Capítulo 29 - Como Enganar uma Dragonesa (e Não Virar Estátua de Carvão)
— Vou causar uma distração e, na hora exata, deixarei aqui uma réplica perfeita. Quando a Dragonesa perceber, já será tarde.
Ele ergueu a mão translúcida, mostrando-me uma pena falsa que cintilava fracamente, sem o mesmo esplendor hipnótico da original. Seria o bastante para enganar olhos desatentos — e, talvez, até mesmo os soldados do castelo.
— Confie em mim — a voz da dragonesa parecia carregada de um humor ácido.
Confiança. A palavra ganhou um gosto amargo na minha boca. Havia toda uma cidade confiando em mim e nos meus companheiros para resolver o mistério do ataque; agora eu me encontrava num beco sem saída, tramando traição contra a criatura mais temida da região. Minha lealdade balançava como uma corda ao vento.
— Certo… farei o possível — tentei parecer confiante, mas estava difícil.
A figura de Breu sorriu, satisfeita, e, sem mais avisos, desvaneceu-se diante dos meus olhos, como uma chama que se extingue de repente. O ar pareceu ficar mais leve, mas o peso na minha consciência aumentou.
Foi então que a distração prometida se revelou. Uma rajada repentina de ar sacudiu as chamas das tochas, criando sombras agitadas que pareciam ganhar vida. Um estampido ecoou em algum ponto distante do castelo, seguido por gritos abafados — o bastante para alarmar os guardas que patrulhavam o corredor.
— Fique aqui! — esbravejou o sentinela que estava de plantão naquela sala, antes de correr em direção ao som. Ele nem ao menos olhou para trás.
Vi a oportunidade se abrir como uma porta proibida. Com o coração acelerado, avancei até o pedestal. As mãos tremiam, mas me forcei à firmeza: segurei a pena original por um segundo que pareceu uma eternidade e, num movimento rápido, coloquei a réplica no lugar. Seu brilho era menor, mas no tremeluzir incerto das tochas dificilmente notariam diferença imediata.
Ajoelhei-me fingindo verificar as bases do pedestal quando ouvi passos apressados retornando. Voltei à minha postura original num piscar de olhos, respirando de forma controlada, apesar do sangue latejar em minhas têmporas. Quando o guarda voltou, olhou ao redor, mas nada encontrou fora do lugar — a réplica repousava exatamente onde antes jazia a pena real.
De volta ao castelo, me juntei ao Anão e a Wian, que aguardavam próximos ao guarda. Nenhum dos dois pareceu notar minha ausência momentânea ou qualquer alteração brusca em meu semblante — ou, se notaram, acharam melhor não comentar.
O guarda pigarreou, impaciente:
— Precisamos prosseguir. A Dragonesa Negra os aguarda na próxima ala. —
Ele nos guiou pelos corredores até uma câmara circular, com paredes altas onde chamas tímidas tremeluziam em archotes de ferro fundido. Uma grande porta dupla, feita de madeira grossa e reforçada com tiras de metal negro, se abria para um salão central. Havia um frisson no ar, uma energia densa que perturbava a respiração. Era como se o próprio espaço reconhecesse a presença de algo muito além da compreensão humana.
O guarda parou em frente às portas. Fez sinal para que aguardássemos, deu duas batidas firmes e só então empurrou as folhas pesadas, revelando o interior. Uma voz grave, profunda, reverberou no salão, ecoando nas colunas de pedra.
— Entrem. —
Meu corpo inteiro se arrepiou ao reconhecer aquele timbre. Mesmo sem nunca ter ouvido a Dragonesa Negra falar, eu sabia — o som carregava uma autoridade primordial. A visão que se apresentou não era a que eu esperava: em vez de um imenso réptil alado, encontrei uma figura feminina de porte nobre, envolta em mantos escuros que pareciam lamber o chão, como sombras vivas. Seus cabelos negros caíam em tranças elaboradas, refletindo um brilho levemente azulado na penumbra. Os olhos eram de um dourado profano, como se o fogo interno de um dragão ardente estivesse contido ali.
Ela se apoiava numa grande cadeira entalhada em madeira polida, adornada com detalhes de metal retorcido — uma mistura curiosa de trono e poltrona de estudos, reforçando a estranha dualidade entre o selvagem e o sofisticado.
— Vocês são a equipe enviada pela DIVIIP? — perguntou, a voz ressoando pelos cantos do salão. — Espero que sejam mais competentes do que meus soldados foram para detectar aqueles intrusos.
O Anão deu um passo à frente, sempre firme, embora eu notasse a tensão nos músculos de suas costas. Ele nunca recuaria diante de uma autoridade, por mais imponente que fosse.
— Sim, Alteza. Sou o Anão, inspetor-chefe. Aqui estão Wian e nosso… — ele olhou rapidamente para mim, sem saber exatamente como me apresentar, talvez por conta do meu posto misto de investigador e oficial. — Nosso especialista em infiltração e inteligência.
Houve um silêncio medido, durante o qual a Dragonesa Negra nos avaliou. Senti aqueles olhos dourados esquadrinhando meus pensamentos, testando minha coragem, quase como se eu fosse transpassado por um punhal invisível. Qualquer mentira ousada ali seria descoberta num piscar de olhos. Apertei levemente o cabo da minha adaga, numa tentativa vã de me manter são.
— O que sabem sobre o ataque? — ela finalmente questionou.
O Anão se colocou a falar: recapitulou os fragmentos de rocha que nos foram mostrados por Alaric, o número de invasores — treze — e a estranheza de terem se aproximado sem serem detectados pelo “olhar verdadeiro”. Não omitiu a existência de um refém, tampouco disfarçou nossa própria perplexidade diante dos fatos.
A Dragonesa assentiu, lenta. Seu olhar faiscou de uma irritação contida quando mencionamos o “olhar verdadeiro”. Uma chama oculta bailou em suas pupilas, e percebi que aquilo, para ela, era um golpe no orgulho quase tão grande quanto a ameaça em si.
— Quero que descubram como contornaram minhas defesas e o que pretendiam roubar. — Seu tom era irrefutável. — É óbvio que existe algo mais intrincado aqui, um poder ou artifício que escapou aos meus sentidos. Eu quero respostas, e quero-as rápido.
Ela apoiou os cotovelos nos braços do trono, cruzando os dedos com lentidão calculada.
— Vocês vão conversar com o refém. Examinem os destroços dos invasores. Façam o que for necessário para chegar à verdade. Mas, cuidado… — A Dragonesa sorriu de forma estranha, mostrando ligeiramente os dentes afiados. — O medo que paira sobre esta cidade está à beira de se tornar pânico. E um povo em pânico… bem, não preciso dizer do que são capazes.
Engoli em seco, pensando na cena que havíamos presenciado nas ruas: o desalento, os olhares desesperados, a fé míope depositada em nossas fardas. Por um breve instante, quase esqueci a pena e a promessa feita a Breu. Mas aquele objeto continuava a latejar na minha lembrança, como uma centelha ansiosa aguardando minha decisão.
— Sim, Alteza — murmurei, sabendo que minha voz soava muito menor do que a dela. — Vamos trabalhar sem descanso até resolver o mistério.
A Dragonesa balançou a cabeça e acenou para o guarda, dispensando-nos.
— Levem-nos até o prisioneiro. Depois, quero um relatório detalhado de cada passo que derem.
Em silêncio, fizemos uma reverência breve e nos retiramos. Quando as portas se fecharam atrás de nós, troquei um olhar com o Anão e com o Wian. Eles pareciam aliviados por sair de perto dela, mas ao mesmo tempo intrigados, ansiosos para mergulhar na investigação.
Eu, porém, levava comigo um outro peso: a promessa feita a Breu. Roubar a pena. E, enquanto percorríamos de volta o corredor iluminado por tochas, a pergunta martelava meu peito: eu traí uma criatura capaz de incinerar uma tropa de soldados com um simples sopro?
Um calafrio subiu por minha espinha. De repente, tudo parecia ainda mais perigoso… e inevitável.
“Cedo ou tarde, ela perceberia o roubo das penas. E, pensando bem, os únicos suspeitos seríamos eu e Wian, os dois novatos da DIVIIP… e se eu pedisse truco sem nenhuma carta na mão?”
— Na verdade, isso não será necessário. Já encontrei um dos itens que foram levados.
“Eu não podia estar fazendo isso… podia? Além de roubar bem diante dela, agora eu ia mentir descaradamente?”
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