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    Numa unidade municipal de defesa da Torre, um bastião de concreto e ordem fria no coração de São Paulo, Amanda estava isolada. A sala, tipicamente cinzenta e espartana de interrogatório, não tinha a pretensão de ser invasiva, mas de esgotar a alma pela inação. Sentada, ela aguardava, o corpo ainda sentia o choque residual da parede e o peso da violência testemunhada. 

    A porta rangeu com uma autoridade calculada. Eram os agentes da Torre, Nahome e Tovah, ambos já conhecidos dela. Nahome, o mais velho e experiente, entrou. Sua voz era grave e ligeiramente arrastada, sempre com sua casualidade. Colocou o cigarro, ainda apagado, no bolso do terno.

    — As coisas não foram legais, não é? — Nahome comentou, diante da palidez de Amanda.

    Ao ver os dois, Amanda levantou o olhar. Não havia mais a histeria do pânico, somente a esperança desesperada de quem buscava uma âncora na autoridade legal.

    — Eu preciso que vocês saibam… tudo. Eu ouvi. Ouvi toda a conversa.

    Tovah, o mais jovem e de semblante vigilante, manteve a distância. Apenas inclinou o rosto — E o que ouviu? 

    Amanda respirava fundo para controlar o impulso histérico, e detalhou o ocorrido com uma precisão forense. A forma como os dois portadores, Koji e Sam, queriam nomes de pessoas importantes — tecnocratas — que tiveram ligação com um homem chamado Norman Fuller.

    — Alex tinha uma ligação. Ele cedeu. Ele disse um nome. — Amanda pressionou, batendo a mão, ainda trêmula, na mesa.

    — Qual era o nome? — Nahome sentou na cadeira de interrogador, frente a ela.

    — Hanat. Um egípcio. Ele mora aqui em São Paulo, no centro.

    A menção ao nome Norman Fuller fez Tovah se mover. Era o nome de alguém famoso, entre todos aqueles que viviam entre o mundo dos humanos e dos portadores, inclusive a Torre. Tovah se aproximou de Nahome e, num sussurro urgente, disse-lhe algo ao ouvido, uma confidência grave que quebrou a formalidade da sala: “Norman Fuller é nome exato do pai falecido do Koji.” 

    Nahome bocejou de leve, um disfarce de tédio que escondia uma análise apressada. Ele levantou da cadeira e deu passos em direção à porta.

    — Amanda, eu preciso averiguar uma coisa, ok… 

    Amanda saltou da cadeira com uma velocidade inesperada. A busca por respostas era agora a sua droga.

    — Mas e o Alex? Vocês me disseram que iriam buscar saber mais coisa dele, e então? — Amanda encarava Nahome com um olhar energético e nervoso. — Foi ele que fez aquele motorista me atacar? Ele era um portador ou humano?

    Tovah se colocou à frente de Amanda, num limite de proximidade.

    — Não sabemos exatamente ainda. Se ele era Portador ou não, e se foi ele quem fez aquele motorista te atacar… Iremos saber mais nos próximos dias.

    — Ele mandou matar Rick Schulz! — Amanda gritou, enquanto batia na mesa e continuou. — Ele mandou matar o meu mentor no escritório e me fez cúmplice. Ele estava sorrindo como um psicopata antes dos portadores chegarem atacando o prédio.

    — Quem era Rick Schulz? E como assim te fez cúmplice? — Nahome voltou para dentro da sala, levemente curioso.

    — Rick era um dos advogados seniores da ASHI e também acionista. Uma vez Alex me perguntou se eu desgostava do Rick, e respondi que não apesar de algumas raivas… Mas ontem, eu estava com muita raiva do Rick e fui até Alex, e disse que desgostava dele. — Amanda confessou, seus olhos estavam marejados. — E nessa manhã de hoje, recebi pelo e-mail uma foto de Rick morto a tiros.

    — E Alex confirmou que foi ele? 

    — Sim. Eu fui até ele desesperada, e ele sorrindo, disse: ‘Mas é isso que fazemos contra aqueles que desgostamos.’… Ele disse isso para mim.

    — Que maluquice… — Tovah murmurou para si mesmo, de cabeça baixa e escorado na parede próximo da porta.

    Nahome, então, voltou para junto da mesa. Amanda, exaurida, sentou-se novamente. Com as mãos sobre a mesa, Nahome a encarou com uma gravidade forçada.

    — Ainda não sabemos se Alex era um portador, se ele foi o mandante do ataque a você, e agora nem por que ele foi morto pelos dois portadores que atacaram a ASHI. Mas agiremos o mais rápido possível para tudo isso, ok? 

    — Mas o que vocês vão fazer quando saberem disso tudo? Alex já está morto…

    — Mataram Alex por um motivo, e os portadores que atacaram estão atrás de outras pessoas, outros nomes, como você nos disse. Se soubermos sobre Alex ou sobre os dois que mataram Alex, chegaremos em algum canto. 

    Amanda assentiu, balançou a cabeça. As lágrimas, antes contidas, desceram lentamente por suas bochechas. Ela estava atônita e com o olhar perdido nas tremedeiras de suas mãos.

    Nahome e Tovah saíram da sala, deixando-a com o peso da informação e a solidão do medo.

    Ao saírem de vez da unidade de defesa da Torre, pisando na calçada sob o sol claro e as nuvens brancas, o ar da rua era um contraste violento com a atmosfera sufocante da sala.

    — Ela disse que Norman Fuller foi abordado na conversa… — Nahome tirou o cigarro do bolso e, com ele na boca, acendeu-o com um isqueiro. — A chance de Koji ser um dos dois portadores que mataram Alex não é pequena.

    — Se ele é um dos dois, quem é o outro portador?

    — Não sei. Saik está em fase final de recuperação no hospital, e Tahiko está estável em relação a comportamento. — Nahome disse, pensando ao soltar a fumaça.

    — E o que vamos fazer? Notificar a comandante Ava? — Tovah sugeriu, enquanto averiguava sua carteira, atrás de dinheiro. — Não tenho grana nem para um picolé…

    — Vamos manter isso entre nós. Ava está de férias nesse momento. É melhor cuidarmos disso sozinhos e de forma eficiente. — Nahome jogou a bituca para o lado e atravessou a rua.

    — Você que manda… — Tovah o seguiu, guardando sua carteira e, posteriormente, com as mãos no bolso.

    (…)

    O sol, enfim, caiu. Deu lugar à lua, que brilhava incessantemente sobre a maior metrópole paulista. Entre o clima sombrio e o clima energético vivo nas ruas, a Avenida Paulista fervilhava. Centenas de jovens, adultos e casais caminhavam sob as luzes megalomaníacas dos grandes edifícios e dos inúmeros carros que a cortavam.

    No meio desse fluxo, encontravam-se Koji e Sam.

    O vestimento de Koji era simples, despretensioso. Cores claras e sem graça, feito para não chamar a atenção, mas paradoxalmente, pela sua simplicidade, tornava-se não-atrativo de uma forma morta. Sam, ao seu lado, vestia preto, mas de maneira simplista também, um contraste visual que se harmonizava na indiferença das cores. Basicamente, camisas e calções.

    Os dois caminhavam juntos, lado a lado, uma unidade de propósito em meio ao caos urbano. Finalmente, chegaram onde queriam; na Praça Oswaldo Cruz. 

    Sam parou, olhando para os apartamentos do outro lado da avenida e disse — É no prédio da direita em que mora o Hanat.

    — No mesmo estilo de antes? — Koji indagou, com a mão direita fazendo o gesto de movimentação de algo atingindo um alvo, referindo-se ao ataque a Alex, no alto prédio do escritório ASHI.

    — Foi eficiente… — Sam posicionou-se, colocando os pés em posição de impulso ofensivo.

    — Então bora. 

    O que se seguiu foi a ruptura da física para os humanos que por ali passavam.

    Koji e Sam, portadores, impulsionaram-se absurdamente da Praça Oswaldo Cruz, e em um instante, atravessaram a avenida. A distância era insana. Cortaram o céu como dois mísseis, chocando e aterrorizando as pessoas que andavam pela Paulista e ruas adjacentes. Os carros freavam, as motos derrapavam.

    Os dois atingiram o prédio de Hanat como um duplo projétil, destruindo a lateral da estrutura com o impacto e adentrando no edifício. O som foi um estrondo imoral, fazendo o prédio balançar com uma força que apenas a chegada de portadores poderia causar.

    Lá dentro, o que se ouvia era a cascata do pânico. Gritos de desespero de moradores de inúmeros andares, berros e o som de pisadas apressadas nos corredores.

    — Acho que erramos o andar. — Koji olhou para o ambiente atingido que não tinha ninguém.

    — Vamos subir mais. — Sam já pisava no corredor.

    Koji também saiu. E nos corredores, o caos era total. Moradores corriam em histeria na direção deles, desesperados para sair do prédio.

    — Eles estão tão desesperados que não desconfiaram de nós. — Sam comentou baixo, com a mão na frente da boca para abafar a voz.

    — Eu entendo eles. Eu também não olharia nem por onde eu estaria pisando. — Koji respondeu também com a mão na boca, baixinho.

    A cena era quase cômica, com os dois portadores, responsáveis por aquilo, sussurrando comentários cínicos enquanto centenas de civis passavam por eles em fuga. Quando o fluxo de pessoas diminuiu, permitindo que os dois caminhassem com mais espaço, eles viram um homem.

    Ele vestia um pijama tipicamente árabe, ou melhor, do Egito. Um conjunto de linho ou algodão leve em tons de dourado, bege e azul-turquesa, solto como uma túnica e bordado com símbolos como o Olho de Hórus e o Ankh. 

    O estereótipo havia se provado um guia prático. Era Hanat, o alvo.

    Koji e Sam se aproximaram de Hanat. O egípcio, ao vê-los, tentou se mover, junto da pressa e o medo  que se denunciava em seus olhos, além da oculta culpa.

    — Não vai a lugar nenhum. — Sam o parou, colocando-se a frente do egipcio.

    Hanat ficou nervoso e investiu um soco direito na altura do queixo de Sam. Contudo, a reação do portador foi mais rápida que a dele. Sam o derrubou no chão, neutralizando-o com a mão no pescoço, pressionando-o contra o piso coberto de poeira e detritos.

    — Você é Hanat? — Koji interrogou, agachando-se, na posse de um olhar sério e raivoso.

    — Sim… Sou eu… Por favor, eu não sei o que está havendo! 

    — Conhece Norman Fuller? — Koji lançou a primeira pergunta, direta e fatal.

    Hanat vacilou — Eu… eu não sei de quem você está falando!

    Sam apertou o pescoço de Hanat, não o suficiente para sufocar, somente na medida para sugerir a dor.

    — Não minta. 

    — Sim! Sim! Eu o conhecia! De negócios… Distantes! 

    — Sabe sobre os tecnocratas empresários próximos de Norman? Aqueles que o conheciam a fundo? — Koji perguntou.

    — Eu… eu não sei! Juro que não sei! — Hanat negou.

    Sam torceu o braço de Hanat, um movimento calculado que gerou um grito abafado.

    — Você vai falar a verdade. — Koji afirmou.

    — Eu os conheço… De longe. Eles são poderosos. Mas eu não sei os nomes! — Hanat ciciou, a dor o forçando.

    — Qual o número exato de tecnocratas que chantageavam Norman Fuller? — Koji insistiu.

    — Uns quatro. Talvez cinco homens… Todos muito… altos. — Hanat revelou.

    Sam, agora, tomou a frente da tortura intelectual — Onde estão os documentos que Norman Fuller tinha sobre os Oxford’s e sobre os rituais não-humanos? 

    — Isso é muito além do que eu poderia saber sobre Norman! Eu não faço ideia! Ele era muito recluso. Eu era só um intermediário! — Hanat contestou, o corpo tremendo.

    — Os tecnocratas são portadores ou humanos? — Koji perguntou, a resposta crucial para o seu planejamento.

    — Eu não sei direito… Mas eles possuem artifícios não-humanos e podem usar deles para o que querem fazer… Eles não são normais! — Hanat admitiu.

    — Diga o nome desses tecnocratas. — Koji demandou, estabelecendo o critério de sobrevivência. — Fale, e você sai vivo.

    Hanat hesitou — Eu não necessariamente tinha envolvimento direto com esses poderosos. Eles estão num nível maior… Não passam infos e detalhes para quem está abaixo…

    Sam insistiu na dor, gerando um lamento sufocado.

    — Eu só sei um nome… — Hanat ofegou. — Só um…

    — Qual? — Koji pressionou.

    — Alex!

    Koji e Sam estranharam. 

    — Alex está morto. — Koji replicou, o cenho franzido. — Foi justamente ele que disse para virmos atrás de você.

    Hanat, então, começou a se debater loucamente. Seu corpo inchava, e ele espumava sangue pela boca. Sam, percebendo a anomalia, saltou de cima de Hanat. Koji recuou.

    — O que está acontecendo com ele, Sam? — Koji interrogou, a surpresa visível.

    — Acho que perdemos ele… — Sam constatou, a voz tensa.

    Hanat inchou e espumou mais sangue, tossindo e cuspindo fortemente o líquido escuro no teto do corredor.

    — Vem mais para trás. Isso vai explodir. — Sam avisou.

    Os dois recuaram mais. Em questão de segundos, Hanat explodiu.

    O estrondo úmido foi seguido por uma cascata de gore. Uma quantidade imoral de sangue eclodiu por todo o canto do corredor, sujando as paredes, o teto e os detritos. Koji e Sam, por estarem a uma boa distância, foram atingidos de relance e pouco em partes do corpo.

    — Ele inchou e explodiu sozinho… desse jeito? — Koji questionou, a voz perturbada.

    — Não, Koji… — Sam anunciou, encarando a cena com gravidade.

    — O que foi? — Koji demandou.

    — Colocaram um rito sobre ele… Ele começou a inchar depois de falar do Alex. — Sam revelou, a implicação da morte sendo um mecanismo de defesa.

    — E o que significa exatamente? — Koji perguntou.

    Sam pensou, encarando o monte de sangue por todos os cantos. Então, lentamente, virou-se para o resto do longo corredor do prédio. E, ao levantar o olhar para o teto, Sam se deparou com algo assustador.

    Cerca de quatro homens desconhecidos para Koji e Sam. Vestimentas e rostos diferentes, pessoas diferentes, mas todos com seus corpos extremamente decapitados e desmembrados. Havia muito sangue pingando deles no chão do corredor.

    E, mais brutal: os quatro homens estavam queimados, carbonizados, e com seus olhos caídos para fora, balançando levemente com o vento. Um aviso ou uma execução que acabara de ocorrer.

    — Esses caras… — Koji observava com nojo, careta, sem querer se aproximar. — Quem são?…

    E Sam respondeu, sem se virar para Koji, ainda de perto, com seu olhar sério penetrado nos corpos.

    — Se isso fosse uma aposta… Eu diria que esses quatro homens são… Justamente os tecnocratas que estamos procurando…

    Mais um Rato Menor havia sido caçado, mas no fundo quem saiu perdendo foi Koji e Sam. Pois alguém estava à frente deles…

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