Capítulo 70 - A Trama de Hideki II
A escuridão era uma bala de borracha, atingindo Nikki Williams no ápice da tensão. Ele não se lembrava de ter engolido o pânico e cedido; a mente simplesmente apagou no instante em que Hideki pausou, deixando o silêncio da lanchonete esmagá-lo com a pergunta fatal: “O que vai fazer?”
Quando a consciência de Nikki retornou, era como despertar dentro de um caixão de madeira abandonado. Ele estava caído no chão frio, em meio a um amontoado de bujigangas esquecidas. O ar era denso, alimentado de um cheiro de mofo e poeira antiga. Não havia iluminação interna. O único vislumbre do mundo exterior vinha de uma fresta alta, filtrando um pedaço de luz pálida. Nikki se levantou, cambaleando. Os músculos dele protestavam com a dor da luta perdida e o golpe certeiro de Hideki. Ele jogou para os lados uma lanterna quebrada e um sofá velho, tentando criar algum espaço.
— E eu vou ficar aqui?
A resposta veio do portão de aço na frente, sem que Hideki sequer se movesse para entrar — Aqui é o único lugar possível.
Nikki correu até o portão, empurrando-o inutilmente. Estava trancado — Aqui não tem nem luz, e água, e comida? Aqui eu vou morrer, porra. Não dá!
— É claro que eu vou trazer comida e água. — A indiferença na voz de Hideki era um insulto.
Nikki Williams recuou e encostou as costas contra a parede fria. A humilhação de ser tratado como um animal de laboratório acendeu a chama do ódio.
— Não pense que por eu ter concordado em cooperar que eu me esqueci do que você fez, seu lixo… Eu ainda vou te matar.
— Esqueça isso… — Hideki continuou, no mesmo tom monocórdio. — Amanhã voltarei aqui, com a comida, e aproveitarei para contar com o que você vai cooperar, entendeu?
Nikki respirou fundo, tentando reorganizar os pensamentos. Ele tinha perdido. Tinha sido manipulado pela ameaça em São Paulo, e agora, sua única chance era a chantagem — Se o que for fazer, seja lá o que for, eu não concordar, nada disso vai funcionar.
Hideki não reagiu à ameaça implícita. Ele apenas encarou o portão por um instante, e em seguida, sem expressar nada como sempre, fechou-o com um estrondo que fez o quartinho vibrar, alagando Nikki pela plena escuridão no interior do cômodo. Ele havia saído.
Naquela mesma noite, no QG da Fundação, o quarto de Hideki era a extensão de sua mente: minimalista, frio e quase vazio. Deitado na cama, sob a pequena iluminação laranja que mal conseguia quebrar o cinza escuro do teto, Hideki encarava a escuridão sem piscar. O conforto de um ambiente neutro era sua fuga; ali, ele não precisava processar Tramen, Zarek ou a iminente destruição. Sentia que, no fundo, o seu vazio opaco, tão visível e imposto em si, talvez tivesse algo ainda… talvez fosse uma porta. Foi sem piscar os olhos, perdendo seu olhar no teto, que o silêncio total tomou sua mente, seu coração, seu corpo. Uma anestesia auto-induzida, a única forma de paz que parecia conhecer.
“Que coisa…”
Fugindo dessa calmaria estranha que beirava o tédio, Hideki piscou os olhos à força e se virou para o lado, agora olhando para a janela e a vista da noite, iluminada pela clara luz da lua. Havia algo de especial naquela luz. Sem saber, sem nomear, Hideki sentiu-se atraído pela clareza que parecia se mostrar exclusivamente para ele. Ele se levantou da cama e caminhou até a varanda simples de seu quarto. Sentou-se na cadeira de balançar que ali havia, mas não se balançava, apenas olhava para a lua com um grau de ligação ou talvez na busca por achar algo nela. Neste momento, Hideki era uma criança voltando a encarar algo que fosse pra si, que talvez ele precisasse ou sentisse que precisava, ou que ele mesmo havia deixado para trás. Que resposta haveria ali na lua, se até mesmo ele buscava saber o que tanto supostamente queria achar? Nada de sua boca saía, nem mexia. As suas mãos, caídas perfeitamente nos braços da cadeira, lhe davam um conforto que era o oposto da lógica da qual ele tanto se banhava, algo que a água é capaz de dar, ou era isso que ele queria achar. Do contrário, seu olhar nada mexia, nada demonstrava, nada se importava, como um morto que obteve o dom de novamente olhar o mundo em cores. Para a lua, Hideki se direcionava, mas dela, nada recebia. Ou ele somente não sentia receber, ou simplesmente não recebia… porém, talvez não da forma cruel que ele interpretava.
Aos poucos, seu olhar se moveu, mas não para a lua e nem como alguém que sentiu algo de diferente. Seus olhos se direcionaram para o chão da varanda. Ele se levantou e encostou os antebraços no aço da varanda, inclinou o corpo e olhou agora para o gramado lá embaixo, no quintal do QG. Ali, alguns esquilos e demais bichos caminhavam em harmonia, buscando algo antes que fossem vistos. Com o olhar baixo, ajudado pela clara luz da lua, Hideki viu a sombra de um braço mexendo na parede da aberta Sala de Estar do QG, que tem entrada livre para o quintal.
“Tem alguém aqui!”
Hideki inclinou mais o corpo para a frente da varanda, tentando ver quem era, mas o ângulo não era favorável; a pessoa estava mais para dentro da sala. Sem hesitar, Hideki deu um leve impulso para trás e pulou lá da varanda do seu quarto, no alto andar do QG, aterrissando no quintal.
Deu de cara com quem estava lá.
Era o garoto Riley, de pijama, gorro de papel Noel na cabeça, e com as mãos cheias de amendoins e castanhas.
— Não pode ficar fora do quarto! — Hideki afirmou , com a voz baixa, aproximando-se de Riley e sutilmente guiando-o de volta para o cômodo onde ele ficava.
— Eu só estou jogando comida para os bichinhos ali. — Riley apontou para os arbustos, que agora fervilhavam com esquilos, guiados pelas comidas que residiam nas mãos do garoto.
— Está vendo? Eles estão com fome. — Riley balançava as mãos.
Hideki nada fez. Visivelmente indisposto de convencer o garoto, Hideki permitiu que o menino arremessasse cada pedaço de comida para os animais, que iam correndo para onde caía o amendoim ou a castanha. A lua, estranhamente brilhante, iluminava com certa exceção a figura do menino, que, frente a Hideki, era quase um maestro guia dos animais famintos. E esta cena, Hideki encarava, com o olhar estagnado de sempre, o mesmo olhar que se caiu sobre o brilhar da lua na varanda. Ele observava, mas nada sentia, nem mesmo o que era perdido.
— Não quer me ajudar? — perguntou Riley, estendendo sua mão esquerda aberta, cheia de amendoins.
Hideki apenas aceitou. Depois de alguns milissegundos encarando a mão cheia do menino, ele abriu as duas mãos. O garoto despachou os amendoins para o comando de Hideki, que, lentamente, ficou ao lado esquerdo do garoto e jogava com a mão direita, quase que na mesma hora que Riley. Mesmo que o olhar opaco de Hideki ali ainda estivesse como um morto que nada sente, e que não cessou de sumir mesmo quando se viu buscando e achando algo na sensação de encarar a lua, de encarar o teto, ou de observar os animais correndo atrás de comida… talvez existia mais junto do “mesmo”.
(…)
Na penúltima manhã antes da missão em São Paulo, Hideki descia as escadas rumo à cozinha do QG. Abriu os armários, pegou um prato e o colocou sobre a mesa branca e cinza, que era moderna. Pousou dois pães, cortou-os com faca e passou manteiga. Colocou os dois na larga chapa de pães presente ao lado do forninho, e, posteriormente, encheu uma xícara com café. O plim da chapa deu o sinal. Hideki retirou os pães, no exato momento em que Tramen, seu irmão mais velho e também portador da Fundação, apareceu na cozinha, vestido de roupão e todo descabelado.
— É para mim, meu querido irmão? — Tramen se aproximou de Hideki com os braços apertados, os olhos fechados e sorrindo, um contraste vibrante com a apatia do mais novo.
— Acordou agora? — Hideki se virou para a mesa, pegando o prato com os pães na mão esquerda e a xícara de café na mão direita, ignorando a proximidade forçada do irmão.
— Faz tempo que você não prepara um café da manhã para mim, não acha? — Tramen abraçou Hideki de lado, escorando-se no ombro e costas direitas dele.
— Sai de perto. — Hideki deu um leve empurrão em Tramen, e enfim saiu andando da cozinha com os pratos com pães e o café nas mãos.
— E para quem é isso? Não vai dizer que é para a chefia? — indagou Tramen, confuso.
— Riley.
Hideki virou num corredor e desceu as escadas que davam para um andar mais abaixo, onde ficavam os cômodos omitidos, local este que abrigava o Riley, e escondido até mesmo de Zarek e Tramen, o Nikki Williams.
— Riley… esse menino vive melhor que eu aqui. — murmurou Tramen para si mesmo.
Contudo, Hideki não foi verdadeiramente no quarto de Riley, mas sim entregar o lanche da manhã para Nikki Williams. Chegando lá, ele abriu o portão devagar, entrando sem fazer barulho.
— O tempo parece não passar nada nesse lugar podre. — Nikki Williams se levantou, passando a mão no cabelo e arrumando-o.
— Aqui não é podre. — Hideki colocou os pães e o café no chão, agachando-se, e Nikki Williams se aproximou da comida, para comer sentado. — Ah, não é não…
— Já vou. — Hideki se preparava para sair.
— Que? Como eu vou comer isso no escuro? — Nikki protestou. — E outra, e o que você vai fazer mesmo que quer que eu coopere contigo? Esqueceu que iria me contar hoje de manhã?
Hideki suspirou, virando o rosto, buscando paciência que não tinha. Ele voltou a se agachar, ficando na altura de Nikki que estava sentado comendo. Deixou o portão do cômodo só um pouco aberto, dando a luz mínima para Nikki conseguir comer.
— Depois de amanhã, eu irei até São Paulo com a ordem de destruir toda a cidade… — Hideki dizia calmamente, sem quase abrir a boca. Tramen, que não estava ali, mal poderia ouvir. — Mas não vou fazer isso, e só você sabe disso… porque será uma peça importante do que vou fazer.
— E o que vai fazer? — Um pedaço de pão caia da boca de Nikki.
— Só precisa saber que você não vai morrer. O resto, eu faço…
(…)
No fim de tarde do dia seguinte, o cômodo onde Nikki Williams estava já não tinha a presença ilustre do próprio Nikki Williams; mais ninguém lá estava. E lá, olhando para o grande portão de aço escuro na entrada do QG, a porta de casa da Fundação, estava Hideki, vestido com o seu típico traje preto levemente folgado. Ao seu lado, Tramen apareceu, batendo e escorando sua mão direita no ombro esquerdo de Hideki, dizendo.
— Hoje vamos fazer um tipo de Hiroshima, e eu estou sentindo que vai ter tantos canais de TV mostrando nossa cara… as mídias estarão cansadas de tanto nos ver sorrindo…
Hideki nem reagiu, somente continuava a encarar o portão por onde passariam.
— Estão preparados, meus queridinhos? — Zarek se aproximava, com os braços abertos e com sorriso largo.
— Sim. — Hideki respondeu, e Tramen, mais flexível, confirmou. — Claro, chefe.
— Os dois já sabem o que fazer. Tirem a noite de hoje para apenas pensarem um pouco, relaxarem… e amanhã, de manhã, independente do horário específico, façam aquela cidade sumir, entenderam, Hidezinho e Tramenzinho? — Zarek abraçou os dois com a falsa intimidade de um líder manipulador.
Quando os dois entravam dentro do carro, Hideki parou antes de entrar no canto do motorista, saindo para fora novamente e perguntando a Zarek — O garoto está bem?
Zarek abriu um sorriso de canto, olhou de forma meio analítica para Hideki — Está sim, Hideki. Está. Agora, vá com seu irmão… e não esqueça de fazer o que eu mandei… — Zarek se despediu, dando tchau com as duas mãos e fazendo careta como um louco palhaço. — Tchauzinho!
E então os dois foram.
(…)
E chegou a querida manhã, no subterrâneo da Estação da Sé, diante de Tahiko e das centenas de soldados das forças especiais da Torre, e com Nikki Williams amarrado, com fitas na boca e inconsciente, Hideki disse — Eu proponho algo para que nada de ruim aconteça para ninguém.
A troca de olhares entre Tahiko e os demais soldados era tensa. E acima de tudo, Tahiko estava prestes a explodir — Que tipo de proposta pode vir da boca de um verme como você?
— Eu peço que tenha calma. — Hideki ergueu a mão, com os dedos esticados sobre o detonador. — Antes de entregar o Nikki, proponho uma troca.
Ninguém falava. Nem mesmo Tahiko, nem o capitão Tom.
— Eu dou Nikki Williams vivo. Eu desativo as seis bombas. São Paulo é salva. — Hideki disparou as cláusulas como uma metralhadora. — Em troca, você, Tahiko, e a Torre, garantem que o garoto Riley permanecerá sob minha intervenção. Por tempo indefinido. Sem planos de resgaste.
A fúria de Tahiko era uma força física, mas a lógica de Hideki o havia encurralado — Você está sugerindo que eu confie a vida dele a você? Ao homem que matou milhares de civis em Dynami sem nem piscar os olhos?! Você matou o pai do Nikki! Lembra? — Tahiko apertou os punhos.
— Eu apenas executo ordens. E esta é minha ordem pessoal agora. É a única forma lógica de manter Riley longe de fora do tabuleiro imposto pelos demais membros da Fundação, é deixando ele comigo. E também a única forma de garantir a vida de milhões de civis agora. Pense como o Capitão Tom pensaria.
A ordem do Capitão Tom veio pelo rádio, pesada: “Tahiko! Aceite a troca. Salve a cidade. A custódia do garoto é uma variável posterior.”
— Aceito. — Rasgando a sua gargante, Tahiko respondeu, encarando Hideki com desgosto e desprezo — Mas se eu souber que você encostou um dedo nele… eu o caço e o mato. Eu juro.
O braço de Hideki se moveu. O clique sutil do dispositivo de pulso. As seis bombas emitiram um longo e agudo beep, suas luzes piscando e, então, se apagando em um silêncio opressor. A ameaça havia sumido. Tahiko correu para desamarrar Nikki.
Quando Tahiko olhou para o local onde Hideki estava, ele já havia sumido.
Hideki se moveu com a velocidade da indiferença. Ele não precisava ver a comemoração da Torre ou o olhar de repulsa de Tahiko. Ele tinha o que queria: Riley. Ao sair do subterrâneo, a luz do dia o atingiu. Foi interceptado por Tramen, que esperava escorado no carro.
— Não estourou as bombas… Você falhou nas ordens, Hideki. — Tramen sibilou, impondo finalmente uma posição de irmão mais velho sério — Zarek não vai gostar disso, seu idiota.
Hideki nem parou. — Saia da minha frente.
— O que está fazendo, seu tolo! Você vai destruir o seu posto na Fundação se não mudar o que fez! — Tramen o segurou pelo braço. Hideki era o executor. Sua reputação de obedecer era sua arma.
— Eu te disse. Saia. — A frieza de Hideki era assustadora quando demonstrada. O olhar dele se apagava de qualquer vida.
Hideki seguiu até o QG, a calmaria aparente da suposta execução bem-sucedida do plano da Fundação em São Paulo era palpável. Ele ignorou tudo, indo direto para o quintal. Zarek o esperava na grama verde, braços abertos com o sorriso largo e teatral.
— Estou surpreso, Hidekizinho. Pensei que nessa manhã veríamos uma nuvem de fumaça subindo sobre São Paulo…
— Nikki Williams está vivo e a cidade está de pé. — Hideki assumiu a postura decisiva de responsável, algo que já eram de costume, mas o cenário era totalmente diferente.
— Necessário para quem? — Zarek se aproximou, na posse de um olhar curioso, mas analítico. — Você é o único aqui que tem a audácia de desobedecer a duas ordens em um único movimento. Realmente acha que eu não sabia o que você faria antes mesmo de fazer, Hidekizinho?
Hideki se virou, ficando olho a olho com Zarek, de fato, uma cena inabalável.
— Diante das duas ordens que não executou… — Zarek sorriu contidamente. — Tenho total certeza que esteja pensando em ter o garoto Riley para algo que certamente não é para a mesma coisa que a Fundação quer ter, ou acha que estou maluquinho?
— Tenho essa mesma certeza…
Zarek apenas recuou, balançando a cabeça, mexido de uma presunção perigosa.
— Ah, Hidekizinho… Você é sempre assim. Hahaha! Você não sente medo, não sente nada. O seu coração é desalmado e sua alma é sem coração… Mas ainda sim, não faça da sua falta de medo, pólvora para uma crise interna. O alto escalão da Fundação odeia essas coisinhas por aqui…
ATENÇÃO AOS MEUS PORTADORES! O ARCO DOS CORAJOSOS ESTÁ PRESTES A SER CONCLUÍDO.
Caros leitores e sobreviventes do caos,
Este comunicado é de extrema importância para o nosso cronograma de publicações. Conforme a programação habitual de lançamentos, na próxima quarta-feira, dia 8 de Outubro, lançarei o Capítulo 71 de Akarui!.
Com ele, damos por oficialmente encerrado o Arco dos Corajosos.
Entretanto, para garantir que o próximo grande arco comece com a qualidade e profundidade que a história exige, a obra principal Akarui! entrará em uma breve pausa de 19 dias após o lançamento do Capítulo 71. Durante este período, dedicarei todo o tempo à escrita e finalização do spin-off que preencherá as lacunas emocionais e lógicas de nosso Executor mais frio: “Akarui! Episódio Hideki”.
Este spin-off é vital para entendermos as motivações de Hideki entre os eventos do Arco de Dynami e o acordo em o Arco dos Corajosos. É uma peça crucial para o que está por vir. Akarui! Episódio Hideki está previsto para ser publicado no dia 25 de Outubro, certamente em nosso espaço aqui mesmo no Illusia.
Agradeço imensamente a compreensão e a paciência de todos. A publicação dos capítulos contínuos de Akarui! retornará ao normal, seguindo as datas semanais (Segunda, Quarta e Sexta), logo após o lançamento do spin-off de Hideki. Preparem-se para o final do Arco dos Corajosos.
— Kailan.
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