Índice de Capítulo

    Era noite. E andando pela sua casa que florescia sob pouca iluminação, especificamente na cor azul-bebê, o experiente agente da Torre, Nahome, caminhava. Vestia um calção de casa e estava sem camisa, saindo da cozinha para a sacada de seu apartamento no oeste de São Paulo. Sentou-se na cadeira de varanda. Na mesinha à frente, via-se inúmeros papéis. Enquanto tomava um vinho, começou a conversar consigo mesmo, articulando os nós do mistério que lia.

    Nahome levantou a taça, girou o líquido rubro e sorveu um gole longo com os olhos fixos na cidade acesa, mas a mente presa nos relatórios.

    — Alex… Hanat… Rick Schulz… Os Ratos Menores, os intermediários que ligam a ASHI e a perversão de Norman. E então os quatro tecnocratas… 

    Ele pousou a taça e pegou uma folha timbrada, onde se lia a lista de investigados da Torre; Hanford St. Claire, o magnata de uma fintech de Nova York; Khalid Al-Mansoori, o sheik que lavava seu dinheiro pelo Golfo; Janaína Lopes, a embaixatriz com acesso a informações privilegiadas de quase todos os governos; e, por fim, Guilherme Fontes, o político que traficava a influência deles na Câmara.

    — Quatro nomes de alta classe… Quatro Ratos Maiores. — Nahome riscava os quatro nomes com uma caneta preta. — Todos mortos. Decapitados, desmembrados e carbonizados. Um espetáculo de punição que não pertence nem à Torre, nem a portadores novatos como Koji. É pessoal. É ritualístico. Mas por que Hanat, um simples peixe, teve um Rito de Sacrifício que explodiu seu corpo? Para silenciar o nome de Alex. E os outros quatro foram silenciados de forma mais… apoteótica. Alguém limpou o rastro. Alguém agiu rápido.

    Nahome puxou o cigarro e acendeu-o. A fumaça subiu em espiral e escondeu a frustração — Koji certamente busca vingança. Encontrou um mistério maior, e agora eu… Eu tenho que saber quem tem poder para cortar um prédio ao meio e, de repente, questionar a possibilidade de ter que eliminar um portador aliado…

    E como já era esperado, a porta do apartamento de Nahome abriu. Ele se inclinou para olhar e viu Tovah. Como sempre, um agente despretensioso. O cabelo descabelado. Tovah marchou até a varanda comendo um churro.

    — Como vai a leitura, Nahome? — apesar da voz abafada pela massa doce, Tovah estava curioso.

    Nahome tragou o cigarro — Boa. Os nomes se confirmam: Alex, Hanat, Rick Schulz, e os quatro Ratos Maiores. O xadrez está ficando mais sangrento.

    Tovah permaneceu calado por uns minutos. Só comia o churro e olhava para a vista da sacada, enquanto Nahome continuava a leitura. O silêncio deles era a paz tensa de dois agentes no fim de um dia de trabalho. Em um momento, Tovah viu que a foto de Koji estava entre as fotos dos Ratos Menores e Maiores. A foto era de Koji, quando criança ao lado de seu pai, Norman Fuller, que estava mais jovem e com o cabelo molhado no gel penteado para trás, com as três mechas caídas na testa.

    — Por que a foto do Koji está aí? — Tovah apontou com o churro.

    — Só estou averiguando alguns pontos.

    — Você realmente acha que Koji está envolvido nas mortes de Alex, Hanat e dos tecnocratas? — O churro parou no meio do caminho até a boca.

    — Não de maneira culposa. — Nahome refletiu, soltou o ar com fumaça. — Koji não matou ninguém desses. Mas está sim envolvido nos casos das mortes de alguma forma. A vingança dele atraiu o assassino. Ele abriu a porta. Talvez, é claro… Estou apenas palpitando.

    — Você já recebeu as informações de quem é o segundo portador que está ajudando Koji? 

    Nahome pegou um dos papéis e entregou a Tovah — Lê isso.

    Tovah pegou o papel. Começou a ler…

    O nome do portador colega de Koji, cujo estava agindo com ele, era Sam. Um ex-agente da Alliance que cuidou de Koji quando tinha entre 10 e 15 anos, após o suicídio de Norman Fuller. Abandonou Koji quando ele tinha 15 anos, e Sam também era… um portador de Segunda Classe.

    Um portador de Segunda Classe…

    Ao ler esse final, Tovah finalmente mostrou mais vividez do que seu olhar despretensioso. Os olhos arregalaram-se ligeiramente.

    — Segunda classe, Nahome? Esse Sam é de Segunda Classe?

    Nahome confirmou, deu um trago mais longo no cigarro. 

    — Sim. Não sei a técnica de poder dele. Mas sim. E, além disso, ele foi um agente-portador da Alliance por alguns poucos anos após abandonar Koji.

    — Alliance… 

    Alliance e Torre. Dois lados da mesma moeda, historicamente inimigas, e nenhum pouco amigáveis. 

    — Você não acha que esse Sam está usando Koji? Koji está cego com a raiva, busca aqueles que abusaram moralmente e psicologicamente do pai, Norman Fuller, e sexualmente e psicologicamente da mãe, Jenna Fuller. Sam pode estar aproveitando essa cegueira para algo dele. — Tovah apertou o papel na mão.

    — Não descarto. Sam é experiente. E Koji é jovem e feroz. Uma combinação perigosa para quem o manipula. Mas é bom lembrar que eles não parecem se odiar. Talvez os dois tenham realmente afinidade… — Nahome apagou o cigarro no cinzeiro. — Agora, a questão é: o que a Alliance ganha com a morte desses tecnocratas? Ou se é Sam, agindo sozinho, movido por uma lealdade atrasada a Norman? Seja lá o que for, qual seria o ganho, se não somente arriscado demais?

    — Se Sam está nisso, Koji está em águas mais profundas do que pensamos. Não é só vingança pessoal. É uma guerra de intenções. 

    — E Koji está no centro da tempestade. Amanhã, a primeira coisa que faço é tentar trazer Koji para cá. Convidá-lo a esclarecer os fatos. Se ele cooperar, teremos uma vantagem. Se resistir, teremos o problema de ter um portador de Segunda Classe como alvo, além do próprio Koji…

    (…)

    Na manhã do dia seguinte, em frente à unidade municipal da Torre, no centro de São Paulo, uma visita nova chegou.

    Era Koji. De calça preta mais frouxa e casaco e capuz vermelho, ele saiu da chuvinha que começava a cair sobre a cidade. A cabeça baixa, ele empurrou as duas portas da unidade, deparou-se com a recepção lotada de policiais e demais tipos de oficiais da Torre, andando para lá e para cá com papéis e falando entre vários assuntos que certamente eram urgentes.

    A entrada de Koji foi instantânea. Todos olharam para ele. Koji mantinha-se de cabeça baixa. Algumas poucas e não volumosas gotas d’ água caíam de seu capuz e blusão direto no chão cinza claro da unidade.

    Um oficial da Torre deu um passo para a frente — Olá, quem é você? 

    Lentamente, Koji levantou a cabeça. Encarou a todos na posse de um olhar sério. A reação? Todos se surpreenderam, mas aliviados. Conheciam Koji de rosto e de longe, pois ele era um portador aliado da Torre, com contato cooperacional contra a Fundação, assim como os seus outros amigos portadores, Saik e Tahiko.

    Vindos lá de trás da unidade, Nahome e Tovah se aproximaram, abrindo caminho entre os vários policiais, até chegar em Koji.

    — Eu estava te esperando, Koji. — Nahome sorria, e seus braços se encontravam levemente abertos.

    Porém, Koji o fitou — Eu precisava falar com vocês. Sobre Alex, Hanat e os Ratos…

    — Sabíamos. As paredes têm ouvidos, principalmente aqui em São Paulo. — Tovah se aproximou com as mãos no bolso da calça.

    — Sei que vocês têm dúvidas. E eu tenho mais dúvidas. O que está havendo vai além da minha vingança.

    Nahome assentiu, gesticulando para Koji se aproximar mais dele — Quem que não tem dúvidas nessa vida, não? Bem Koji, Convidamos você para uma conversa particular. Temos muitos pontos em comum para resolver. O ataque no Ipiranga e a morte dos tecnocratas são pontos que buscamos respostas.

    — Eu aceito… 

    — Ótimo. Vamos. — Nahome fez um gesto com a mão para a parte interna da unidade.

    Koji, Nahome e Tovah, enfim juntos, caminhavam para a mesma direção, o interior da unidade municipal da Torre, para conversarem em particular.

    Mas do nada, quando os três, enfim juntos, caminhavam, um estrondo imensurável ganhou o susto e a atenção de todos de toda região central de São Paulo, inclusive obviamente de Koji, Nahome e Tovah. Os três se assustaram e viraram-se ligeiramente para a direção em que parecia vir o estrondo — na direção da saída da unidade.

    Koji foi o primeiro a dar um passo para a frente, na direção de onde veio o barulho enorme. Mas de repente, toda a parte de entrada da unidade municipal da Torre começou a ser incinerada de uma forma tão suave. Não havia barulho algum, mas um fogo vermelho-claro derretia tudo em poucos segundos.

    Todos os policiais e oficiais recuaram incessantemente, literalmente fugindo para os fundos totais da unidade. Nessa ordem, Koji estava à frente, Nahome um pouco ao lado esquerdo de Koji, e Tovah mais atrás. Os três encaravam aquilo.

    — O que é isso, Koji? — Tovah olhava, levemente confuso e atento, para as paredes em derretimento.

    — É um portador… Só pode ser… — A raiva no rosto de Koji misturava-se à surpresa.

    — Olhem aquilo… — Os olhos de Nahome estreitaram-se na luz rubra.

    E então, entre o derretimento do chão, porta, entrada e teto da unidade, que consequentemente começava a ceder o resto de toda a estrutura, fazendo os três olharem para cima e para os demais lados, uma mão enfim estava visível entre o fogo. Posteriormente, o braço… um braço direito… E gradativamente, o responsável por isso, entrava na unidade. 

    Deu o passo direito e, enfim, o esquerdo, para então, finalmente revelar quem era…

    Era Deny!

    O mesmo homem que cortou o prédio ao meio no bairro Ipiranga e, posteriormente, explodiu por completo. Deny vestia uma calça folgada e uma camisa lisa em cinza, sem um colete protetor. A grande mochila de formato de guitarra estava nas suas costas. Um piercing na sobrancelha direita brilhava na luz do fogo.

    — Me desculpem por isso, mas eu precisava ser direto. — Deny mastigava um chiclete. A mão direita dele estava aberta para cima, palma aberta, e, consequentemente, o calor na unidade aumentava mais. 

    Decorria, então, de aumentar a velocidade da incineração total da estrutura.

    — Quem é você? — Nahome deu um passo protetor à frente de Koji.

    Deny sorriu em um movimento claro de frieza e desinteresse — Nomes são irrelevantes agora. E sobre o ataque… Eu precisava garantir que vocês ouvissem o que eu diria. E também, que eu conseguisse ter todos vocês na minha mira.

    — Você!… Certeza que foi você matou os tecnocratas! E Hanat! Usou o Rito de Sacrifício para explodir o egípcio! — Koji acusou, na sensação impulsiva de seu olhar e comportamento raivoso.

    Deny negou com a cabeça numa expressão inalterada — Você então é quem palpita demais. E que também erra demais?… Particularmente, estou apenas terminando de limpar inutilidades. 

    E continuou.

    — E nesse momento… Vocês três são as inutilidades que eu preciso limpar.

    O tabuleiro nesse jogo dos ratos estava se estreitando. A guerra silenciosa ganhava um novo e brutal combatente…

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