Capítulo 32 - A Gravidade do Silêncio
“Você mente com lógica.”
Era essa a frase que pairava em minha mente, repetindo-se como um eco interminável, corroendo minha lucidez a cada vez que surgia. Sentado à mesa de metal da DPT, o piso de pedra reluzindo sob a fraca iluminação das lamparinas arcanas, eu encarava o vazio que se abria além do tampo frio. A delegacia, normalmente barulhenta, estava mergulhada em um silêncio pouco comum, como se as paredes também se calassem diante da sentença que a Dragonesa Negra me lançou. Aquela única frase queimava em minhas entranhas, lembrando-me de tudo que é sujo, falso e ao mesmo tempo necessário para eu ser eu.
Diante da Dragonesa, cada palavra minha foi calculada, cada gesto medido — e, mesmo assim, ela cravou em mim a verdade que nunca quis ouvir: a de que minha habilidade maior não está na espada ou na magia, mas no ato de forjar mentiras coerentes, tão cruas quanto as lâminas que corto em silêncio. Pior é saber que há um fundo de orgulho perverso em mim que reconhece essa arte. Como se, na ausência de qualquer virtude heroica, restasse a esperteza, o improviso… e a mais pura covardia.
Sim ainda escuto essa frase, literalmente… até hj ela me fala isso
Eu me pego deslizando a ponta dos dedos sobre algumas anotações espalhadas sobre a mesa. Relatório do caso, nomes de Viajantes suspeitos, ordens de investigação da DIVIIP — nenhum deles consegue prender minha atenção. Porque estou cansado. Cansado da mentira que precisa ser sustentada, da contínua performance de quem não fede à fraude, mas exala um tipo pior de verdade.
Talvez seja um prelúdio de um colapso. Sinto uma parede de vidro se erguendo ao meu redor: posso ver o ambiente, as carteiras, os oficiais conversando, Wian ao longe com aquele semblante preocupado… Mas já não consigo tocá-los de fato. É como se vivesse num espetáculo. Um cenário forjado.
“Belchior…” A voz de Wian soa atrás de mim, quase um sussurro cauteloso. Não vi quando ele se aproximou, tampouco quanto tempo me observo ancorado nesse vácuo. Mas não consigo reagir de imediato — “porque a frase dela segue latejando”.
“Você mente com lógica.”
“Você mente com lógica.”
“Você mente com lógica.”
“Você mente com lógica.”
Um eco interminável de cada mentira que já proferi ressurgiu para me torturar, revivendo cenas e pensamentos que eu achei ter enterrado, e a pessoa que, tantas vezes, esculpi para minha família, amigos e conhecidos era na verdade, uma grande mentira.
Tolo de mim, que sempre me orgulhei de raciocinar rápido, mas agora tropeço no raciocínio que me acusa…
Por um instante, desejo que a Dragonesa tivesse me matado, que seu fogo tivesse consumido meu peito em vez de queimar minha psique com esse lembrete insuportável. Mas não sou capaz de suplicar pelo fim, tampouco sou capaz de mudar.
Então permaneço aqui, encolhido numa cadeira suja, tentando organizar as próprias vozes que gritam no interior da minha cabeça — uma cacofonia que me impele a rever meus atos, reconsiderar minha vida… e, ainda assim, continuar mentindo para mim mesmo.
Wian está logo atrás de mim, a dois passos de distância — e apesar de seu jeito desengonçado e meio avoado, consigo sentir a intensidade de seu olhar. É como se ele mantivesse uma mão estendida em silêncio, pronto para me puxar do fundo do abismo, mas sem saber ao certo como fazê-lo.
No início, ele parece inseguro, o corpo meio inclinado, como se temesse que uma aproximação brusca fosse me espantar. Talvez hesite, não por covardia, mas pelo imenso respeito que carrega. Apesar de tudo, Wian é um homem que não cruza os limites emocionais de alguém sem pedir permissão.
“Não mereço esse respeito…”
— Belchior… — a voz dele soa baixa, quase abafada pela atmosfera pesada da delegacia.
Levanto o olhar, com esforço, e noto que Wian carrega um amontoado de papeis meio desalinhados contra o peito; são relatórios, circulares de ordens, anotações internas. Ele se sentou na cadeira ao lado, guardando um silêncio que não lhe é típico, como se estudasse meu rosto em busca de sinais que indiquem a hora certa de falar.
— Você esteve fora… por uns dez minutos — comenta, sem encarar-me de imediato. — Ficou ali, olhando para o nada. Quase derrubei aqueles tocos de relatório no caminho, achei que ia me zoar, mas nem reparou…
Ele tenta rir, mas o som morre na garganta, transformando-se num suspiro. É uma tentativa frustrada de aliviar a tensão.
— Tá tudo bem? — arrisca.
Por um segundo, sinto raiva de ser questionado: como se fosse possível estar bem. Mas, antes de liberar meu sarcasmo, lembro que Wian não fez nada para merecer uma resposta atravessada. Ele é o único que continua ao meu lado, mesmo após cada fuga e cada mentira.
— É… Só estou cansado — murmuro, mexendo em um bloquinho de anotações que nem sei para que serve. — Esse caso, os rumores… e essa sala — indico com um gesto vago. — Toda vez que venho aqui, parece que o ar fica mais denso.
Wian apoia os papéis sobre a mesa. Percebo que, em cima da primeira folha, há um esboço meio tosco de uma criatura humanoide. Ele deve ter desenhado enquanto folheava relatórios ou tentava organizar algum tipo de evidência. Semicerro os olhos, tentando decifrar o que é aquilo. Um busto? Um rascunho de suspeito?
— Então esse desenho… não é de um suspeito? — arrisco, apontando para o esboço.
Wian balança a cabeça negativamente, enrolando o papel entre os dedos.
— Não. É só um rabisco. Mas preciso te falar de outra coisa — ele respira fundo, como se procurasse um jeito de começar. — A Kadri quer que a gente siga novas pistas sobre o grupo que invadiu o castelo.
Faz uma pausa breve, recalculando as palavras:
— E… o anão veio falar comigo. Foi meio esquisito — quase pareceu que estava pedindo desculpas. Ele disse que sou o único que mantém você minimamente estável. Nós temos que ir juntos atrás de pistas.
A frase soa como um golpe suave. Estável. Seria engraçado, não fosse trágico — eu, Belchior Belshazzar, dependendo da amizade para me manter “são” enquanto cavo minha própria cova de mentiras. E, pior: eles sabem que Wian é a trava que evita meu colapso completo.
Wian nota meu desconforto, mas prossegue:
— De qualquer forma, preciso que decida se a gente continua no encalço desses invasores. Porque, sejamos honestos, a chefona aí não confiou em você, mas confiou em mim o suficiente pra dizer “faz o que puder para continuar a investigação e manter esse cara na linha”. — Ele dá de ombros, um esboço de sorriso de canto de boca. — E se você diz que vai parar, eu paro. É simples. Mas se você quiser ir em frente, eu vou junto, mesmo que o anão ou Kadri torçam o nariz.
Ele então se cala, cruzando os braços e esperando. É um momento frágil — sinto que meu próximo movimento vai ditar muito do que será de mim nos próximos dias. Sei que, se eu recuar agora, estarei livre de confusões… mas também preso na própria lama de indecisão e derrota. Se aceitar, coloco mais uma vez Wian e, talvez, Ravi e todos ao nosso redor em perigo.
Sacudo a cabeça, tentando afastar a sombra daquele olhar reptiliano que me acompanha.
“Você mente com lógica.”
Foi então que um grito cortou o silêncio.
— “MÉDICO! PELO AMOR DOS DEUSES, TEM ALGUÉM MORRENDO AQUI!” — ecoou a voz de um dos policiais da ala dos presos, desesperada, desafiando a atmosfera sufocada da delegacia. O som ricocheteou pelas paredes de pedra como o estampido de um feitiço mal canalizado, puxando todos de volta à realidade.
Meus pés arrastaram a cadeira para trás com um rangido surdo, as pernas rígidas impulsionando-me pelo corredor antes que a consciência compreendesse o que acontecia. Meus dedos buscaram, por instinto, o punho da adaga, os olhos varreram o ambiente, e só depois de quatro passos — quatro malditos passos — me dei conta: estava correndo em direção ao grito.
Antes mesmo de perceber, meu corpo já se movia.
“Mas por quê?”
“Não conheço quem está gritando… e menos ainda quem está morrendo. Então por que estou indo? Por que a urgência no sangue, o suor escorrendo na nuca, a pulsação tão alta quanto o desespero daquela voz?”
Não havia resposta racional. E isso me irritava.
O som de lamparinas tremulando, o eco apressado das botas no chão de pedra, o murmúrio inquieto vindo da ala dos presos — tudo se fundia num cenário caótico, mas o que realmente me torturava era a inquietação dentro de mim. A raiva não era do grito, nem da situação. Era de mim.
talvez, só talvez, ajudar alguém — mesmo um desconhecido — seja o último sinal de que ainda sou humano
Não sei o que esperava encontrar. Um homem sangrando, um grito desesperado, uma nova pista que me absolvesse das dúvidas que arrastava.
A cela estava entreaberta.
Lá dentro, pendia um corpo. Correntes — grossas, com os elos brilhantes— desciam do teto e enlaçavam o pescoço do único prisioneiro da ala. Os pés descalços ainda oscilavam suavemente, como um pêndulo hesitante, incapaz de decidir se marcava o tempo ou o fim dele.
Ao seu lado… um banco caído.
— Suicí…
Minha voz morreu quando o olhei no rosto.
O cadáver sorria
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