Tenho o prazer de confirmar que Akaru! Spin-off: Episódio Hideki está 100% concluído. A narrativa do Executor, a gênese de sua Lógica e o custo de sua Inversão estão prontos para serem revelados. Não haverá mais hiatos. Podem esperar a publicação em breve. Muito em breve, mesmo.
Agradeço a paciência de todos. Podem destrinchar o nosso novo arco; Ratos
— Kailan.
Capítulo 73 - A Primeira Peça
Em São Paulo, sete dias haviam passado depois daquele caos que havia assombrado a capital paulista. Era surpreendente, pois encontrava-se nítido e perceptível os passos contidos dos paulistanos, alimentados da preocupação e medo diante da iminência destruição da cidade, poucos dias atrás. Ainda assim, a ferocidade individualista e arrogante nas grandes ruas, avenidas, prédios e estabelecimentos de São Paulo, quase como um caráter pleno e instaurado com sucesso naqueles que caminhavam sobre ela, não podia tornar possível a entrega de atenção suficiente para as próprias preocupações e alertas dos seus habitantes.
Afinal, era isso que a tornava viva, vibrante.
Entretanto, no meio dessa recente calmaria que ainda parecia ter dificuldade para aliviar as pessoas e, entre as multidões de indivíduos que tanto nas ruas quanto nas residências, formavam a massa paulistana, morava uma jovem mulher de apenas 24 anos, cujo nome era Amanda, natural dessa grande metrópole. Branca, detentora de um corpo magro e admiradora da sensação de observar seus longos e lisos cabelos ruivos balançando diante do vento, sempre que corria.
Era de manhãzinha, Amanda tinha o tempo catalogado. Cinco minutos para o alarme, três para o café preto, dez para vestir o terninho que ainda cheirava a novidade e que apertava um pouco nos ombros. O relógio biológico, treinado desde os tempos de faculdade, era sua única bússola em uma São Paulo que se movia pela urgência. Ela corria. Os tênis all-star brancos, já cinzentos pela quilometragem, batiam ritmicamente no asfalto da manhã.
A conversa com os pais foi uma splash de cores na monotonia do cinza.
— Vai dar tempo, filha. Eu te levo — disse Hinário, seu pai, já na porta.
— Não precisa, pai. É bom que eu pego o ônibus. E o senhor não pode se atrasar pro seu trabalho. Deixa comigo. — Ela sorriu, já mastigando a torrada com pressa, o café esfriava na mão.
O ritual era a tentativa de blindagem contra a cidade. Ela precisava estar no Escritório ASHI, um dos mais renomados, conhecidos e valorizados da terra da garoa, antes das oito da manhã. O fato de uma jovem ter conseguido ser estagiária em um escritório tão importante era algo honrável. Rick Schutz, um dos quatro donos do ASHI — aliás, o ‘S’ na sigla do escritório era devido a seu sobrenome Schutz —, e também um dos poucos advogados de classe sênior, era o mentor de Amanda. Sim, ela foi contratada por um dos homens mais poderosos do prédio moderno e chamativo em que pisava. Particularmente, Rick, também chamado de Sr. Schutz, prezava a pontualidade com a mesma frieza de um portador que visa somente vencer os seus inimigos. E Amanda, por si só, era estagiária assistente, novata, e sabia que cada minuto era auditável.
No ponto, viu o ônibus passar, um vulto azul que frequentemente engolia a avenida e deixava despreparados para trás. Um lampejo de pânico. Ela correu, gritando: “Segura a porta, por favor!”, com o resto de ar que lhe sobrava nos pulmões, e conseguiu se espremer entre a catraca e a multidão de rostos apáticos. Ela havia vencido o tempo. Por enquanto. O prédio do ASHI era um monumento à ascensão profissional. Vidro escuro, mármore, e a estética fria e limpa de quem não precisava de bagunça moral. Praticamente alucinógeno para um amante do modernismo tardio. Amanda atravessou o lobby com a cabeça erguida, mas o coração acelerado. Não era seu primeiro dia, mas era o dia do veredito. Ela estava ali havia trinta dias, absorvendo na teoria, toda a lógica da advocacia corporativa através do Sr. Schutz. Rick era uma figura de sucesso que exalava competência, mas cuja humanidade se dissolvia ligeiramente em cada terno de corte impecável. A reunião agendada para as nove não era sobre um caso, mas sobre a aptidão de Amanda em deixar de ser assistente para, enfim, atuar como advogada.
Rick a recebeu em sua sala ampla, com a vista panorâmica de uma São Paulo que ele controlava indiretamente. O diálogo foi direto.
— Amanda. Sente-se. — Rick caminhava a passos lentos, sem sorriso. — Seus relatórios têm sido satisfatórios. Você não cometeu erros de principiante, o que é um feito raro.
Amanda sentiu um tremor de orgulho — Obrigada, Sr. Schutz.
— A assistente Amanda terminou. A advogada Amanda começa hoje. — Ele deslizou um dossiê fino sobre a mesa de mogno. — Este é o seu primeiro caso.
Amanda pegou a pasta com as duas mãos, quase reverente. O título, em uma fonte neutra, falava “Pró Bono”. Os olhos dela brilharam, pois amava a justiça. Por outro lado, Rick percebeu o brilho, mas manteve a indiferença.
— Não se anime. Pró bono são a entropia da nossa profissão. Envolvem mais emocional do que prova material. Demoram, arrastam-se e o resultado raramente justifica o esforço. Mas, para a nossa imagem, é necessário. Vá em frente.
Amanda mal o ouviu. Ela já estava imersa na pasta. A primeira missão de sua nova carreira havia sido designada. Quando saiu da sala de seu mentor, parou no corredor, sem tirar os olhos do relatório e o lendo, com as costas encostadas na parede. Ali mesmo, buscava entender o que lia. Amanda repassava o dossiê para si mesma. A frieza da tinta tipográfica era insuficiente para conter o drama visceral ali catalogado.
O caso envolvia uma mulher chamada Alina, mãe de três filhos. Um casamento dilacerado pela traição do marido, de nome Reen, com a melhor amiga da esposa, Vittia. Semanas de simulação, enquanto a vítima reunia o que a lei exigia; provas para comprovar que o homem de sua vida a traía. O marido, alertado pelo filho mais velho — a primeira traição dentro da traição —, antecipou o ataque. As ligações interceptadas eram o áudio do declínio. Reen e Vittia avaliavam o prejuízo financeiro. Os bens eram comuns, e a separação significaria a perda total para ele. A amante sugeriu o óbito de Alina. O marido que parecia não ter mais nenhuma decência, surpreendentemente negou.
Na madrugada, Alina, munida de fotos e gravações, confrontou ele. A negação do marido escalou o tom. O berro acordou os filhos. No ápice da tensão, o marido buscou a solução final, pegando uma faca. A briga pela sobrevivência foi rápida. A força dele, superior, foi interrompida apenas pelo ato instintivo do filho de quatorze anos, o mesmo que o havia traído, investindo um soco certeiro lateral no queixo do pai. O homem cambaleou, mas não caiu e voltou a avançar. A mulher caiu depois de ser empurrada, próxima da arma. A tentativa dele de pisar na faca foi neutralizada por um chute na panturrilha que ela sem medo disparou. Num movimento ligeiro, instinto puro, ela agarrou o metal. A primeira facada, na costela, foi defensiva. E na retirada, a fúria do marido ainda o mantinha de pé. E então, a sequência veio. Furiosa, raivosa, Alina sequenciou mais quatro facadas em seu marido, Reen.
Quando a polícia chegou, o homem já se encontrava morto. Alina não foi presa, mas respondeu em aberto. A amante, também em aberto. Os três filhos, arrancados dela por decisão judicial imediata.
(…)
No começo da noite foi consumida por relatórios. Amanda lia a história de uma mulher, três filhos, traição e violência doméstica. O drama era visceral, o total oposto do ambiente estéril do escritório. Ela sentia a urgência, a dor. A lógica absoluta de Rick não se aplicava ali, não era compartilhada por ela.
Ela ligou para o pai, Hinário, que ainda estava saindo do trabalho.
— Pai, você não vai acreditar. Meu primeiro caso. É… real. — Ela informou com uma empolgação que vibrava a voz, a necessidade de compartilhar o peso e a esperança.
— Ah, olha que bom. Isso é uma boa notícia para chegar em casa, viu? E como é o caso? — com a mão esquerda, Hinário pegava e arremessava as suas ferramentas de trabalho próximo de sua mochila. Na casa em que estava operando, seu colega de trabalho estava retirando demais materiais do chão.
— Não, deixa para quando o senhor chegar aqui em casa. Não quero que demore mais aí. — Amanda sorria enquanto olhava para os relatórios soltos na sua cama.
— Ok, então. Chegarei jajá, tá bom? Vou desligar…
— Estou esperando, tchau.
Mais uma manhã veio. Ao chegar no ASHI, a secretária conduziu Amanda ao seu novo espaço — uma mesa minimalista no canto. Um pequeno domínio no grande jogo. Ela repassou as informações do caso, aprofundando-se nos detalhes da briga, do flagrante, e da reação violenta do marido.
O primeiro passo, invariavelmente, era o contato com a cliente. A casa da vítima era um contraste cruel com o prédio de Alex. Pequena, bagunçada, com o cheiro residual de estresse e tristeza. Amanda teve dificuldade em estabelecer o contato, em atravessar a barreira da desconfiança e do trauma. Sua cliente, de nome Denise, uma figura quebrada. Amanda, usando sua empatia natural e a ética que Rick desprezava, conseguiu finalmente entrar. O diálogo foi lento, cuidadoso. Ela precisava extrair a verdade por trás da emoção, catalogar os fatos, mas sem anular a dor. Ela sentia que a Lógica da lei já estava contra sua cliente; o caso era uma faca de dois gumes de legítima defesa e homicídio.
O fim da tarde chegou com o cheiro de fechamento. As luzes de seu setor começavam a apagar, e Amanda estava guardando os papéis, o dia foi corrido. A secretária, com a mesma neutralidade de sempre, interceptou-a no corredor.
— Dra. Amanda, a Sala Sênior a aguarda.
— Rick ainda está aqui? Impressionante… — Amanda murmurou.
— Não é o Dr. Schutz. É o Dr. Alex que a está chamando.
O nome pairou no ar com um peso diferente. Amanda não conhecia exatamente quem era o Dr. Alex, e o que sabia dele já poderia considerar de fato impressionante. Alex era dono majoritário do Escritório ASHI — A primeira letra ‘A’ é de seu nome —, o topo da cadeia alimentar corporativa.
O mesmo nome, a mesma pessoa, esta que Koji havia recebido de Sam, em Aurora…
Amanda subiu para a Sala Sênior, uma ala separada por uma porta de segurança. Ela bateu na porta da sala dele. E o homem que a recebeu era imponente, mas tinha a calma perigosa de quem não precisava provar nada, claramente controlador. Um loiro, curto e penteado perfeitamente para trás era seu cabelo, de terno preto e detalhes brancos. Um rosto fino, dono de um olhar e de uma presença de imposição. Ele a convidou a sentar na cadeira do outro lado de sua mesa enorme.
— Dra. Amanda, não é? — A voz era polida. — Como foi o seu primeiro caso?
O diálogo seguiu por caminhos calculados. Alex a questionava sobre o caso, sobre a eficiência e o foco. E então, a variável inesperada:
— E o Rick Schutz? Gosta dele?
Amanda hesitou por um milissegundo. — Não vejo problema. Ele é meu mentor.
Alex não tinha pressa. O tempo para ele era indiferente. Internamente, ele sentiu que a resposta de Amanda sobre Rick Schutz — “Ele é meu mentor” — havia sido insuficiente, totalmente trivial. Alex buscava a rachadura na lealdade, o primeiro sinal de descontentamento que poderia ser explorado, e ali estava apenas a coerência da recém-formada.
— Entendo… — Alex acenou, descartando o nome de Rick Schutz. — A lealdade, Dra. Amanda, é uma ferramenta útil, apesar de limitada. Eu a acho incrível. Ela deve servir a um propósito maior, não acha?
— Acho… Sim…
Ele pegou um copo de cristal sobre a mesa e girou o líquido âmbar — talvez whisky, talvez apenas chá frio — Voltemos ao seu caso. O caso da senhora Alina, que executou o marido… Particularmente, não sou muito fã de pró bono, pois bem, certamente você sabe que isso não interessa para ninguém. Exceto, claro, para os novatos e os idealizadores. Você é algo do tipo?
— Eu estou no meu primeiro caso… — Amanda respondia, mas soava levemente amedrontada, desconfiada. — E acho que idealizar não é ruim.
— Hum… Idealizar é só uma forma autoinstrucional de legitimar tudo que te vicia. São besteiras. — Ao ouvir isso, e sentir sua alma argumentativa emergir, Amanda até tentou apresentar um contraponto. — Eu não-
Interrompendo ela, Alex disse, semelhante a um puro bipolar — Como está o caso, Amanda?
— É, ah… É um, um caso complexo, Sr. Alex. Legítima defesa e homicídio qualificado estão em disputa. A questão dos filhos é o ponto nevrálgico.
Alex bebeu um gole daquele líquido. Ele inclinou-se sobre a mesa, dizendo.
— A lei não é feita para a verdade. É só feita para a persuasão. Você tem que vender a história de que o estado de fúria e o trauma da traição a transformaram em uma máquina de defesa. Não importa que foram cinco facadas. Importa que a sequência é um reflexo do stress pós-traumático, e não de uma intenção assassina planejada. O número de facadas deve ser um déficit psicológico, nunca um excesso de legítima defesa. Nunca.
Amanda absorvia a informação como uma esponja. E o conselho era brutal e, incrivelmente, cirúrgico. A manipulação da legislação estava sendo exposta para ela como regra, praticamente.
— O que você tem que atacar são os erros processuais. A primeira falha da polícia às vezes é a coleta incorreta de evidências, o desrespeito ao direito de Alina de não ser coagida a falar, muitas coisas que são padrões no início para serem percebidas e analisadas. Com o tempo, esses pontos se tornam naturais, e você terá que se aprofundar em demais levantamentos estratégicos ou mais provocativos, seja para conseguir algo, seja para desvalidar algo… A lei não exige moralidade do cliente, só exige coerência jurídica do advogado.
— Eu entendi o foco na fragilidade do processo. — Amanda disse, sentindo-se um passo mais distante daquela jovem que correu para pegar o ônibus.
— Eu não diria fragilidade porque é uma palavra que menospreza a lei. É mais oportunidade. — Alex corrigiu, balançava seu copo de whisky, seja lá de que era, de maneira despretensiosa, confortável. — Seu cliente matou, mas o promotor deve provar que ele não devia ter matado. E se o processo estiver sujo, a prova morre.
Ele se ajeitou na cadeira, cruzando as mãos com uma presunção fria — A justiça tanto é um balcão de negócios quando os grandões estão no jogo, quanto um jogo de indiferença e negligência quando os pobres coitados estão. No caso do advogado, o seu valor é medido pela sua capacidade de transformar a culpa em dúvida razoável. Já você, olha, está trabalhando em um pró bono. Está investindo tempo onde não há retorno financeiro. E parece não se importar com isso, e isso é raro. Vejo que os jovens novatos estão se tornando tubarões bem rápido. Qual a recompensa que espera?
Amanda hesitou novamente, gaguejou, desviando o olhar para o chão — Eu… Só quero fazer justiça para minha cliente.
Alex riu meio seco e baixo, sem humor nenhum.
— Ha!Ha!… Torço para que consiga se manter assim quando já estiver trabalhando no quinto caso.
De repente, o celular de Amanda vibrou em seu bolso esquerdo da calça. O toque de Fathma, sua mãe, era alto demais, estrondoso no silêncio opressor da Sala Sênior. Amanda sentiu a necessidade urgente de se desculpar pela intromissão, mas aproveitou para usá-la como um vetor de saída.
— Preciso ir, Sr. Alex. Minha mãe está ligando. Deve estar preocupada com a minha demora.
Alex assentiu, voltando a encarar a vista panorâmica da cidade — Está liberada
O Rato principal havia tentado testar a lealdade ou o descontentamento da nova advogada, e ela não havia mordido a isca. Ela não percebeu que havia sido catalogada por Alex, e que sua lealdade a Rick — um Rato menor — havia sido anotada. Ela era, naquele momento, uma peça minúscula em um jogo que nem conhecia.
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