Os olhos dourados da Dragonesa cravaram-se em mim como lanças arcanas, e naquele segundo, a sala deixou de existir. Não havia chão, nem colunas, nem Wian — apenas o abismo incandescente de sua fúria, e eu, à beira dele, com a mentira na garganta e a verdade costurada nos lábios como uma ferida mal cicatrizada. O silêncio que precedeu sua pergunta foi o de uma tempestade retendo o sopro final antes do dilúvio.

    — Como você sabia? — perguntou ela, e sua voz não soou como uma curiosidade. Era uma sentença pendendo no ar, esperando por uma razão para cair.

    Engoli em seco, os dedos crispando sob o manto enquanto me forçava a manter o olhar firme. A resposta veio medida, pensada, moldada como uma chave esculpida à pressa para um portão que não deveria ser aberto:

    — Se eles conseguiram invadir sem que a senhora percebesse, desviando do seu olhar verdadeiro como se soubessem exatamente do que é capaz… — pausei, deixando o raciocínio preencher o vazio entre nós — então não iriam cometer o erro de atacá-la com uma força tão pequena. Ainda mais quando a senhora não parece sequer ferida. — Dei um passo à frente, com a voz agora mais baixa, quase um sussurro de lógica perigosa. — O único desfecho razoável seria deduzir que tudo não passou de uma distração.

    A Dragonesa não respondeu. Mas seus olhos… seus olhos queimavam mais do que qualquer archote daquele salão maldito.

    O silêncio que se seguiu foi tão absoluto que até as chamas pareciam conter a respiração. As sombras congelaram nas colunas, os estandartes pararam de dançar. Wian desviou o olhar, e o Anão, por um instante, parou de respirar. Eu continuei ali, imóvel, o peito tensionado como a corda de um arco prestes a romper. Cada batida do meu coração era um martelo forjando a próxima mentira.

    A Dragonesa reclinou-se ligeiramente no trono, os olhos ainda cravados em mim — não com ira, mas com algo pior: cálculo. Mediu minhas palavras como quem pesa um frasco de veneno, analisando não apenas o conteúdo, mas quem ousaria oferecê-lo.

    — Uma distração — repetiu, como se testasse o gosto da ideia. Sua voz saiu mais baixa, mas não menos letal. — Isso sugere planejamento. Conhecimento íntimo dos meus domínios. Uma audácia… que não é comum.

     A pausa veio afiada. — E se é tão valioso a ponto de justificar uma incursão tão meticulosa… então você entenderá por que não posso permitir nenhuma dúvida quanto à sua lealdade.

    O chão sob meus pés pareceu inclinar-se. Ah, claro. Lá vinha ela.

    — Me diga — continuou, descendo um degrau do trono como uma avalanche elegante —, por que devo acreditar que você não participou disso?

    Engoli em seco. Não por medo — o medo já havia sido empacotado, etiquetado e despachado há capítulos. O que me restava agora era um tipo mais refinado de angústia: o pânico filosófico. Aquela sensação agridoce de que, mesmo quando você diz a verdade, está mentindo de algum jeito.

     A Dragonesa — aquela entidade colossal cuja presença fazia até as sombras se comportarem — parou a poucos passos. Seu olhar fulminava como se tivesse acabado de descobrir uma piada de mau gosto, e eu era a punchline.

    — Como você sabia? — A pergunta caiu como um veredicto. E não era retórica. Ela queria sangue.

    E lá estava eu, Belchior Belshazzar, o homem, o mito, a aberração funcional, prestes a enfiar mais uma meia verdade no confessionário de uma deusa em forma de lagarto vingativo.

     Ah, Mir… anota essa com letra bonita: “Mentir para uma criatura imortal é uma arte. Sobreviver à mentira, um milagre.”

    — Como disse, eles conseguiram invadir sem que a senhora percebesse — comecei, com a elegância de um trapezista cego —, como se soubessem exatamente do que você é capaz… então teria sido burro tentar enganar a senhora ao invés de fugir com o ladrão. E minha cabeça… bem, seria um belo enfeite pros degraus do seu trono.

    — Hm… esperto. — Ela deu meia-volta, e sua cauda invisível de autoridade varreu o salão. — Talvez esperto demais.

    “Droga. Maldição. Caralho. Parabéns, Belchior. Você acabou de ser promovido de ‘possível cúmplice’ para ‘Principal suspeita’.”

    A Dragonesa voltou ao trono, mas não se sentou — como se sua decisão ainda pairasse entre o gesto e a dúvida.

    — Espiões — disse, sua voz como uma lâmina arrancada da bainha. — Um jogo que gosto de jogar. Mas detesto quando jogam contra mim.

    Silêncio. Só o estalo das chamas na lareira ancestral — ou seriam os ecos do meu juízo?

    — Belchior Belshazzar, você… não fede a mentira. Mas exala algo pior. — Aproximou-se outra vez, e por um segundo eu quis correr. Mas correr seria admitir. E admitir… bem, significa morte.

    — E o que seria isso, minha senhora? — perguntei com um meio sorriso. Meio suicida também.

    — Verdade demais — disse ela, seus olhos ardendo em dourado flamejante. — Verdade quando convém. Verdade usada como lâmina. Você não mente com palavras. Você mente com lógica.

    — Merda. Ela entendeu tudo.—

    A constatação cravou-se em mim como um prego enferrujado na madeira podre da minha alma. E ainda assim, como um ator que sabe que está sendo vaiado, continuei o espetáculo.

    — Talvez eu não esteja mentindo para sobreviver, pensei. Talvez eu esteja apenas mentindo porque é tudo o que sei fazer.

    — Você mente com lógica, — ela dissera. Uma acusação mais precisa que qualquer lâmina. E pior, era verdade.

    “Você pode me matar, senhora”, respondi, erguendo o queixo como um condenado que decora a própria lápide. “Mas não vai encontrar nenhuma outra verdade além dessa: se eu soubesse de algo, teria usado a seu favor. Não por lealdade, mas benefício próprio”

    Os olhos da Dragonesa permaneceram cravados em mim, incandescentes na penumbra do salão. Ainda que estivesse a poucos passos de distância, ela parecia gigantesca, como se sua presença dobrasse o espaço ao redor. Senti cada batida do meu coração tamborilar sob a pele, um toque de tambor anunciando o risco iminente. Mas não recuei. Era tarde demais para hesitações.

    — Então… — a voz dela reverberou como trovão contido, um rumor ancestral que tornava as colunas quase insignificantes. — Admite que não tem fidelidade alguma, Apenas segue o próprio interesse.

    Engoli em seco. Aquele era o momento crucial — qualquer palavra fora de lugar e eu seria apenas um borrão de cinzas no chão. Apesar disso, não consegui impedir o pensamento cortante que latejava em minha mente:

    Eu não sou um herói

    — Minha senhora, — comecei, forçando um tom sereno que eu não possuía — num mundo onde todos preços e acordos, por que eu, o mais insignificante dos via—andantes, haveria de agir por nobreza? Se a senhora disser que não acredita em mim, posso entendê-la. Ninguém, em lugar algum, confia em outro que age conforme as próprias ambições. Mas… — pausando, ergui levemente o queixo, como se pudesse encarar de igual para igual o poder que emanava daquelas escamas lustrosas. — Aí já não posso fazer nada.

    Mesmo agindo por conveniência, eu não me afasto das consequências.

    As chamas das tochas balançaram, como se reagissem a uma corrente de ar invisível. A Dragonesa, ciosa de sua imponência, inclinou-se, sem desviar o olhar de mim. Suas pupilas, fendidas como as de um réptil, analisavam cada minúsculo movimento meu, cada pulsação de medo. A sensação de estar diante de um precipício foi intensa, mas permaneci imóvel.

    — Consequências? — questionou. A ponta de uma garrastra, reluzindo como obsidiana, roçou o solo, riscando-o com faíscas. — Escolha suas próximas palavras com cuidado, ou terá sua sentença aqui.

    Podia sentir o calor emanando do peito dela, a fúria ainda contida, mas fervendo no ar. Em algum lugar, atrás de mim, Wian desviava o olhar, como se temesse minha morte anunciada. E o Anão, sem emitir um som, juntava coragem para falar ou talvez apenas para não desmaiar.

    — Sim, — prossegui, inspirando fundo. — A senhora exigiu um motivo para não me partir em duas metades. Pois eu lhe ofereço as consequências de me manter vivo: sou útil. E não vou negar que, se tiver uma chance de sobreviver, aproveitarei. Porém, quando eu digo que não participei, falo a verdade. Não sou louco de tentar enganar alguém que pode me pulverizar com um estalar de dedos.

    Se eu respondesse algo como “Confie em mim”, ela me tacharia de insolente. Se eu fingisse lealdade cega, ela notaria a falsidade. Por um instante, busquei a saída retórica que me sobrava.

    — Pode não confiar, mas pode medir meus resultados.

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