Capítulo 30 - Cortina de fumaça
O salão da Dragonesa Negra era um labirinto de contrastes. As paredes, altas como torres, eram revestidas de pedra vulcânica polida, negra e reluzente, refletindo o tremor das chamas dos archotes como estrelas aprisionadas. O chão, de obsídia lisa, parecia um lago congelado sob nossos pés, tão nítido que eu quase via meu próprio rosto deformado nele — pálido, com os olhos arregalados de quem carregava um segredo letal. Colunas esculpidas com runas antigas sustentavam um teto abobadado, onde sombras dançavam em padrões caóticos, como se as próprias trevas ali estivessem vivas. Entre elas, pendiam estandartes desbotados, retratando dragões em batalhas mitológicas, suas escamas bordadas a fios de ouro que ainda cintilavam, mesmo sob a penumbra.
A Dragonesa permanecia imóvel em seu trono de ébano e ferro, os dedos longos tamborilando no braço do assento. Seus olhos dourados fixaram-se em mim, e senti o peso daquilo que iria fazer — uma corda bamba entre a sobrevivência e a condenação. A pena verdadeira estava escondida sob meu manto, grudada na cintura por um cordão de couro. Cada segundo parecia amplificar seu calor contra minha pele, como se gritasse minha culpa.
Wian e o Anão estavam ao meu lado, tensos. O Anão franzia a testa, analisando os mapas à distância, enquanto Wian ajustava as luvas de couro, um tique nervoso.
— Alteza — comecei, engolindo o nó de ansiedade que subia pela garganta. Minha voz ecoou pelo salão, mais firme do que eu esperava.
— Os invasores não atacaram aleatoriamente — corrigi, mantendo a voz estável, como se cada palavra não fosse uma brasa na língua. — Eles foram treinados para isso. Movimentos sincronizados, gritos coordenados… Tudo para monopolizar sua atenção. — Fitei a Dragonesa, arriscando um passo à frente. — Seu “olhar verdadeiro” é infalível, Alteza, mas até um dragão pode ser cegado por uma cortina de fumaça bem tecida.
Ela inclinou a cabeça, os dedos contraindo-se no braço do trono. A menção à falha de sua habilidade suprema acendeu uma centelha de ira em seus olhos, mas também — suspeitei — um fio de curiosidade.
— Continue — ordenou, secamente.
— O verdadeiro objetivo não era enfrentá-la, mas mantê-la ocupada. — Engoli seco, sentindo o peso da pena escondida sob as vestes. — Enquanto você e seus soldados reagiam ao ataque, alguém habilidoso o bastante poderia ter agido nas sombras. Sem pressa. Sem ser notado.
Os guardas trocaram olhares nervosos. O Anão franziu a testa, como se reconsiderasse cada passo da investigação. A Dragonesa, porém, permaneceu impávida, até que o soldado retornou com a réplica em mãos.
— Nada foi roubado, Alteza — anunciou ele, segurando a pena falsa como um troféu. — Todos os artefatos estão em seus lugares.
A réplica cintilou sob a luz fraca, e meu pulso latejou onde a verdadeira pena estava escondida. Breu melhor ter sido meticuloso.
— Está vendo? — rosnou a Dragonesa, erguendo a pena falsa. — Nada foi —
— Substituído? — interrompi, calculando o tom de dúvida. Todos os olhos voltaram-se para mim. Fingi hesitar, como se a ideia tivesse acabado de surgir. — Perdão, Alteza, mas… não é impossível que um item tenha sido trocado por uma réplica. Algo suficientemente valioso para justificar todo esse teatro. — Cruzuei os braços, evitando olhar para o objeto em sua mão. — Talvez… valha a pena verificar autenticidades, não apenas ausências.
O silêncio que se seguiu foi cortante. A Dragonesa observou a pena falsa com renovada desconfiança, seus dedos fechando-se em torno dela até as juntas empalidecerem.
— Réplicas… — murmurou, e pela primeira vez, houve uma fissura em sua voz onipotente. — Você sugere que um de meus tesouros é agora uma imitação?
— Sugiro que é uma possibilidade. — Mantive o olhar neutro, embora cada músculo estivesse tensionado. — Se houve um plano para enganar até mesmo você, Alteza, a réplica precisaria ser perfeita. — Como a que Breu criou. — Mas nenhum falsário é impecável… se soubermos onde olhar.
— Verifiquem. Tudo. — ordenou, esmagando a réplica em uma nuvem de pó metálico. — E tragam-me os registros de autenticação dos artefatos.
Enquanto os guardas se dispersavam em frenesi, eu recuei, permitindo que o alívio morno me inundasse por um segundo. A Dragonesa ainda não desconfiava de mim — apenas da própria fortaleza. Mas, em algum momento, ela perceberia que a única pista real estava bem diante de seus olhos: eu.
Wian aproximou-se, disfarçando a preocupação com um suspiro exasperado:
— Réplicas? Onde foi que você arrumou essa teoria? — sussurrou.
— Seria muito estranho alguém não saber a força da dragonesa, ainda mais quando souberam evitar o olhar verdadeiro dela, seria muito otimista considerar que apenas foram burros.
O esforço para não tremer exigia uma força de vontade quase sobre-humana. Encarar aqueles olhos dourados, tão implacáveis quanto o aço, fazia meu coração martelar no peito como tambores em uma marcha de guerra. Mentir na presença de uma criatura tão poderosa era um ato de loucura — algo que, em circunstâncias normais, jamais sequer se cogitaria. Mas ali, no salão de obsidiana, sob o brilho trêmulo dos archotes e o peso de colunas esculpidas em pedra vulcânica, toda e qualquer sanidade parecia evaporar.
Após o que pareceu uma eternidade — embora se tratasse de meros trinta minutos —, um dos guardas retornou. Sua expressão carregava o pálido temor que oprimia a todos. E em suas mãos, a réplica cintilava, expondo uma verdade nada animadora.
— Senhora — ele disse, a voz trêmula, quase falhando —, ao que parece a Pena… foi roubada.
A Dragonesa exalou um rosnado que ecoou pelo salão, fazendo tremer até mesmo as sombras dançantes no teto abobadado. Com um golpe seco do punho, socou o braço do trono de ébano e ferro, libertando uma faísca de ira que queimava no ar como lava incandescente.
— MALDITOS! — vociferou, cada sílaba carregada de uma fúria ancestral. — Ache-os imediatamente!
Num movimento que parecia tão implacável quanto a própria morte, seus olhos desceram sobre nós. A tensão se adensou, e minha garganta se apertou; eu sabia que qualquer sinal de hesitação poderia ser interpretado como culpa. Naquele instante, a certeza de que havíamos ousado enganá-la pesou como correntes invisíveis em nossos pulsos.
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