Capítulo 20 - Sombras do incerto
— Trabalhar na DIVIIP? Mas você acabou de nos conhecer!? — exclamei, a incredulidade dançando em cada palavra.
— Humph, ainda não confio em vocês.— Kadri resmungou com certo desdém — Mas devo admitir, não demonstraram nenhuma hostilidade para com outras espécies. A experiência nos ensinou que outras conexões inevitavelmente surgirão. Mais pessoas virão, e com elas, preconceitos e conflitos.
Ela parou por um momento, os olhos perdidos em um pensamento distante:
— Prefiro ter alguém ao meu lado que, ao menos, não planeje discriminar as raças. Alguém que possa intermediar as relações entre as espécies.
— Ah, então é isso… Mas espere, virão mais pessoas?
— Provavelmente, é uma ocorrência comum. Mesmo que ninguém apareça, seu dinheiro não tem valor algum aqui.
Ele apresentava alguns argumentos válidos… Embora me custe admitir, trabalhar é um fardo tão pesado, tão extenuante… Que seja, aceito.
Fechamos um contrato no valor de 5 pilas por mês, seria um valor justo? Quem sabe? Não tenho ideia do quanto um trabalhador comum ganha por aqui, ou do valor dos produtos em média.
“Ah, tanto faz.”
Após rápidas instruções sobre nossas novas funções, recebemos distintivos modestos, contrastando com os do oficial à nossa frente. Com um gesto de despedida, fomos liberados. Segui com Wian pelas ruas da cidade, nossas sombras projetadas pelos brilhos artificiais das duas luas no céu.
A noite envolvia a cidade num manto festivo, onde risos e música ecoavam pelas vielas, criando uma sensação de alegria quase palpável, mas havia algo mais, uma inquietude sutil escondida sob a superfície da celebração.
Ao alcançar a porta, fixei meu olhar em meu amigo. Seus olhos, espelhando o mesmo turbilhão de emoções — confusão, uma alegria quase insana e o cansaço de nossas almas —, encontraram os meus. Ficamos ali, parados, como se o tempo houvesse congelado, permitindo-nos uma breve pausa para refletir sobre a absurda estranheza de nossa situação.
Não pude deixar de refletir sobre a natureza daquela alegria. As luzes arcanas, simulando a rede elétrica, iluminavam nossos arredores com uma frieza artificial, distante do calor humano.
Wian, ao meu lado, parecia imerso em pensamentos próprios, talvez ponderando as mesmas questões que me afligiam. Em meio ao ambiente festivo, uma melancolia latente parecia sussurrar em nossos ouvidos, revelando a fragilidade da condição humana diante da vastidão do universo.
“Será que estamos no mesmo universo? Ou será que fomos arremessados a um plano alternativo de existência?”
Ficamos nos encarando por um tempo, e nos despedimos, combinando de nos falar no dia seguinte por telefone antes de qualquer coisa.
Naquela noite, mergulhei em um sono que parecia normal, até onde minha memória alcança. Porém, ao despertar, a dúvida sobre a realidade dos eventos recentes insinuou-se como uma sombra persistente.
Aquele anel gélido, apertado em minha mão, não poderia ser fruto de um devaneio. Não, aquele poder sombrio de mover objetos não era fruto de minha fértil imaginação.
Com um peso no peito, decidi tomar um café matinal, tentando afastar a sensação de estranheza. Há trabalho a fazer, lembrei a mim mesmo. O segundo emprego de toda a minha vida. Que irônico, pensar que isso poderia trazer um resquício de normalidade.
“Que responsabilidade, não é? Ser policial… um ofício que carrega em si a nobreza do dever e o peso das expectativas alheias.”
O dia transcorreu com uma banalidade que quase me inquieta. Permaneci ao lado da família, partilhei das refeições sem grande entusiasmo, e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, combinei com Alessi de partir para uma realidade paralela às 18 horas. Coisas que qualquer jovem faria.
Antes de partir, uma última verificação no sistema me revelou que havia alcançado o nível 3. Curioso, não me recordo de quando subi de nível, mas, se tivesse que adivinhar, diria que foi algo relacionado à Télos.
Desbloqueei algumas subclasses, as escolhas se apresentaram diante de mim: assassino, ladrão, inquisidor, ladrão arcano… uma lista que parecia não ter fim. Depois de ler e pensar um pouco escolhi assassino.
“Dano bruto, é isso que eu quero”
Ah, eu aproveitei para desabilitar as notificações do sistema, quando eu abri ele teve uns 30 pop-up, e certeza que peguei algum vírus dessa porra. Basicamente eu só verei conquistas importantes.
Também aproveitei para preparar uma mochila com um lanche, prevendo a necessidade de realizar uma patrulha. Ah, mas veja só aonde minha mente me leva:
Estou preparado, sempre um passo à frente, o anão me observa com olhos de admiração, um exemplo a ser seguido. Quem sabe, talvez, uma promoção venha em seguida, a recompensa por minha constante prontidão.
E, então, o ápice da minha fantasia: caso-me com Kadri, uma união improvável, e vivo uma vida que, em sua essência, é a própria definição de felicidade.
Certo, meu canivete… sempre à mão, útil para tudo. Minha comida… suficiente, eu acho. Meus remédios… uma necessidade incômoda, mas inevitável. Meu baralho… uma tentativa inútil de distrair a mente, talvez. E aquelas coisas que sempre ficam na mochila, as quais nunca tirei.
“Parece uma boa ideia, não é? Levar flores para ela… mas será que é cedo demais? Não importa, vou levar. Sim, vou, mas… e se ela não gostar? Ela é uma elfa, afinal. E se minha tentativa, que me parece tão bem-intencionada, for ridícula aos olhos dela? Talvez eu devesse reconsiderar. Não, não, preciso hesitar!”
“Compro qualquer coisa quando chegar lá. Se os elfos realmente apreciam flores, certamente lá haverá uma variedade delas. Isso é um fato…”
Toc-Toc
— Pode Entrar — Disse eu, na maior inocência, achando que era alguém da minha família batendo na porta do meu quarto, porém, era aquilo que eu mais temia…
— Tá pronto? — Dizia Wian
Sim, caros leitores, acreditem ou não, há mais pessoas saindo do meu banheiro. Não é uma, mas duas… duas pessoas, para ser mais exato. Meu melhor amigo estava ali, abrindo a porta, e, atrás dele, vislumbrei um rosto raro, um daqueles que poucas vezes cruzaram meu caminho, mas que, ainda assim, eu reconheceria instantaneamente. Era a irmã dele.
Ele não era do tipo que a envolveria em problemas desse tipo… ou será que estou errado? Será que ela também foi submetida ao tutorial? Mas que inferno! Será possível que só as pessoas que conheço estão envolvidas nisso? Meu Deus, o que está acontecendo?
— Wian… sua irmã…
— É… impressionante, não? Duas pessoas da mesma família, envolvidas nisso. Será que todos, de alguma forma, vão ser arrastados para isso?
— Vamos logo, não quero pensar nisso agora. — Me viro para a irmã dele, tentando afastar a inquietação que cresce dentro de mim. — Como você está?
— Bem, eu acho.
Vamos chamá-la apenas de “irmã de Wian”. Seu nome me escapa, perdido nas profundezas da minha memória, e, sinceramente, não posso perguntar a ele. Sei que, se o fizesse, alguma magia de alto nível me teria como alvo. Melhor assim, deixá-la sem nome, como uma sombra que atravessa minha mente, sem identidade própria. Um resquício do passado.
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