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    A fúria de Tahiko havia se convertido em cinzas frias; ele havia feito o acordo, salvado milhões, e engolido o veneno de ter confiado Riley ao homem que mais desprezava. Nikki Williams, agora desamarrado e levado às pressas pelos agentes, ainda estava inconsciente. A Torre tinha triunfado sobre a Fundação, mas Tahiko sentia-se mais derrotado do que nunca. E do céu da vasta metrópole, que tão submersa esteve pelo silêncio na ausência dos seus moradores e da vida urbana nas últimas horas, foi ouvido o rugido de um motor militar — da primeira aeronave militar de fora da operação a chegar. O helicóptero das Forças Especiais da Torre, que desviava de uma rota para Brasília, finalmente chegou à capital paulista. Bem atrasado. Koji estava de pé na cabine, e seu olhar varria a paisagem abaixo. Ele tinha forçado o desvio. Ele tinha que estar ali, ao lado de Tahiko, o homem que o Capitão Tom informou estar sozinho diante de seis bombas. O desejo de Koji de confrontar o mal de frente, de proteger vidas, ainda era a força bruta que movia seus músculos e mantinha sua mente despertada, um pouco disto poderia se ver em Tahiko, apesar de suprimida pela sua força maior — a raiva.

    A aeronave iniciou a descida lenta. O caos de dois dias de êxodo massivo havia sido substituído por uma calmaria opressiva. Koji olhou para as ruas vazias, para os agentes e soldados que, lá embaixo, se abraçavam em explosões controladas de alívio. Era a vitória amarga que Tahiko havia comprado. O rádio do piloto estalou com a voz do Comando Central, informando: “São Paulo limpa. Operação concluída com sucesso. Bombas neutralizadas. Agentes em segurança.”

    Koji sorriu, um sorriso genuíno e exausto. O peso da luta contra Leal em Cuiabá, a salvação do centro-oeste inteiro, e a ansiedade da viagem esvaiu-se. Ele havia chegado tarde, mas a missão fora cumprida.

    — Tahiko… você conseguiu. — disse Koji para si mesmo, com a voz baixa, movida pelo respeito dele com seu amigo portador. A vitória era da Torre. Mas no vazio das ruas, ainda era possível sentir o rastro da Fundação, o cheiro frio e inorgânico de Hideki.

    Na manhã do dia seguinte…

    O caos foi substituído pelo retorno triunfante das massas paulistanas. E no estacionamento da sede da Torre em Brasília, sob o canto leve dos pássaros, a Comandante Ava fechava a porta de seu carro, elegantemente vestida em um salto preto, calça social justa e um top halter cinza que deixava minimamente à mostra a disciplina rígida de seu corpo. O seu agente leal,  Nahome, aproximou-se, apressado, mas contido. Sua pressa não parecia por atraso, era somente para conversar com ela. Ele estava de terno completo, com exceção do paletó que ainda estava deitado em seu braço esquerdo.

    — Bom dia, Comandante Ava. — saudou Nahome, com uma mescla de formalidade e alívio.

    — Bom dia, Nahome. Bom dia. — Ava, enquanto enfim dava a volta no carro para caminhar em direção à entrada da sede, o ritmo era compassado, como sempre.

    — Está aliviada? O peso nas costas diminuiu? — Nahome batia de leve em seu paletó, limpando.

    — Sem dúvidas, sim. Nunca senti tanto estresse em poucas horas. 

    — E o presidente Rod Sugg? O que ele fez não foi muito bom. 

    — Certamente não. Mas ele nos traiu para salvar a neta. Ele vai continuar sendo presidente da Torre, e a portadora que ele contratou pelas nossas costas já está na nossa prisão. — Ava mantinha um olhar crítico, observando o mais alto andar da sede, local de Rod Sugg — E pensando de cabeça fria agora, o óbvio é entendermos que a atitude dele foi compreensiva. Eu não tenho neta, filha ou filho, mas não posso mentir falando que nunca faria algo do tipo para salvar um deles.

    Nahome riu de leve — É uma empática e também compreensiva linha de pensamento.

    — E como está o Saik? Ele melhorou?

    — Ele está estável. Deixei o Tovah lá fazendo companhia, visto que houve estabilidade… — disse Nahome. Ava suspirou positivamente com a notícia, mas ouviu Nahome continuar, ganhando um tom de reverência sombria. — Eu não sei se soube do que realmente o Saik fez por nós em Cuiabá, Comandante…

    — Não sei, nem eu tive tempo e nem vocês de falar algo. — Ava apressou o passo, indicando que o tempo era escasso.

    — Ele quase morreu, e nós, eu e Tovah ainda não tínhamos entendido isso até ontem de noite… No hospital, conversamos um pouco sobre isso e ele me disse que o que ele fez teve chance até majoritária, maior chance, dele morrer fazendo o que fez… — Nahome sentiu o peso das próprias palavras. — Eu não sei o que ele pensou para decidir fazer aquilo, numa situação que todos nós poderíamos morrer. Seja lá o que pensou, do que lembrou, o que o motivou, ele escolheu morrer pela causa de enfrentar o mal. Não acha isso diferente de qualquer portador que trabalhou com nós?

    A comandante só caminhava, olhando para a frente, e pensativa sobre o sacrifício de Saik — Poucos iriam decidir por algo assim, Nahome…

    E ela continuou — Não posso dizer que Tahiko fez algo diferente. Ele foi importante para as explosões em São Paulo não acontecerem. Ele é uma pessoa de muita raiva, instintivo demais, mas também escolheu sacrificar algo vital para ele: a própria raiva desconsiliadora. — Ava refletiu sobre a dor da escolha forçada de Tahiko ressoando com sua própria experiência.

    — Acha que Tahiko se sentiu mal, escolhendo salvar São Paulo? 

    — Não, Nahome… Ele não é tão egoísta assim. Mas a raiva dele é genuína, verdadeira, e faz com que ele seja desconciliador pleno daquilo e daqueles que não representam algo também genuinamente bom. E sei que quando Tahiko, escolheu cooperar conosco em São Paulo, se sentiu cooperando com algo que não é plenamente bom. Isso deve ter soado ruim para ele.

    — Acho que pela primeira vez em muitos anos que trabalho na Torre, discordo de você, comandante. — Ela soltou um sorriso de canto, pouco e mais influenciada pela amizade dos dois, e Nahome continuou — Tahiko não deve pensar dessa forma, porque ele mesmo não é plenamente bom. Ele é um portador, a alma dele está entrelaçada diretamente com um demônio. Nem mais a ideia de salvação da sua alma existe, pois ele em si não pertence mais a ideia de salvação. É impossível…

    A comandante somente ouvia Nahome destrinchar seu pensamento.

    — É impossível… Nem mesmo a raiva dele é genuinamente verdadeira, porque nem genuinidade nele existe. O que eu de fato acho, comandante, é que Tahiko somente odeia o mal e admira o bem. Por isso, ele sente raiva demais, sente ódio demais, não porque ele é plenamente bom, é somente por sentir que se ele aceitar o mal, que já é ligado na alma dele por ser um portador, estará cooperando com aquilo que o faz odiar — o mal que está presente na sua alma. O Tahiko é somente a figura difícil de ser um portador bom, que ainda por ser plenamente ruim, escolhe se sufocar para alimentar o bem que ele em si, não tem nenhuma gota.

    — E o Koji, o que acha dele? — Séria, mas pensativa, caminhava a comandante, com seus olhos fixados no chão que por onde pisava e as pedrinhas que chutava.

    — Koji também ajudou em um segundo momento, depois de Saik. Na segunda vez que Cuiabá, e o centro-oeste inteiro do país seria explodida inteiramente, Koji foi quem salvou. — Nahome continuou, rindo levemente. — Olha, os três… acho que você vai ter que inflar a moral deles.

     Ava olhou para Nahome, gesticulando negativamente com a mão esquerda — Nada disso… Da última vez que eu inflei a moral de alguém, eu fui abandonada, lembra?

    O agente que desacelerou, e entendeu o que disse a comandante, sentiu o peso da dor dela. Seus olhos caíram para a tatuagem icônica dela, presente na parte de trás do pescoço da Ava, abaixo da nuca: a tatuagem simplista de um H e um A entrelaçados.

    — Ela ainda não tirou?… — Nahome murmurou para o vento, uma antiga marca ainda gravada na pele da comandante, de um amor antigo e traíra.

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