Capítulo 113: Diferentes, mas iguais [4]
“S-socorro… Estou com medo…”
Dentro de uma caverna escura, um menino chorava. Ele não parecia ter mais de oito anos e segurava as pernas com as duas mãos.
“Buá…!”
“Uaa!”
À distância, ele ouvia os choros das outras crianças. Abraçando as pernas com força, ele se encolhia.
‘Onde estou…?’
‘O que está acontecendo?’
‘Estou com medo.’
Essa era a primeira memória de Leonard1 no Céu Invertido.
A partir daí, ele foi submetido a torturas intermináveis.
“…Me desculpe…”
Ele era espancado.
“Isso… d-ói… É minha culpa… Não me bata.”
Ele era forçado a repetir as mesmas palavras todos os dias.
“Pelo Céu Invertido!”
E ele não lembrava quantas vezes havia passado fome.
“Estou com fome.”
Todo dia.
“…Desculpe.”
A vida era um inferno.
‘Ah… Não aguento mais… Isso dói…’
“Snif… Snif…”
Seus choros ecoavam baixinho enquanto ele chorava sozinho.
“…A-aqui.”
Foi quando outra criança se aproximou dele.
Segurando um pedaço de pão, ele o entregou a Leonard. Levantando a cabeça, Leonard olhou para o pão. Ele piscou, sem entender o que estava acontecendo.
“P-para mim?”
“…Sim.”
Foi quando Leonard conheceu Giel pela primeira vez.
Ele era mais alto que as outras crianças. Também era mais inteligente. Ele dava sua parte da comida sempre que alguém estava com fome.
Não demorou para ele se tornar o líder do grupo.
Mas mesmo assim…
Ele só podia ajudar até certo ponto. Mesmo passando fome e levando pancadas no lugar das outras crianças, o número de crianças no grupo diminuía.
O que antes era um grupo de mais de cem crianças lentamente se tornou um grupo de trinta.
“Estou com fome…”
“Minha barriga dói.”
“Dói… M-mãe… Quero ir para casa.”
“Aqui.”
Giel continuava a entregar sua comida. Mesmo com a barriga doendo de fome e os braços tão finos que os ossos eram visíveis, ele dava sua comida para quem mais precisava.
“A-aqui.”
Leonard seguiu seu exemplo.
Mas mesmo assim…
As mortes continuaram.
No final, apenas dez sobreviveram.
“A partir deste momento, vocês serão a Unidade dos Dragões Carbonizados.”
Giel, Arian, Jacob, Clyde, Laura, Johanna, Karl, Rowan, Evan e Leonard. Esses eram os nomes dos membros.
Eles eram os últimos sobreviventes do primeiro teste.
Tendo sobrevivido, agora eram membros oficiais do Céu Invertido. Por causa do trauma compartilhado, eles eram próximos uns dos outros.
“Pegue o meu…”
“Leve minha toalha.”
Quando um sofria, o outro sacrificava seu conforto para ajudar. Foi assim que eles seguiram em frente.
Em seu tempo com eles, foi uma certa conversa que marcou profundamente Leonard.
Sentado ao redor de uma fogueira, ele se lembrava de perguntar:
“Vocês lembram de suas famílias?”
“Não.”
“…Não.”
“Eu não lembro.”
Enquanto as chamas do fogo refletiam nos olhos das crianças, uma delas falou.
“Eu lembro.”
Era Laura. A segunda mais nova do grupo.
Com uma expressão que ele nunca havia visto nela antes, ela continuou:
“Minha mãe. Acho que ela tinha cabelos loiros e olhos verdes. Não lembro muito, mas lembro que ela era quente. Como esse fogo. Mas não doía como esse. Não sei onde ela está.”
Olhando para cima, ela perguntou:
“Vocês acham que ela ainda se lembra de mim?”
Estala!
O fogo crepitou enquanto os membros ficaram em silêncio por um breve momento.
Giel foi quem acabou respondendo, jogando um graveto no fogo.
“…Talvez.”
Para Leonard, Giel era um enigma. Ele era gentil e prestativo, mas, ao mesmo tempo, impiedoso quando necessário.
Era alguém que ele achava difícil de entender.
Mas, ao mesmo tempo… Era alguém que ele admirava.
Quais eram seus verdadeiros pensamentos…?
“Quero encontrá-la.”
“Você vai.”
Outro membro disse, olhando para o fogo.
“Quando alcançarmos um posto mais alto, teremos mais liberdade. Até lá, você poderá encontrar sua mãe.”
“Eu vou te ajudar.”
“…Obrigada.”
O grupo estava unido. Eles precisavam estar. Só tinham uns aos outros.
Aquela conversa se tornou uma memória insubstituível para Leonard.
A partir daí, o grupo trabalhou junto. Eles seguiam uma rotina parecida. Acordavam. Treinavam. Comiam. Recebiam missões. Voltavam e repetiam.
“Vamos continuar.”
“…Aguenta só mais um pouco.”
“Aff, Laura, você não cozinha muito bem.”
“Então você cozinha!”
“Ah, bem… Eu sou meio preguiçoso.”
“Então cala a boca e come.”
“Ei! Esse é meu lençol.”
“Tanto faz.”
“Aqui, pegue o meu.”
“Não, eu quero o dele.”
“Droga!”
“Hahaha.”
Suas vidas estavam lentamente melhorando. Mas… para Leonard, ainda havia algo que ele sentia faltar naquela vida.
Ele não conseguia explicar direito.
…..Toda vez que ele saía para uma missão, sentia que algo estava faltando.
Só foi entender na missão mais recente.
Eles já eram adultos agora. Não eram mais crianças.
Ficando atrás da multidão, Leonard olhou para o mar de pessoas indo para o estádio e murmurou:
“…Invejo eles.”
Os membros viraram a cabeça para olhar para ele. Diferente do passado, todos estavam diferentes. Não pareciam mais tão esperançosos como antes.
Pareciam sombras do que já foram.
Depois de tudo que passaram, era difícil não perder a humanidade. Mas mesmo assim, eles eram tudo o que Leonard tinha.
“Você os inveja? Por quê?”
Por quê…?
Leonard olhou para a multidão.
“…Olhe para eles. Todas aquelas pessoas. Estão aqui para vê-los.”
“Eles?”
“Os cadetes.”
“…Ah.”
Um silêncio estranho tomou conta do grupo logo depois. Enquanto todos viravam a cabeça para olhar o público, Leonard perguntou:
“Como vocês acham que é?”
Ele acenou com o queixo.
“…O reconhecimento da própria existência. Como vocês acham que se sente?”
Em um mundo onde só eles sabiam da existência um do outro, como seria ser reconhecido?
.
.
.
Pensei na pergunta de Leonard por muito tempo.
Olhando ao redor e vendo todos olhando para mim, me senti o centro das atenções. Mas mesmo assim. Mesmo estando diante deles. Eu não estava realmente lá.
…..Eu era apenas uma imagem abstrata de Julien Dacre Evenus.
Eles estavam olhando para mim, mas não para o verdadeiro eu. De certa forma, a história ressoou em mim. Era difícil continuar quando ninguém realmente olhava para você.
Mas…
Eu não precisava que olhassem para mim.
Eu estava bem com o que tinha. Havia um objetivo em minha mente. Um que eu tinha que cumprir, não importa o quanto doesse.
….e era exatamente por esses pensamentos que eu conseguia afastar a dor que estava sentindo agora.
“Haa.”
A dor…
Estava corroendo cada parte do meu corpo. Dos músculos aos órgãos internos. Eu sentia um calor fervente vindo de dentro de mim.
Eu sentia a dor aumentar a cada segundo que passava. Minha barriga começou a inchar e meu corpo ficou rígido.
“…..”
A energia que se acumulava no meu núcleo ameaçava tomar conta do meu corpo inteiro.
Eu precisava me livrar dela.
Deixá-la sair.
Olhando ao redor e vendo todos lutando desesperadamente contra o mamute, eu absorvi suas expressões de esforço.
Era óbvio que estavam tendo dificuldade para derrotar a besta.
Parecia imponente de onde eu estava.
Poderoso…
Tok—
Dei meu primeiro passo à frente.
Enquanto fazia isso, estendi minha mão. A única coisa que me limitava sempre era a falta de mana. Mas agora as coisas eram diferentes. Mana. Eu tinha de sobra. Tanta que meu corpo estava começando a se desfazer por causa disso.
“Haa… Haa…”
Enquanto minha respiração ficava ofegante, fios começaram a surgir do meu antebraço. Um, dois, três, quatro, cinco… dez.
“Mais…”
Eu podia sentir.
Com a quantidade de mana que eu tinha, podia criar mais fios.
Eu queria ver.
Quantos fios eu poderia criar com toda essa energia?
“Vinte.”
Não, eu podia fazer mais…
Mesmo com meu corpo começando a esquentar, eu extraí tudo de mim.
Shhh—
“…Trinta.”
Esse era o número de fios que agora envolvia meu braço. Olhando para a distância, concentrei minha atenção no dispositivo de gravação pairando no ar.
Olhei bem para ele antes de fechar os olhos.
“Huu.”
Respirei fundo e mergulhei minha consciência para dentro.
….Lá, eu podia sentir outras quatro personalidades tentando assumir o controle. Mas eu não deixei.
Ainda não.
“….”
“….”
No silêncio que tomou minha mente, abri os olhos novamente. Quando o fiz, vi o mundo inteiro diante de mim coberto por fios.
“Haa…”
Olhando à frente, vi a atenção de todos fixa em mim.
Do dispositivo de gravação a todos os outros na sala. Naquele momento, todos estavam olhando para mim.
Eu era o centro das atenções.
Eu…
….Existia.
***
Tudo aconteceu tão rápido que ninguém soube como reagir. Em um momento, Aoife e o time de Johnathan estavam lutando, e no seguinte, pararam. Não era que quisessem parar.
Era mais como…
…Eles tiveram que parar.
[O-o que é isso?]
[Fios?]
Cobrindo cada centímetro da câmara estavam fios. Eles envolviam todo o espaço sem deixar ninguém com espaço para se mover.
“O que está acontecendo…?”
“Que diabos é isso?”
A mudança inesperada pegou a plateia desprevenida, fazendo alguns se levantarem para ver melhor a projeção acima. Porém, enquanto tentavam entender a situação, o dispositivo de gravação focou em um certo indivíduo.
“Ah…”
Ele ficou parado no centro sem dizer uma palavra. Apenas ali, e mesmo assim, no momento em que o dispositivo parou nele, ele pareceu sugar o ar do ambiente.
“É ele…”
“…O que ele está fazendo?”
Era uma figura que a maioria já conhecia.
Tendo visto sua atuação, estavam familiarizados com ele. Ele era uma espécie de celebridade.
Naquela época, ele havia prendido a atenção do mundo com sua atuação. Desta vez, ele a prendeu por outro motivo.
“…Como?”
“Os fios… Estão vindo dele?”
Era difícil para a plateia entender o que estava acontecendo. Antes de seu stream ser desligado, todos viram seu grupo. Não era nada especial.
Por causa de erros técnicos, o stream deles foi desligado e todos viraram para assistir os outros grupos disponíveis.
Todos haviam se esquecido deles.
Dele.
…..Com o desempenho de todos, não era difícil esquecê-lo.
Mas…
Olhando para a cena diante deles, a plateia não conseguia desviar o olhar dele.
Se podiam esquecê-lo antes, agora não podiam.
Ele estava profundamente marcado em suas mentes.
[Tok—]
O som único de seu passo ecoou dentro da projeção enquanto ele dava um passo à frente.
Enquanto fazia isso, os outros cadetes permaneciam imóveis.
Não era porque estavam com medo, mas simplesmente porque não podiam. Os fios. Apesar de tão finos, pareciam resistentes.
[Weeee—]
O silêncio se quebrou quando o mamute soltou um rugido ensurdecedor, seu grito ecoando pelo ar enquanto fixava seus olhos em Julien.
Estalo! Estalo! Estalo!
Enquanto se movia, os fios se rompiam.
“….!”
“Ah!”
A plateia gritou ao ver isso. Era uma cena que conheciam. Momentos antes, todos os outros cadetes lutaram para sequer arranhar o corpo da criatura.
O mesmo podia ser dito sobre os fios, que não pareciam afetar o corpo do mamute.
[….]
Parado, Julien encarou a criatura que se aproximava. Ele não parecia incomodado com o mamute.
Levantando a mão, ele a fechou.
Os fios se comprimiram no mamute, que soltou um grito agudo.
[Weeee—]
Jorros de sangue voaram para todos os lados.
Mesmo assim, ele continuou avançando.
Estalo! Estalo! Estalo!
10 metros.
[….]
Julien permaneceu imóvel.
8 metros.
[Weeee—]
A criatura se aproximou novamente.
Mesmo assim, Julien não se moveu. A plateia assistiu com a respiração presa, segurando os assentos com força.
Enquanto ele ficava parado, uma certa voz ecoou na mente de Julien enquanto ele encarava o mamute que se aproximava.
‘Estou cansado.’
Era a continuação do discurso de Leonard.
‘E não é o tipo de cansaço que o sono cura. Estou cansado de não existir. De não saber se, além de vocês, alguém reconhece minha existência. Vocês também sentem, não é? Que estamos lentamente desaparecendo.’
6 metros.
Ele se aproximou mais. Sua presença maciça pairou sobre Julien enquanto a plateia olhava com olhos arregalados e expressões de horror.
“Oh não!”
“Ah!! Sai daí…!”
Mas ele não saiu. Julien continuou onde estava, sua expressão mudando novamente enquanto assumia uma nova persona.
‘…..É vazio. Me sinto vazio. Não sei por quê. Só me sinto assim. E isso me suga mais e mais a cada dia que continuo vivendo.’
4 metros.
Agora estava praticamente na frente de Julien.
“Akh..!”
Alguns da plateia queriam fechar os olhos. Queriam desviar o olhar da cena sangrenta que inevitavelmente aconteceria.
Mas…
Por algum motivo, todos continuaram olhando para ele. Era como se seus olhos estivessem colados nele, incapazes de desviar.
‘Então, se você me perguntar por que tenho inveja, é porque não tenho o privilégio de saber como é sentir que existo. Sou apenas uma sombra. Um pedaço de nada à deriva.’
2 metros.
[Weeee—]
O mamute rugiu.
Seu corpo se elevou do chão enquanto seu pé se aproximava dele.
‘….Eu não sou nada.’
E então…
Baque!
O mamute caiu a alguns centímetros de Julien. Ao seu redor, havia mais de uma dúzia de fios roxos. A plateia olhou para a cena em choque. O mesmo aconteceu com os cadetes.
Enquanto todos se perguntavam como era possível, Julien virou a cabeça para o dispositivo de gravação.
Sua expressão apareceu para todos verem.
“…..”
Um silêncio estranho tomou o estádio enquanto todos paravam de falar. Enquanto ele olhava, seus olhos pareciam dizer:
‘Vocês estão vendo isso…?’
Vendo isso? Para quem ele estava falando?
Seu rosto mudou levemente. Assim como seus olhos. De repente, parecia uma pessoa completamente diferente.
Os olhos de Julien se arregalaram enquanto olhava ao redor.
‘Eles estão olhando para você.’
Apesar de seu comportamento estranho, os espectadores não conseguiam desviar o olhar dele. Novamente, sua expressão mudou.
Desta vez, ele parecia diferente mais uma vez.
Uma nova persona.
‘…..Todos vocês.’
Ele não parecia estar se dirigindo à multidão.
Mas a algo mais.
‘Sua existência…’
Ele estava falando com as quatro entidades dentro dele. Havia dez, mas ele só conseguia acessar a mente de quatro.
Mesmo assim, Julien entendia que, apesar de suas diferenças, eles eram os mesmos.
Ele havia visto isso através dos quatro que conseguiu entrar.
Giel, Arian, Jacob, Clyde, Laura, Johanna, Karl, Rowan, Evan e Leonard. Esses eram os nomes das crianças.
A Unidade do Dragão Carbonizado.
Essa era a história de dez jovens.
Uma história triste.
Uma história de dez pessoas que, quanto mais existiam, menos sentiam que existiam. No final, todos queriam a mesma coisa.
Que alguém reconhecesse que eles existiam.
E ele fez essa performance para mostrar ao mundo.
‘O mundo está vendo. Eu mostrei a eles.’
Olhando para o dispositivo de gravação, ele voltou à sua expressão normal. Seus olhos olharam para o mamute, e seus lábios se separaram levemente.
“…..Que vocês existem.”
Existiam.
Diferentes, mas iguais.
Esse era o nome de sua história.
***
- Meu pítico[↩]
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