Índice de Capítulo

    A manhã seguinte trouxe a ausência como evidência. Na mesa de Amanda, os relatórios do caso de Alina já pareciam literatura antiga. Ela revisava as transcrições das ligações de Reen, e buscava a âncora lógica que a salvara da execução do motorista no dia anterior.

    O telefone tocou. A voz, do outro lado, era protocolar e, portanto, fatal. Amanda recebeu a informação em blocos secos. Sua cliente, Alina, havia sido encontrada morta a tiros; “Alina? N… Não…”, e a Vittia, a amante e amiga, também estava lá, executada com um tiro na cabeça. A notícia não era apenas o fim do caso, mas ainda por cima o colapso instantâneo do planejamento que Amanda nem ainda havia construído. Alina, a vítima/ré, já havia sido julgada e condenada por uma força que se movia além dos tribunais. O impacto atingiu Amanda como um golpe psíquico. Seus olhos, até então gélidos e otimistas em relação ao caso, lacrimejaram enquanto também abaixava a cabeça na mesa. A barreira que ela havia levantado entre o profissional e o humano estalou. Ela não chorou, mas o espectro da lágrima era um atestado de falência. O que havia sido salvo, afinal?

    O medo deu lugar à urgência. Se a mãe havia sido eliminada, o próximo passo na preocupação presente em sua mente foi direcionado para os filhos de Alina.

    Pela tarde, Amanda corria. Não havia a elegância fria de sua saída do escritório, somente uma desesperança e o nervosismo que impulsiona o corpo. Ela chegou ao Núcleo de Intervenção e Acolhimento à Infância (NIAI), o conselho que lidava com a tutela dos órfãos. O local era um labirinto de cores pálidas e silêncio opressor. Ao encontrar a sala de encaminhamento, a cena a atingiu. Os três filhos de Alina e Renan estavam ali, encolhidos, chorando sem o som do berro, com o lamento seco da perda tripla.

    Eles estavam sendo direcionados. A decisão já estava assinada. Cada criança iria para uma família diferente, separada. A justificativa se baseava na ausência de um destino familiar cabível e estável. A Justiça Humana, em sua frieza institucional, havia decidido que a separação era a única salvação viável. Amanda explodiu. A voz, geralmente baixa, elevou-se com a indignação contida.

    — Não podem fazer isso! — Amanda repreendeu, confrontando a assistente social, uma mulher de semblante fatigado. — Separar três irmãos? Isso é mais cruel que a própria morte!

    — Dra. Amanda, este processo já estava em andamento. — A agente anunciou, com a frieza de quem lida com o burocrático. — Você não sabia? Não há parentes próximos com a estabilidade exigida. A decisão é jurídica. Não há um bom lugar para eles juntos. Como advogada, deveria prever essa possibilidade.

    Aos passos lentos para trás, recuando, Amanda olhou para as três faces de desespero mudo. O desejo de falhar que ela sentiu pela manhã se transformou em obrigação. “Não. Eu… ainda…”, com raiva, ela pensava.

    — Eu prometo. — Amanda afirmou, tremendo e encarando de cima para baixo, diretamente para as crianças. — Eu prometo que vou fazer com que vocês fiquem juntos. Em um local que conhecem.

    No momento que pisou no escritório novamente, Amanda revisava os formulários, buscava as falhas processuais, qualquer brecha na legalidade. A única esperança era encontrar um elo familiar distante que pudesse reverter a decisão. Um nome, um contato…

    (…)

    O sol já se encontrava no seu ritmo típico para sumir e dar lugar à lua, e tingia o vidro do Escritório ASHI de um laranja mórbido. Desesperada, ela invadiu a sala de Rick Schutz, seu mentor, antes de iniciar sua atuação como advogada. Todos os papéis, o dossiê da infância roubada, estavam todos apertados em suas mãos. Certamente mais seguros que qualquer banco no mundo.

    — Rick, eu preciso de uma solução. O NIAI… as crianças…

    Rick estava pegando sua pasta de couro, e se situava numa plena indiferença vestida como seu roupão profissional. Ele nem se virou. Sua arrogância era inteiramente perceptível, até mesmo no olhar de prepotência.

    — Já sei… Já sei… — Rick anunciou, parecia ser falar sobre o clima. — O caso acabou, Amanda. E, francamente, você não tem mais jurisdição. O direcionamento das crianças já estava decidido, era uma possibilidade investigada há meses.

    — Mas a separação… é um absurdo! — Amanda protestou, sua voz falhava e estava com raiva de verdade. Os olhos dela pulsavam.

    — O que é um absurdo para você é a coerência da Justiça? Bom, desista. Pegue um caso novo. — Ele guardava suas coisas em sua mochila cara de marca famosa, falava sem expressar nada além de desprezo na sua face. — Esqueça isso, foi só um pró bono inútil… Não viu? A sua cliente foi morta e a assassina se suicidou. Eu considero isso um sucesso. Pelo menos você não perdeu tanto tempo assim nessa.

    A frieza de Rick foi o gatilho. A hostilidade instintiva brevemente acumulada de Amanda explodiu.

    — Você é um monstro! — Amanda cravou, balançava a cabeça negativamente em meio ao temor que sentia, sentindo nojo e recuando. — Você nem se importa com os casos que pega! Com as vítimas que ajuda somente pelo que vai ganhar! O que é você? Consegue não ter humanidade em frente a tragédia.

    A crítica era dura, atingindo a essência do caráter de Rick. Ele então parou, levantou seu olhar para Amanda com uma lentidão e disse.

    — Eu sou um advogado de longa data. Já vi, ouvi, perdi e ganhei muitos casos, Amanda. Dos mais simples aos mais pesados… E no final, importa o lado em que eu estou, e você sabe disso? 

    Ele diminuiu o tom, mas a periculosidade aumentou — Pense bem… Um advogado atua por aquilo que lhe foi ordenado por ele mesmo ou não. Um psicopata, um maníaco, um estuprador de crianças… todos têm advogados. E nós, Amanda, somos o pilar vivo dessa justiça…

    Rick Schutz sorriu, abrindo um sorriso de predador e continuou  — Quem é mais psicopata, afinal? O maníaco ou o advogado que o liberta? Para estar aqui, em meio a advogados que são uma espécie de político não odiado, é necessário ser um psicopata, sociopata ou, minimamente, soberbo, sabia? Pois alguém que não é assim fará o que fazemos? Sem simplesmente não sentir que está cooperando com o ruim? Você não entendeu que somos todos psicopatas para exercer o poder? Até aqueles puros, sonham por influência ou não, em serem infectados pelo raciocínio e a vontade de submeter algo ou alguém a ele. Não sabia?

    — Seu idiota desumano. Não pode concluir algo assim dessa maneira. Não é simplesmente assim. 

    — Será?

    Sentindo-se afrontada, segurando os seus papéis do caso Alina, Amanda se virou e saiu da sala.

    (…)

    Em casa, na escuridão da madrugada, Amanda estava acordada. Sua mente se rejeitava a ceder para o sono. A luz fluorescente da beira de sua cama era a única iluminação, um foco cru no ambiente noturno. Deitada de barriga para cima, olhando para o teto pouco iluminado, ela pensava: “Como aquele babaca consegue falar aquelas coisas…”

    Na manhã seguinte, a rotina no escritório tentava reestabelecer o controle. Ela lia relatórios de novos casos, mas seu olhar voltava para o canto da mesa. Ali estava o nome: Vittia. O relatório escasso, obtido na tarde anterior ao acidente, falava da irmã distante de Alina. Amanda sabia o que precisava fazer. No carro do pai Hilário, e com a mãe Fathma no carona, a família se movia para o interior do estado paulista, especificamente para a cidade de Cabreúva, e ao chegar lá, após algumas horas, se movimentaram em direção a uma bela chácara. A viagem foi longa, mas a paisagem era o oposto do cinza de São Paulo — calma, verde, expansiva.

    A chácara era um refúgio simples, um pouco distante do centro da pequena cidade, mas acolhedor ao redor de inúmeras árvores e na frente de um lago. A porta foi aberta pela irmã distante, de nome Hana.

    — Oi, bom dia… Eu sou Amanda, advogada de sua irmã Alina. Estes são meus pais.

    — Alina?…

    A conversa se desenrolou na varanda dos fundos, de frente para um lago bonito e sereno. Dois filhos da irmã corriam pela grama, alheios à tragédia. Amanda não usou a frieza da lei. 

    — Sua irmã foi morta. O marido e a amante também. É um caso… brutal. — Amanda articulou, mantendo o tom factual.

    O marido da irmã se aproximou, um homem grande, de olhar sincero. — Soubemos. É uma coisa horrível.

    — Os três filhos. Eles estão em uma situação… dramática. — Amanda continuou, expondo os fatos. — O sistema judicial decidiu separá-los. Cada um deles estão em uma família diferente. A alegação é que não há laços familiares estáveis para mantê-los juntos.

    A irmã ergueu o olhar, claramente chocada e desinformada disso  — Separados? Não soubemos disso.

    — Sim. E a decisão é quase irreversível, a não ser que surja um parente de primeiro grau que possa garantir a estabilidade. A justiça falhou ou somente não quis procurar por vocês. O NIAI opera nas pressas. Mas ainda podemos mudar isso.

    A irmã e o marido se entreolharam. O silêncio foi preenchido pelo som dos seus próprios filhos brincando — É uma vida. Três vidas novas. — O marido ponderou, com a mão no ombro da esposa.

    — Vocês precisam deles. Digo… Eles precisam de vocês. É a única forma de garantir que a alma dessas crianças não seja quebrada para sempre.

    A decisão veio com a certeza silenciosa da moralidade.

    — Faremos isso. — Hana sorriu enquanto seus olhos mergulhavam-se em lágrimas. — Iremos nos apresentar para a guarda definitiva… Nós iremos cuidar deles. Não vamos deixar que separem os filhos de minha querida irmã…

    Amanda sentiu um alívio pesado, um suspiro forte foi solto pela sua boca junto do baixar de cabeça entre os braços cruzados. Era uma vitória.

    (…)

    Na manhã seguinte, Amanda chegou ao Escritório ASHI. Com um sorriso espontâneo e alegre no rosto, ela foi recebida por aplausos e assobios vindo dos colegas e da secretária. Ela havia revirado o caso. Ela sentou-se com a satisfação contida. Foi então que a voz de deboche quebrou a calmaria.

    — Então a choradeira resolveu o caso? — Rick Schutz apareceu, bebendo um copo d’água e maldosamente sorrindo.

    Amanda se levantou. Ela não sorriu para Rick, o encarando, mas passou dele, ignorando o mentor, em direção à Sala Sênior. Até a região senior chegou, e bateu na sala de Alex. Quando abriu a porta, lá estava ele bebendo café, olhando para a vista da cidade como o dono do mundo em seu domínio.

    — Eu desgosto do Rick. — Amanda declarou, séria, na entrada da sala, ainda segurando a porta.

    Alex parou o copo na boca. O sorriso dele, dessa vez, atingiu os olhos. Era uma satisfação predadora. A peça havia escolhido o lado certo de uma brincadeira desconhecida.

    — Até que não demorou como eu imaginei, Dra. Amanda.

    Pela tarde, Amanda saiu do prédio para lanchar, sempre com o celular na mão. A calma, enfim, parecia ter retornado ao seu eixo quando seu celular vibrou. E bom, recebeu uma notificação anormal de anexo de imagem no seu e-mail.

    Ela abriu. A imagem era a ruptura final…

    A foto mostrava Rick Schutz morto. O rosto, a cabeça, o pescoço… brutalmente atingidos por múltiplos tiros. O local na imagem era escuro e deslocalizado, cheio de sangue. Não havia como negar. Amanda congelou. O celular quase caiu de suas mãos. Ela estava atônita, e seu corpo tremia em uma reação física ao terror. “Quem… O quê?”

    Ela correu. Uma correria desesperada que assustou os colegas que a via no escritório. Sem bater, ela invadiu a sala de Alex, extremamente ofegante, tremendo e desacreditada, suando muito.

    — O que é isso?! Que loucura é essa? O que você fez? — Amanda vociferou, mostrando a tela do celular e tocando com força na imagem com o indicador esquerdo.

    Alex olhou. Ele não demonstrou surpresa. Apenas a calma analítica de quem já esperava a notícia.

    — Ué, não achou legal? — Alex zombou na posse de um sorriso bem aberto e um tom de voz perverso. — É uma forma de responder àqueles que você desgosta.

    Amanda deu passos para trás, balançando a cabeça. Rick a havia chamado de psicopata, mas não se comparava. Alex a havia transformado em uma mandante de execução. Entretanto…

    De repente, ela levantou o olhar.

    Algo estava se aproximando da janela infinita de vidro, pelo lado de fora do prédio, na velocidade de um projétil. Uma sombra pesada e escura se materializava no ar.

    — Meu Deus! O que é isso? — Ela pouco reagiu fisicamente, paralisada e gritando.

    — Que porra é essa… — Alex resmungou, virando-se para o ataque que se aproximava. — Sai! Sai! 

    Logo, Alex correu para a porta, e a Amanda estava lá, mas totalmente parada sem reação, encarando o que vinha. Então, sem pensar duas vezes, Alex se jogou em cima dela, levando os dois para o chão, debaixo da porta entre a sala e o corredor, quando finalmente…

    BOOOMMM!

    O impacto foi ensurdecedor. O vidro inteiro se partiu em milhões de fragmentos e o concreto estilhaçou. O prédio inteiro balançou, um tremor que atingiu a rua e os prédios vizinhos. Não era um míssil. Não era uma bomba comum…

    Mas sim alguém conhecido…

    Era Koji. 

    A vingança havia chegado.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota