“Eu sempre tive uma relação peculiar com a morte, uma espécie de fascinação mesclada com impotência. A perda das pessoas nunca deixou de me atingir com um golpe seco, frio, cortante… E talvez, por isso mesmo, a vida alheia, essa coisa estranha e efêmera, tenha para mim um valor que não consigo dar à minha própria existência miserável.”

    “Impotência… Essa palavra ecoa em mim como um trovão distante. É o que sinto agora. A única pista que tínhamos se foi — morta, silenciada antes que pudesse revelar qualquer verdade. E quando foi que senti isso antes? “

    “Ah sim, quando ela morreu. A mesma sensação de fraqueza…”

    “Lana… Quando o câncer a levou, fiquei sozinho. Eu sabia que era inevitável, algo que já se anunciava há muito tempo, mas mesmo assim, o golpe foi avassalador. Não fui capaz de suportar. “

    “Aquela perda, tão previsível, rasgou algo dentro de mim que nunca mais consegui remendar. Até hoje, os traumas dessa dor me perseguem, Talvez o mais sensato fosse mesmo afastar-me da Kadri”

    “Do jeito que estou agora, sou como um peso morto, condenado a arrastar todos ao meu redor para o abismo que me engole. Como poderia dar algo a ela, se dentro de mim tudo está quebrado? “

    “Não sou capaz de me reconstruir, de encontrar sequer uma parte de mim que valha a pena ser oferecida. Seria injusto… covarde até, tentar. E ainda assim, não consigo deixar de pensar que minha presença só a destruiria.”

    “E talvez o maior exemplo seja o que aconteceu com Alduin… Meu antigo melhor amigo. Ele foi o espelho distorcido da minha própria fraqueza. Como eu agora julgo o valor da vida alheia, ele também, de forma covarde, tentou fugir da própria. Ele atentou contra a vida, e até hoje, não consigo perdoá-lo por isso.

    Mas o pior de tudo é que, assim como eu falho em me consertar, também falhei em enxergar os sinais que ele deixava. Eu não vi. Não percebi que ele precisava de ajuda. E essa culpa, essa incapacidade de reparar o que está quebrado, me corrói.”

    “E ainda teve Thoran, não é? Decapitado por um hobgoblin. Em frações de segundos, sua cabeça voou. Eu vi, impotente. A cena, grotesca, retorna esporadicamente, como uma sombra que insiste em invadir minha mente. “

    “A batalha, para mim, já havia terminado… como fui tolo. O mais cruel nessa lembrança não é a violência em si, mas o erro fatal de baixar a guarda, o que custou a vida de meu amigo.”

    “E agora, o peso dessa culpa é insuportável. Carrego comigo a consciência de que meu descuido foi o catalisador de sua morte. O horror não reside apenas na decapitação, mas na minha própria ingenuidade — e pior, na certeza de que o que foi feito, está feito, sem chance de redenção.”

    Meus pensamentos, tão dispersos e caóticos quanto a própria realidade que me cerca, são abruptamente interrompidos por um movimento sutil. A carne viva e o corpo carbonizado daquela que fora nossa única prova pulsavam em um último e desesperado pedido de socorro. 

    Salvação? Não, não há mais salvação… O máximo que posso fazer é poupá-la de mais dor… mas, quem sou eu para decidir o fim do sofrimento de outrem? Ainda assim, saco minha adaga, não sem sentir o peso de minhas escolhas sob minhas costas.

    Sinto o toque hesitante de Ravi em meu braço, um último esforço, talvez, para conter o inevitável. Viro-me para ela. Meu olhar, vazio, opaco, tão quebrado quanto meu espírito, é o suficiente para fazê-la soltar. 

    Não queria fazer isso, não, de maneira alguma. Mas o que resta quando o destino o arrasta para uma escolha cruel, onde cada caminho é uma condenação?

    Minhas mãos tremem descontroladamente. Nunca, jamais, havia tirado a vida de alguém com minhas próprias mãos. É um sentimento diferente da perda, aquela que vem de fora, como um golpe inevitável.

     Aqui, sou eu o responsável por tirar uma vida. Mesmo sabendo que ele já estava condenado… ainda assim, algo em mim se rompe. Não sei o que é, não sei como descrever — estou me sentindo vazio, talvez.

    Afasto-me bruscamente do corpo, e meus joelhos cedem. Vomito com violência, o estômago retorcido em uma angústia que mal consigo compreender. As lágrimas caem, involuntárias, molhando meu rosto, enquanto um único pensamento me atravessa: 

    “Ele já estava condenado, então por quê? Por que dói tanto?”

    “Por que dói tanto?” — essa pergunta reverbera na escuridão da minha alma, sem resposta, apenas o vácuo. Um vácuo que se arrasta silencioso. Não há o que se responder, como se a própria pergunta fosse inútil, quase ridícula. E ainda assim, é tudo o que resta.

    Ergo-me com lentidão, sentindo cada músculo protestar, enquanto o sabor amargo do vômito ainda mancha minha boca. Lanço um olhar mais uma vez ao corpo que jaz inerte, mas agora com uma sensação estranha de distanciamento.

    Ergui-me lentamente, ainda envolto em meus pensamentos sombrios, quando Wian se aproximou, tentando puxar-me de volta à realidade.

    — Vamos — disse ele, com um tom insistente. — Precisamos falar sobre isso com o anão. Não há mais o que fazer aqui.

    Fixei meu olhar no vazio. Com um semblante carregado, respondi:

    — Peguem alguns mecatrônicos e vão. Vou ficar para cuidar da cena e afastar os curiosos.

    Ravi, percebendo a sombra em meu rosto, falou com uma voz que revela certa preocupação:

    — Tem certeza? Se você quiser, posso ficar.

    Olhei para ela, tentando disfarçar o tumulto em minha alma.

    — Não precisa ficar aflita — murmurei. — Preciso pensar um pouco, ficar sozinho um tempo para colocar a cabeça no lugar.

    Wian hesitou por um instante, como se esperasse que eu mudasse de ideia, mas ao perceber que isso não aconteceria, assentiu lentamente. Ravi deu um último olhar, seus olhos carregando um misto de incerteza e angústia que ela não ousava expressar em palavras. Então, sem mais uma palavra, ambos se afastaram. 

    O vento frio cortou meu rosto, trazendo uma estranha sensação de lucidez. Minha mente estava curiosamente calma, embora um desejo inquietante ecoasse no meu coração. Olhei para a faca na minha mão direita e, lentamente, dirigi meu olhar vazio para o braço esquerdo.

    — Preciso sentir alguma coisa — sussurrei para o silêncio ao meu redor. — Preciso me aliviar, e não vejo outra saída.

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