Capítulo 26 - A arte de ser visto
— Vamos revisar o que já sabemos — falei para Wian, enquanto contemplava a noite. — Um assassinato ocorreu na taverna que, ironicamente, se chama ‘A Última Dose’. Descobrimos uma conversa da vítima com o diretor da escola, uma caixa enigmática, e o fato de que nossa única pista foi morta por aranhas robóticas.
A noite desdobrava-se majestosa acima de nós, estrelada, pintada com duas luas — uma tingida de um suave azul e a outra de um amarelo pálido. Era possível distinguir claramente a galáxia, um turbilhão de pontos luminosos que pareciam flutuar no véu negro do céu.
Enquanto contemplava esse panorama celestial, meus pensamentos vagavam pelo caso. A ironia do nome da taverna ressoava em minha mente, misturando-se com a vastidão do universo sobre nós.
— O executor tem domínio sobre a magia ou possui artefatos mágicos, é a única maneira de ser possível — articulei lentamente, as palavras pesando em minha boca. — O quarto estava trancado por dentro, e apesar da extrema desordem no local, ninguém escutou ou viu nada.
— No final das contas, a magia pode ter sido usada para entrar no quarto e depois silenciar os demais barulhos, ou o assassino é alguém conhecido da vítima que simplesmente abriu a porta para ele — Wian refletiu em voz alta, seus olhos perdidos em algum ponto distante, como se tentasse visualizar cada cena do crime em sua mente.
— Vamos torcer para que seja um conhecido. Um mago capaz de controlar o espaço é muito mais assustador do que um que apenas silencia sons.
— Vou ficar invisível e ler os arquivos do caso. Tente conseguir alguma informação com os outros policiais — falei, desaparecendo antes de dar a Wian a chance de replicar.
A delegacia estava mais tranquila do que de costume. Menos da metade do regimento permanecia; vários policiais dormiam sentados, e a maioria dos que se mantinham acordados lutava contra o peso do sono.
Caminhei pelo corredor principal, tentando parecer indiferente. Felizmente, Kadri já parecia ter ido descansar; ela era, sem dúvida, a pessoa mais temível de se cruzar naquele ambiente. Sua sala, uma das últimas do departamento, estava trancada com uma chave única que ela nunca deixava de carregar consigo.
Por um curioso golpe do destino, ao upar, “lembrei-me” de um conhecimento que supostamente já possuía; pelo menos, era assim que minha mente insistia em interpretar. No fundo, sabia que era uma habilidade recém-adquirida por subir de nível. Agora, dominava a técnica de arrombar fechaduras.
Ao me aproximar da porta de Kadri, senti o frio da maçaneta sob meus dedos. Havia uma tensão no ar, como se o próprio ambiente aguardasse minha decisão. “Quais limites que estou disposto a quebrar para resolver esse caso? porque eu me importo tanto com ele?”
Por um momento, hesitei. O conhecimento que havia “lembrado” — o lockpick — era uma tentação… Seria este o ponto de inflexão?
Toquei o kit que agora carregava comigo. “Por que este caso me afeta tanto?”, insisti. Talvez porque, ao desvendar seus mistérios, eu esperasse entender como lidar com meus sentimentos.
Talvez fosse uma fuga, uma forma de evitar encarar as perdas, quem sabe nunca precise lidar com meus sentimentos se eu conseguir confortar meu ID. A verdade é que não sabia ao certo, e essa incerteza me aterrorizava.
Pensou por 35 segundos
A fechadura cedeu com um clique quase inaudível. Esgueirei-me rapidamente para o interior da sala, fechando a porta atrás de mim sem produzir um único som. A sala de Kadri era um caos:
Um amontoado de papeis de casos espalhados sobre a mesa, vários armários fechados, e uma lousa ao fundo com uma teia complexa que conectava várias informações do caso. Ela estava trabalhando nele agora; os documentos deveriam estar em algum lugar óbvio.
Mas algo mais chamou minha atenção. A sala estava permeada por diversas plantas e galhos espalhados. Flores tímidas enfeitavam discretamente os cantos e móveis, não de maneira extravagante, mas suficiente para trazer uma beleza sutil ao ambiente caótico.
Com um suspiro profundo, decidi prosseguir. Talvez os documentos estivessem ocultos à vista de todos sob a desordem calculada da mesa.
Entre os papeis, encontrei um relatório preliminar que não havia visto antes. Nele, Kadri mencionava a descoberta de resíduos de uma magia, conhecida como “Sombra Etérea”, encontrada no quarto da vítima.
Esse selo era utilizada em feitiços de ocultação e silenciamento, o que explicaria por que ninguém ouviu ou viu nada durante o assassinato. “Isso confirma a teoria do uso de magia para entrar no quarto e silenciar os sons”, pensei, sentindo uma excitação cautelosa.
Mais adiante, havia notas sobre a caixa enigmática encontrada com a vítima. Kadri conseguiu identificar inscrições antigas na superfície da caixa, pertencentes a uma linguagem arcana há muito esquecida.
Ela mencionava que a caixa poderia ser um receptáculo para um artefato poderoso. Se a vítima possuía algo tão valioso, isso certamente fornece um motivo para o assassinato, mas ainda não explicava o motivo da caixa ter ficado para trás..
Outro documento revelou que Kadri havia descoberto uma conexão entre o diretor da escola e um círculo clandestino especializado em tráfico de artefatos mágicos e tecnologia avançada.
Havia registros de transações suspeitas, encontros em locais isolados e comunicações codificadas. Uma lista de nomes associados ao círculo incluía não apenas o diretor, mas também figuras influentes na cidade.
Enquanto eu examinava o relatório preliminar, um som quase imperceptível se destacou no silêncio da sala: o ranger sutil de passos cuidadosamente contidos. Antes que pudesse me mover, uma sensação gelada subiu pela minha espinha – a maçaneta da porta girou.
Parei de respirar, mantendo-me invisível. Kadri entrou, sem pressa, com uma expressão concentrada, mas algo em seu semblante me dizia que ela estava alerta. Ela deu alguns passos na sala, parando no centro, como se soubesse que estava ali.
— O Anão me disse sobre sua habilidade de ficar imperceptível, além de que, já imaginava que tentaria continuar no caso — sua voz carregada de uma frieza calculada.
Ela deu mais um passo na minha direção, como se me observasse além da própria presença física.
Minha mente começou a calcular rapidamente as possibilidades de fuga, mas o pânico só piorava a situação. “Ótimo! Invisível, mas preso em uma sala sem saída!” pensei, enquanto tentava respirar de forma que Kadri não percebesse.
Kadri fez uma pausa dramática, provavelmente para me dar a chance de sair da invisibilidade de forma digna. Ou pelo menos era o que eu gostava de imaginar. Porém, fiquei em silêncio, esperando que ela perdesse a paciência.
— Está bem — ela disse, cruzando os braços. — Podemos fazer isso à moda antiga ou da forma como eu prefiro. E você não vai gostar da minha preferência.
Meu estômago revirou. Estava invisível, mas definitivamente não estava fora de perigo. Kadri, com sua expressão impassível, esperava. Eu precisava encontrar uma desculpa ou uma saída… ou, em último caso, talvez os dois.
Eu sabia que não tinha outra escolha.
Com um suspiro resignado, relaxei a magia de ocultação, tornando-me visível bem diante dela. Estava com as mãos levantadas, tentando parecer o mais pacífico e inofensivo possível.
— Olha, Kadri, tudo tem uma explicação perfeitamente lógica… — comecei a dizer, com a voz o mais serena que consegui.
— Ah, eu mal posso esperar para ouvir — ela respondeu, o sarcasmo pingando das palavras, cruzando os braços e me fitando como quem examina um inseto irritante.
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