goblins e o grande auxílio de Kassandra, os necromantes passaram a ser mais respeitados. Dalila talvez fosse a única exceção, pois era a única algoz a receber o broche do Esquadrão do Centro da Praça. Ayel entregou a contragosto, sim, apenas cedeu depois de Victoria pedir muito.
Tanto que ela acabou sendo responsável por ir ao comércio trazer os farnéis de que a guilda precisava, sendo a única que continuava saindo constantemente do templo da morte. Mesmo assim, a mulher de pele de caramelo não recebia metade do tratamento que caia nas graças do restante do esquadrão.
Mas esse não era o maior problema que a guilda enfrentava.
O templo estava silencioso como um túmulo, exalava praticamente a própria morte daquelas paredes escuras, junto de um frio perene e tardio.
O aroma dos incensos de mirra às vezes ficava tão forte que sufocava os assassinos, mas entre permanecer na prisão de Maut Ka Mandir ou sair e enfrentar o reino inteiro, os algozes mantiveram-se reclusos em sua quarentena.
— Não podemos manter essa mentira para sempre. — murmurou Tajid, o algoz mais velho entre os presentes.
No centro de uma das salas do local, uma grande mesa de mármore negro reluzia sob a iluminação fraca, em cima dela repousava uma máscara branca e inexpressiva… desprovida de ornamentos ou qualquer emoção.
Aquela máscara pertencia a Mudamir, o primeiro, o grande fundador dos algozes.
E aquele era o maior dos problemas, pois fazia anos que Mudamir estava morto.
Quando ocorreu, ao invés de informar o rei, que na época ainda era Aiden. Anusha e o restante dos algozes mais habilidosos decidiram encobrir a morte para evitar ataques de outras guildas, alegando que o líder deles estava em um contrato importante, em asilo, em exílio.
E isso fez com que Anusha se tornasse o líder algoz, debaixo dos panos, se passando como um mero representante de Mudamir.
Pois, Anusha havia perecido.
Sem Mudamir e sem Anusha, os mais velhos estavam preocupados em como essa notícia reverberaria em um reino que estava odiando os algozes.
Unidos, decidiram transformar Mudamir não mais em alguém, mas sim em um símbolo. Um entre eles seria escolhido para assumir a identidade do líder algoz e agir como se nada tivesse acontecido. Agir como se ele estivesse retornado de viagem e pego de volta seu posto mais alto como senhor de Maut.
O salão que estavam utilizando para essa reunião era vasto e imponente, mesmo que preenchido por poucos móveis, além da mesa central de mármore negro no centro, rodeada por cadeiras escuras quanto.
O estalar das lamparinas de óleo eram as únicas coisas que tiravam o local do silêncio absoluto.
— Anusha se foi, ele era a solução mais fácil. Agora que ele não está mais entre nós, Mudamir precisa retornar da sua viagem…
O mais velho entre eles prosseguia, Tajid carregava um tapa olho devido a um contrato antigo.
Havia quatro desses homens, os mais habilidosos, mas também os com a idade mais avançada, que estavam próximos de aposentarem as suas katares e isso era um feito milagroso: algozes não viviam muito.
Todos concordaram em silêncio ao escutarem o mais velho. Se a guilda soubesse que o Mudamir sempre esteve morto, laços se romperiam, os contratos se tornariam dúvidas.
Toda uma organização se dissolveria em um caos.
Logo, o novo Mudamir precisava emergir das sombras e retomar as rédeas.
Para isso, um deles deveria abdicar da sua identidade, precisaria morrer para o mundo e renascer como o fantasma do líder.
— Quem será o próximo? — Outro cortou o silêncio enquanto se encostava na cadeira.
— Não temos tempo para discussões longas… O reino lá fora já está começando a fazer perguntas, se demorarmos… As suspeitas todas vão virar certezas na boca do povo. — vociferou o terceiro.
Aqueles dois eram Dorian e Rasmus, o primeiro tinha uma pele tão clara que era chamado de albino, já o outro, sempre utilizou penas negras em seus trajes, que foi apelidado de corvo.
— Aquele que estiver disposto a desaparecer, não apenas isso… Precisa ser digno, Mudamir nunca foi apenas um nome. Ele foi o grande terror no meio da escuridão. — Concluir Tajid.
— Lavish, talvez? — sugeriu Dorian.
— Não… — Kallitus quebrou o silêncio, era o quarto dos mais velhos, seu rosto estava escondido no capuz. — Desde a morte de Niyati, o senhor Solanki adotou de vez aquela chamada Tinity, ele é o pai da criança e não podemos fazer com que ele perca sua identidade agora.
Um silêncio pesado e mortal tomou conta da sala enquanto todos fitaram a máscara, como se a encarar pudesse dar alguma resposta.
Todos ponderavam, e obviamente que nenhum daqueles algozes temia a morte, entretanto, a morte da própria identidade era algo completamente diferente.
Seria uma aniquilação completa do ‘eu’, um sacrifício absoluto e soberano.
— E se convocássemos o…
Dorian foi interrompido pela voz de Tajid que o cortou completamente.
— Não podemos permitir que seja alguém fora de nós quatro, somos os últimos discípulos de Mudamir que ainda vivem. É um segredo valioso que podemos compartilhar apenas entre nós, mais ninguém. Nunca.
Ele foi duro, ríspido, mas estava correto. Dorian assentiu com a cabeça, calando-se.
As paredes, talhadas com inscrições antigas, lembravam o sânscrito que existia adornado nas fontes perto da entrada do templo.
Rasmus desviava o olhar para um dos cantos do recinto, no chão onde havia algumas katares empilhadas de forma ordenada, eram as katares de treino, feitas com madeira escura. Ele encarava os entalhes, as marcas claras de impacto e as rachaduras que gritavam a força com a qual eram usadas.
Era assim que pararam para refletir, encarando os cantos, fitando as paredes. Evitavam olhar entre si, isso poderia influenciar qualquer decisão. Seria necessário um voluntário ou os quatro viveriam eternamente naquele impasse.
No lado oposto, repousava calmamente uma pilha de pergaminhos em um altar de pedra escura que passava despercebido. Aqueles eram os contratos antigos, registros de mortes de tempos de outrora. Os selos feitos da cera vermelha das velas já estavam rompidos e o sangue dos alvos já havia sido derramado.
Os algozes sentiam um frio em seus âmagos, um clima tenebroso e sinistro no meio daquele silêncio assustador. Eles sentiam a presença de Mudamir, que observava eles como um espectro que julgava cada ação, era assim que viam.
Para os algozes, a morte era o fim, e depois disso, a inexistência, nada mais.
Porém, sentiam o fundador, como se suspirasse no vazio da escuridão.
Uma ansiedade latente, um suor frio.
— Sem esquecer do que lemos dentro dos aposentos de Anusha, aquela carta é de extrema importância e precisa chegar no rei.
— Isso, sim, mas além de retomar o controle da guilda, um de nós, como Mudamir também vamos precisar enfrentar o bárbaro e o seu preconceito.
Dorian e Ramus trocavam falas entre si, uma descoberta nos aposentos de Anusha seria o suficiente para fazer com que a coroa pudesse perdoar os algozes, porém, como alcançar Ayel que agora parece completamente inacessível para os que vivem em Maut?
“Quem se arriscaria assim?”
— Está certo… Eu farei.
A voz veio de Kallitus, ele era um dos mais letais dos quatro. Carregava um semblante firme e sem hesitação alguma.
— Se isso é necessário para a continuidade da guilda… Então me tornarei Mudamir.
Tajid encarou-o por um bom momento, assim como o albino e o corvo, nenhum deles questionou sua capacidade, pois Kallitus inúmeras vezes já havia provado sua lealdade.
Um exímio assassino seria um bom caminho a percorrer.
— Então será você — disse o algoz velho com o tapa olho em meio a um suspiro. — Mas saiba que, ao aceitar isso… Você morre hoje. Seu nome, sua história, seu passado… Tudo isso vai deixar de existir.
— Eu sei — concordou Kallitus.
— Então… selaremos isso.
Dissera Dorian enquanto estendia a mão sobre a mesa de mármore negro, sacando uma adaga e cortando a palma da sua mão em cima da máscara inexpressiva.
Rasmus também o fez, corando sua palma e deixando jorrar em cima da máscara. Tajid repetiu, proferindo um cântico enquanto se deixava sangrar:
— Que o antigo Mudamir descanse. Que o novo… Erga-se.
Kallitus se ergueu e se afastou, enquanto observava a máscara branca tingir-se de um rubro escuro e denso.
Assim que terminaram, os outros três também se ergueram e andaram até o escolhido, faziam uma corrente ao redor dele.
A máscara estava com Tajid, que entregou sutilmente a Kallitus.
Um ritual precisava ser feito, uma morte precisava ser entregue, mesmo que simbólica.
Com a máscara em mãos, Kallitus se ajoelhou enquanto os três davam passos para trás.
Ele ergueu a máscara como se quisesse levá-la aos céus.
— Que a minha antiga identidade pereça e se perca no meio da penumbra… Que a minha nova identidade nasça sendo forjada pelas próprias sombras!
Em um único movimento seco, Kallitus colocara a máscara sobre o seu rosto.
Selando o memorial.
Um novo Mudamir havia nascido e aquele templo silencioso testemunhou o que se tornaria a ascensão do seu mais novo fantasma, porém, de carne e osso.
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