Capítulo 56 - O Peso da Sobrevivência
O sol ainda estava alto quando Koji e Gawa saíram para mais um dia de trabalho, com a mochila pesada nas costas e os sacos de lixo jogados nos ombros. O calor do oeste de Dynami parecia ainda mais intenso enquanto eles caminhavam pelas ruas movimentadas, o cheiro de comida de rua, suor e poeira misturando-se no ar.
Eles andaram por algumas quadras, coletando lixo, retirando restos de mercadorias de barracas e lojas. As ruas eram um caos, com carros passando apressados, pessoas conversando alto, tentando vender suas mercadorias, e o grito das crianças brincando nas calçadas enquanto voltavam da escola.
— Vai ser bom quando isso tudo acabar — Gawa disse, puxando Koji para uma rua lateral, onde os dois se depararam com mais uma pilha de lixo — Vai ser bom quando a gente tiver um lugar só nosso, com comida e descanso.
Koji olhou para ele, surpreso com a visão otimista de Gawa. Mesmo após tudo o que ele passou, parecia ainda ter uma esperança inabalável. Koji não estava certo sobre isso, mas sentia-se curioso. Gawa era diferente, era um realismo com uma busca constante por algo melhor.
— Você acha que isso vai realmente acontecer? — perguntou Koji, enquanto ajudava a carregar mais sacos de lixo.
Gawa deu uma risada suave.
— Sei lá, cara. Não sei se o que eu estou fazendo é certo ou errado, mas o que eu sei é que, se a gente continuar fazendo o que está ao nosso alcance, alguma coisa boa vai surgir. Eu vi muita coisa ruim, muita gente boa se perdendo. Mas ainda acredito que a vida é sobre tentar melhorar, mesmo que isso signifique começar do zero. Eu só queria… queria que as pessoas pudessem entender isso. A vida tem muito potencial pra quem sabe ver.
Koji observava Gawa com mais atenção agora. O homem tinha uma energia tranquila, mas ao mesmo tempo vibrante, como se nunca tivesse perdido totalmente a vontade de lutar. Ele não parecia carregar o peso de um passado como o de Koji, e isso lhe dava uma certa paz.
— E sua família, Koji? — Gawa perguntou enquanto estavam indo em direção à última rua do dia — Tem mais alguém por aí? Uma mãe, um pai? Ou é só você mesmo?
Koji deu uma pausa antes de responder. A pergunta o pegou desprevenido. Ele olhou para o chão, como se buscasse uma resposta nas calçadas sujas, nos papéis espalhados.
— Não, não tenho ninguém — respondeu Koji com a voz mais suave do que imaginava — Eu perdi os dois. Eu fui crescendo sem saber muito bem o que fazer da vida. Aí um dia, apareceu aquele pessoal do grupo de caça, e eu fui atrás. Achei que ia encontrar algo por lá, mas… Não sei, acho que eu não sou bom em fazer amigos.
Gawa deu uma olhada em Koji, que mantinha os olhos fixos no chão. Depois, ele deu um tapinha no ombro de Koji com uma leve risada.
— Bem, você tem eu e o Leal agora. E vou te dizer uma coisa, meu amigo, o caminho é longo, mas não é necessário estar sozinho. Eu sei que a vida não foi fácil pra gente, mas sempre dá pra achar um jeito de fazer as coisas melhorarem. A gente só precisa de um pouco de fé e vontade. E, quem sabe, se um dia a gente conseguir um trabalho decente, quem sabe até começar algo novo. Quem sabe criar uma pequena família, ou pelo menos uma vida mais tranquila.
Koji olhou para Gawa, surpreendido por suas palavras. Ele ajustou o peso do saco em seu ombro e perguntou para Gawa, que tinha um sorriso calmo, típico dele.
— Sabe, Gawa. Sempre me perguntei como você e o Leal acabaram amigos. Vocês dois… não podiam ser mais diferentes.
Gawa soltou uma risada curta, mas sincera, balançando a cabeça enquanto olhava para o horizonte — Isso é algo que eu escuto desde sempre. Mas, olha, as aparências enganam. Eu e o Leal, a gente pode parecer dois opostos, mas o que nos une vai além das diferenças.
— Certo, mas como vocês se conheceram? Porque não consigo imaginar vocês dois no mesmo lugar sem parecer uma coisa forçada.
— Foi há muito tempo, numa época em que as coisas eram ainda mais complicadas por aqui. Eu tava numa fase bem ruim, entende? Tinha perdido minha mãe, e com ela, perdi também qualquer direção na vida. Fiquei vagando pelas ruas, sem propósito, tentando sobreviver. Uma noite, no meio de uma confusão com uns caras que queriam roubar o pouco que eu tinha, Leal apareceu. Ele era um pouco mais velho que eu, mas não hesitou em entrar na briga. Nem me conhecia direito, mas ficou ao meu lado, com aquela teimosia dele que você conhece bem.
Gawa riu de leve, pois a lembrança estava nítida em sua mente — No fim das contas, acabamos levando a pior naquela noite, mas foi ali que percebi que o Leal era diferente. Ele não tinha medo de defender o que achava certo, mesmo que não levasse vantagem alguma com isso. Depois disso, a gente começou a andar junto. Eu o ajudei quando ele precisou, e ele fez o mesmo por mim. Foi assim que começamos a criar essa ligação.
— Mas e depois disso? Como vocês se tornaram tão… próximos? Porque agora parece que ele faz qualquer coisa por você.
Gawa parou de andar por um momento e olhou diretamente para Koji, com o sorriso agora mais sério, mas não menos caloroso.
— Ele é mais que um amigo pra mim, Koji. O Leal é como um irmão que Deus me deu. Não importa o que aconteça, sei que ele vai estar lá. Nós dois passamos por coisas que ninguém deveria passar, e isso criou uma conexão que vai além do sangue. Ele me ensinou que família não é só quem nasce com você, mas quem escolhe estar com você, independente de tudo.
— Acho que nunca vi você falar assim antes.
— Bom, não é algo que eu fale por aí, mas você merece saber. Um dia, vai entender o que eu quero dizer. Quando você encontrar alguém que esteja ao seu lado, não importa o quão complicado o mundo fique.
— Acho que sim.
Quando o sol começou a se pôr, os dois chegaram ao galpão. As luzes da cidade já estavam começando a brilhar à distância. Eles se dirigiram para o local de descarte, onde o lixo era depositado para ser separado e processado pela manhã seguinte. A bagunça era enorme, mas o trabalho precisava ser feito. Gawa e Koji despejaram os sacos de lixo com esforço, jogando-os no espaço designado. O cheiro era insuportável, mas o trabalho estava quase no fim, e logo eles poderiam descansar.
— Mais um dia, Koji. Mais um dia de trabalho, e mais um dia mais perto de algo melhor — Gawa disse enquanto batia as mãos uma na outra, tentando se livrar da sujeira.
Koji não respondeu imediatamente, mas seus olhos estavam mais tranquilos, menos fechados. Ele sentia que, por mais duro que fosse o caminho à frente, a conversa com Gawa naquele dia, a ideia de um futuro melhor, lhe deu uma faísca de esperança.
— Talvez, Gawa. Talvez a gente consiga.
A manhã do dia seguinte, sábado, começou tranquila, como qualquer outra. Koji terminava de se secar após um banho rápido. A toalha descansava sobre seu ombro enquanto ele sentava-se para comer algo simples: pão com manteiga e café preto. De repente, a porta se abriu. Era Gawa, que entrava com sacolas de compras, ofegante.
— Trouxe o que faltava. O arroz tá na sacola da esquerda — disse Gawa, fechando a porta com o pé.
— Valeu. Onde tá o Leal? — perguntou Koji, mastigando distraidamente.
Gawa hesitou por um instante, ajeitando as sacolas no chão.
— Saiu cedo. Disse que tinha uns negócios pra resolver, mas sabe como ele é… Sempre volta com uma desculpa ou uma história — respondeu, com um sorriso leve, mas preocupado.
Antes que Koji pudesse replicar, o estrondo violento da porta sendo arrombada ecoou pela casa. Três homens encapuzados invadiram o espaço com brutalidade, armas em mãos.
— Todo mundo no chão, agora! — gritou um deles, enquanto outro avançava para Gawa, socando-o na barriga.
Koji tentou reagir, mas foi empurrado com força contra a parede. Os homens agarraram Gawa, o arrastaram para fora enquanto ele resistia com toda sua força. Entre chutes e socos, colocaram-no dentro de um carro preto que já estava esperando. Koji, atordoado, correu desesperado atrás do veículo.
Enquanto o carro acelerava pelas ruas, Koji acelerou seus passos, que se tornaram mais rápidos, quase impossíveis de acompanhar a olho nu. Afinal, Koji era um portador, logo era sobre-humano, apesar de ainda novo, e aproximava-se rapidamente do carro. Pedestres paravam atônitos, apontando para o adolescente que parecia desafiar as leis da física.
O veículo virou em uma rua deserta, entrando em um depósito abandonado. Koji parou antes de ser notado, escondendo-se atrás de uma pilha de madeira perto do portão. Espiou por uma brecha e viu Gawa, com uma corda amarrada ao pescoço, equilibrando-se precariamente em uma cadeira.
De repente, Leal apareceu ao lado, arfando e com um revólver em mãos — Eu vou resolver isso, Koji. Fica aqui — ordenou, entrando no depósito com determinação.
Leal tentou negociar com os homens encapuzados, que exigiam respostas sobre suas ações recentes — Eu comprei a droga para garantir o território e evitar mais mortes! Vocês precisam entender, isso foi um mal necessário! — justificou Leal, suando e tenso.
— Você desestabilizou tudo, Leal! Fez inimigos por todos os lados! Alguém tem que pagar por isso — rebateu um dos homens, apontando para Gawa.
Koji, enquanto isso, tentava se aproximar lentamente de Gawa. Mas um dos capangas o notou — Ei, moleque! Sai daqui! — gritou, apontando uma arma.
Koji recuou, mas logo tomou coragem. Aproximou-se de Leal e sussurrou — Deixa comigo. Confia em mim. Quando eu gritar, fica atrás de mim.
Leal hesitou, mas assentiu.
— AGORA! — gritou Koji, tomando o revólver das mãos de Leal. Ele disparou três tiros, atingindo dois dos homens encapuzados. No caos, um disparo raspou a coxa de Gawa, que gemeu brevemente de dor.
Os outros homens começaram a atirar em Koji e Leal, mas, surpreendentemente, uma energia negra emergiu ao redor de Koji. Esferas escuras surgiram e bloquearam cada bala disparada. A sala ficou em silêncio, interrompido apenas pelo som das esferas atacando os criminosos. Um deles foi decapitado, outro partido ao meio.
Koji e Leal correram em direção a Gawa para libertá-lo, mas o último criminoso restante derrubou a cadeira em que Gawa estava. Ele começou a ser enforcado enquanto o homem os mantinha afastados com duas facas.
Uma esfera escura atravessou o rosto do criminoso, mas o impacto não foi rápido o suficiente. Leal, em desespero, pegou o revólver e atirou na corda, libertando Gawa, que caiu de uma altura considerável.
Koji correu até ele, tentando reanimá-lo. Gawa abriu os olhos por um momento, respirando com dificuldade, mas usou suas últimas forças para falar — Siga o Leal, Koji… Mesmo que não tenha ninguém… acompanhe ele, e quando encontrar algo… ou alguém… que te faça ajudar os outros… terá permissão para ir… — sussurrou Gawa antes de fechar os olhos para sempre.
Na noite do mesmo dia, apenas Koji e Leal estavam presentes no enterro de Gawa. A lua cheia iluminava o cemitério. Koji encarava o túmulo, de forma séria.
— Pelo que o Gawa me pediu, eu vou ficar. Mas tenho duas condições: sem matar inocentes. E, quando eu achar algo ou alguém que me faça ajudar os outros como ele também tentou encontrar, eu saio — declarou Koji.
Quando ele começou a se afastar, Leal chamou — Koji, aquilo que você fez lá dentro… as esferas… Foi impressionante. Você é um portador, não é?
Koji parou, confuso, e respondeu — Sou, mas… eu não fiz nada. Nem conheço minha técnica direito ainda.
Leal franziu o cenho, intrigado — Fez sim. As esferas apareceram do nada, nos protegeram, mataram os caras.
— Não sei de nada disso… — Koji respondeu sinceramente, mas com surpresa em sua voz.
Leal ficou em silêncio, observando o garoto se afastar. Depois, voltou-se para o túmulo de Gawa e sussurrou — Desculpa, irmão. Eu falhei contigo.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.