Capítulo 55 - O Preço da Liberdade
Koji e Tovah, agora sozinhos com Leal, encararam o homem, que não parecia nem um pouco intimidado. Ele riu levemente, quase como se achasse a cena toda uma piada.
— Já percebeu? — a voz de Spherea ecoou na mente de Koji.
— O que? — ele respondeu mentalmente.
— O Leal não é um portador verdadeiro. É a mesma coisa daquela portadora em Primavera do Leste. Ele tá com uma técnica emprestada.
Koji voltou a encarar Leal com atenção renovada, enquanto o homem dava um passo à frente, com os olhos fixos nele.
— Por que não me conta os detalhes do teu contrato com a Torre, Koji? É uma boa? Tem muitas exigências? Tipo deixar milhões de pessoas abandonadas pra serem mortas à vontade, como foi em Dynami? — provocou Leal, com a voz gotejando ironia.
Koji respirou fundo para manter a calma — Como se o que tu fez com o Conclave fosse diferente, não é?
— É totalmente diferente. Eu nunca me coloquei como protetor dos humanos — respondeu Leal, num tom mais frio.
Koji o encarou fixamente, como se buscasse algo nas palavras do antigo chefe. Após um breve silêncio, ele finalmente respondeu — Nunca?…
Dynami, quatro anos atrás
O sol de Dynami parecia cruel naquela tarde. Com apenas 17 anos, Koji andava pelas ruas quentes e lotadas do oeste da cidade, um emaranhado de barulho e caos. Feirantes gritavam suas ofertas, vendedores ambulantes circulavam com produtos duvidosos, e o cheiro de lixo e suor impregnava o ar. Ele vestia uma camisa surrada e larga demais, com buracos nos cotovelos, e uma mochila velha pendia de seu ombro. Seus olhos estavam cansados e semicerrados pelo calor. Ele tinha fome.
Dynami era sua casa, mas parecia nunca acolhê-lo. Recém-saído do grupo sobre-humano de caça, Koji estava só. Não havia avisado ninguém de sua partida; talvez porque não soubesse como explicar sua decisão, talvez porque soubesse que ninguém se importaria. O estômago roncava, a boca seca, mas ele continuava andando, empurrado pela multidão.
Eventualmente, seus olhos captaram algo ao longe: um galpão de lixo. A placa pendurada na entrada dizia “Serviço de Recoleta Municipal – Setor Oeste”. Os funcionários suados trabalhavam ali, carregando sacos de detritos, desmontando peças de metal e separando materiais recicláveis. Koji entrou, atraído pela promessa implícita de encontrar algo — qualquer coisa — que pudesse comer.
No interior abafado do galpão, o som de martelos e máquinas ressoava. Koji aproximou-se de um homem alto e forte que trabalhava na separação de metais, o rosto encardido de fuligem.
— Senhor… tem alguma coisa pra comer? — perguntou Koji, hesitante. Com sua voz rouca, quase um sussurro.
O homem olhou para ele com uma sobrancelha arqueada. Antes que pudesse responder, outra figura se aproximou. Leal, um homem magro, mas com uma postura confiante, surgiu com um sorriso provocador. Ele usava o uniforme do trabalho, mas limpas, e seu cabelo curto estava penteado para trás.
— Olha só, Gawa, a gente virou sopa pra mendigo agora? — Leal riu, com os dentes brilhando apesar da sujeira em seu rosto — Ei, garoto, isso aqui não é caridade, é trabalho.
Koji não respondeu, apenas encarou Leal com uma expressão vazia.
— Para com isso, Leal — interveio Gawa, o homem robusto — Ele só tá com fome. Todo mundo já teve dias ruins.
Leal suspirou, teatralmente, mas cedeu — Tá bom, tá bom. Vem comigo, moleque — Ele fez um gesto com a mão, indicando para Koji segui-lo.
Nos fundos do galpão, Leal abriu uma gaveta em um armário improvisado. Tirou um pedaço de pão endurecido e um pote de manteiga amassado. Passou a manteiga com uma faca velha, mas limpa, e estendeu o pão a Koji.
— Toma. Não vai dizer que eu nunca fiz nada por você.
Koji pegou o pão com as mãos trêmulas, murmurando um “obrigado”. Leal sentou-se em um banquinho próximo, observando-o comer — Tá sem rumo, moleque? — ele perguntou.
Koji assentiu, ainda mastigando
— Que tal um emprego? Não paga muito, mas pelo menos não vai morrer de fome.
Koji hesitou, mas, sem opções, concordou.
Nos dias que se seguiram, Koji trabalhou no galpão, ao lado de Leal e Gawa. Eles formaram uma rotina de trabalho duro durante o dia e conversas descontraídas à noite, quando voltavam para a casa onde moravam com outros trabalhadores. A casa era apertada, com colchões espalhados pelo chão e paredes cheias de rachaduras, mas era melhor que nada.
Leal logo se mostrou uma figura carismática, cheio de planos e sonhos ambiciosos. Gawa, por outro lado, era um homem simples, de coração generoso. Ele havia perdido a família em um acidente anos antes e parecia ver em Leal e Koji uma espécie de nova família. Era ele quem acalmava os ânimos quando Leal se tornava muito provocador ou quando Koji ficava na defensiva.
Leal contava histórias de sua infância, de como cresceu pobre em Dynami, mas sempre acreditou que poderia mudar sua sorte.
— Não vou ficar aqui pra sempre — dizia ele, olhando para o teto da casa como se pudesse enxergar além dele — Vou construir algo grande, algo que vai me tirar desse buraco.
— Qual é o plano, Leal? Você acha que tem como sair disso só com trabalho honesto no galpão? — Koji olhou para ele de canto de olho, curioso, mas com a desconfiança de sempre.
Leal soltou uma risada curta e amarga — O sistema tá feito pra gente nunca sair do lugar. A gente trabalha o dia inteiro, ganha uma miséria, e, no fim, ainda agradece por não morrer de fome. Não. Eu vou construir algo grande, algo que vai me tirar desse buraco.
— Construir como? — insistiu Koji, cruzando os braços.
— A gente dá o primeiro passo e vê onde dá pra chegar — disse Leal, com um brilho nos olhos. Ele sentou-se, apontando para o chão — Você acha que os caras que tão lá em cima começaram jogando limpo? Não, moleque. Eles fizeram o que precisavam fazer.
Gawa soltou a fumaça devagar e balançou a cabeça.
— Você fala como se fosse fácil, Leal. Mas o que exatamente você quer? Porque, olha, todo mundo aqui quer sair dessa vida, mas nem todo mundo tá disposto a pagar o preço.
Leal virou-se para ele, com os olhos intensos.
— Eu quero uma casa de verdade, Gawa. Quero um lugar onde eu possa acordar sem me preocupar se vai chover e a água vai inundar tudo. Quero uma mesa com comida suficiente pra três refeições por dia. Quero uma mulher, filhos… uma família. E você? Vai me dizer que tá satisfeito? Que quer passar o resto da vida fumando esse cigarro ruim e dormindo nesse cubículo?
Gawa apertou o cigarro entre os dedos, pensativo — Claro que não tô satisfeito, Leal. Mas sei onde essas coisas podem levar. Já vi gente se meter com coisas grandes demais e acabar debaixo da terra. Eu não sei se quero arriscar isso de novo.
— De novo? — perguntou Koji, levantando uma sobrancelha.
Gawa apagou o cigarro no chão — Antes de vir pra cá, trabalhei com uns caras que queriam ficar ricos rápido. Contrabando, roubo… essas coisas. No começo, parecia promissor. Mas um dia a polícia chegou e só eu escapei. Perdi tudo. Família, amigos, meu futuro. É por isso que tô aqui, tentando começar de novo.
A sala caiu em silêncio por um momento. Koji estudava Leal, tentando decifrar o que se passava na cabeça dele.
— E os inocentes, Leal? — perguntou Koji, finalmente — Você tá disposto a passar por cima deles só pra conseguir o que quer?
Firmemente, Leal respondeu — Não vou fazer nada que custe a vida de um inocente, Koji. Esse é meu código. Sempre foi. Mas me diz uma coisa… Quantos inocentes vão me ajudar a sair daqui? Quantos tão se importando se a gente tem o que comer ou onde dormir? Ninguém vai nos salvar. É cada um por si.
Gawa bufou e abriu um sorriso triste — Isso é verdade. Mas, mesmo assim, Leal, cuidado com onde você pisa. Nem todo caminho é bom, mesmo que leve pra onde você quer.
Koji inclinou a cabeça com os olhos ainda fixos em Leal.
— E se você conseguir tudo isso, Leal? Casa, família, comida na mesa. Como você vai se sentir sabendo o que precisou fazer pra chegar lá?
Por um momento, Leal não respondeu. Ele encarava o chão, com as mãos apoiadas nos joelhos, parecendo mais jovem e vulnerável do que de costume.
— Acho que vou me sentir vivo — respondeu ele, por fim, mas com menos convicção do que antes — E isso já vai ser mais do que sinto agora.
Koji não disse nada, mas as palavras de Leal ficaram com ele naquela noite, ecoando em sua mente muito depois que os outros adormeceram.
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