A Fundação, ao contrário da Torre que Hideki ainda não conhecia, valorizava a capacidade de realizar o absurdo com perfeição. Isso apelou à lógica não-utilitária de Hideki; se a ação não tinha finalidade, ela era a sua própria justificativa. Ele foi levado diretamente a Zarek. O portador de fama mundial, de primeira classe e do título de um dos mais poderosos e procurados portadores do mundo, era um dos cabeças da Fundação, e não estava em um escritório. Ele estava em uma sala envidraçada que dava para uma simulação complexa de colapso de mercado, era um mapa de números caindo em vertigem.

    Com o seu característico sorriso largo e teatral que Hideki acabava de conhecer, Zarek virou-se — Ah, o jovem que despreza o pragmatismo! Seja bem-vindo, Hidekizinho! O seu irmão Tramen me falou da sua matemática. Você é bom nisso, mas o seu pai é um tolo por reduzir a razão a uma calculadora de lucros. Ele é um homem lógico e serviçal.

    Hideki não sorriu, somente ouviu. E Zarek não o tratava como um recruta, estava mais para um produto valioso e que poderia valorizar mais.

    — A Fundação se move pelo Absoluto. Eu não sou chefe, somente sou quem primeiro recebe as informaçõeszinhas que os demais devem receber. O nosso objetivo não é perceptível no momento… Bom, Hmm… — Zarek se aproximou muito de Hideki, encostou sua mão direita no ombro esquerdo do jovem portador, e sorrindo contidamente, falou. — Mas se você acredita tanto no que pensa, só quero que aja em prol de todos nós da Fundação. Em troca, terá muito. Em especial… Me terá como aliado. 

    E continuou.

    — Eu vejo em você o que eu não vejo em Tramen. O seu irmão é ambicioso, logo é previsível. Você não busca o ganho, só a perfeição do ato, não é? Caso escolha ser o novo portador da Fundação, será chamado de Executor…

    Zarek estava instigando e alimentando o racionalismo não-pragmático de Hideki com doses contraditórias, mas imperceptíveis, de ambição, orgulho e poder. A ideia de que a execução fria era a forma mais honesta de existência. Ele estava transformando a rebeldia filosófica de Hideki em uma arma letal.

    — Você será o meu preferido, Hideki. — Zarek concluiu, com o sorriso de quem havia encontrado o brinquedo perfeito.

    Convencido de que estava usando a Fundação para exercitar sua filosofia da execução pura, Hideki aceitou — Está bem. Eu aceito entrar na Fundação.

    Uma semana após sua integração formal na Fundação, Hideki estava em uma das vastas Salas de Teste de Velocidade da sede, um ambiente que replicava com precisão a densidade e o caos de uma floresta tropical. O objetivo era desviar-se dos ataques artificiais disparados por dispositivos ocultos e inteligentemente dispostos. Ele estava no clímax do exercício. Com movimentos que eliminavam qualquer ineficiência, ele saltou, atingindo uma alta árvore simulada. Ele se agarrou ao galho esquerdo, subindo o corpo ligeiramente para desviar de um disparo de energia que facilmente acertaria um humano qualquer. O galho, estrategicamente projetado para ser uma armadilha, rompeu-se. E caindo junto com o pedaço de madeira falsa, Hideki reagiu com a precisão de um sistema em autodefesa. No ar, ele pegou o galho rompido com a mão direita e, no movimento da queda, cravou o galho falso fortemente na árvore com uma força que furou a madeira e o manteve no alto. Naquele instante, ataques simultâneos surgiram da direita e da esquerda. Ele usou o galho cravado como apoio e se auto empurrou do alto da árvore, caindo de costas para o solo de maneira calculada e perfeita. Ele aterrissou em uma pose planada, joelhos posicionados e mãos ajudando na coesão do posicionamento. O alarme do fim do treino soou, um PRIII agudo. No pátio alto da sala, uma plataforma de observação elevada a alguns metros, lá Zarek estava de pé. Ele chamou Hideki, balançando a mão direita com seu sorriso perene.

    O jovem portador caminhou até a plataforma e sentou-se na ponta do pátio alto. Zarek sentou-se ao lado, comendo ruidosamente um salgadinho.

    — Um excelente fim de performance, Hidekizinho. — Zarek riu, estendendo o saco de salgadinho. 

    Hideki pegou alguns salgadinhos, aceitando a oferta sem entusiasmo — Eu gosto desse teste… E estou melhorando. Agora meu desempenho foi de 99,4% de eficiência. — Hideki explicou, sem vaidade, apenas relatando os dados.

    — Aliás, qual é a sua sombra? E a sua técnica?

    — Minha sombra é Hariyaga. A técnica é “Inversão”.

    — Inversão… É um nome promissor. E o que ela inverte?

    — Inverte tudo e todos. É uma habilidade versátil que me permite a troca de localizações de pessoas, objetos, o estado de qualquer coisa existente. Altera a posição, o estado e a coerência espacial. É ótimo. — Hideki falava baixo.

    Zarek sorriu e esfregou as mãos — É isso, Hideki. E como teve essa sorte? De se tornar um portador? Não me diga que foi uma escolha racional?

    A origem de seu poder não era algo que ele discutia, mas Zarek havia estabelecido um nível de naturalidade, ou mais precisamente, de propriedade, que exigia a verdade.

    — Eu tinha 14 anos. Meu pai, Alexander, sempre foi maluco pelo mundo dos portadores. O sonho dele era ser um, e em algum momento genérico estava em uma de suas buscas por conhecimento esotérico que ele considerava ser uma vantidade intelectual. Então encontrou uma Escritura descartada no lixo da frente da casa de um vizinho. Pura sorte…

    Hideki continuou — Em casa, ele leu a Escritura em voz alta. A entidade, o Hariyaga, apareceu. E meu pai, que mesmo sabendo o que fazer depois de tanto ler sobre, tentou uma negociação direta com o Hariyaga, mas comigo junto… E isso não é possível.

    — E o que o Hariyaga fez? 

    — A entidade não se interessou por ele. O Hariyaga olhou para mim. Ele não exigiu sacrifícios, nem sangue, nem nada. Ele simplesmente gostou de mim.

    Após passar um ano somente agindo como um portador da Fundação, ele saiu…

    E aos 19 anos, Hideki era o novo agente-portador recém-integrado à Torre. Aos olhos do Departamento, ele era brilhante, sereno, e movia-se com a confiança de quem sabia que a lógica o protegia. Ele estava na academia da Torre, observando os novatos treinarem, digo — os mais humanos treinarem. Entre esses fracos e simples humanos, encontrava-se uma garota loira, de cabelo liso e longo, corpo esguio e um olhar azul-celeste direto e determinado, ela se destacava.

    Essa jovem mulher era Ava, de 18 anos, já com a rigidez militar que a definiria. Hideki se aproximou dela após o treino. Ava estava enxugando o suor, com a testa franzida em concentração.

    — Sua postura é ineficiente — Hideki disse, sem nenhuma introdução social. — Você está gastando mais energia no bloqueio do que o necessário. É um desperdício de recurso físico.

    Ava parou de repente, encarando o novato arrogante — Ham? E quem é você para quantificar minha eficiência?

    — Meu nome é Hideki. Estou aqui para ajudar os humanos.  — Ele respondeu. —  E seu bloqueio… deve ser assim…

    Hideki demonstrou o movimento, demonstrando sua precisão cirúrgica de seus músculos. Ava observou, e para a surpresa de todos, ela assentiu.

    — Entendi. Mas você é tão exibido assim mesmo? — ela tomou a frente, passando sua toalha de rosto e caminhando em direção ao banheiro feminino.

    — Não… — Ele o acompanhava.

    — Isso é o que homens jovens exibidos falam, sabia?

    Tsc! Claro que não. Não tem senti- — enquanto falava olhando para baixo, ela o barrou com a mão esquerda, com um sorriso de canto, já na entrada do banheiro — Eu não sei de onde veio, mas homem não entra em banheiro feminino. Dá pra voltar?

    Um pouco sem graça, ele somente deu alguns passos para trás — Ok.

    Então, ela somente entrou. Aquele dia marcou o início de uma relação.

    Nos dias seguintes, a presença de Hideki nas áreas de treinamento se tornou uma constante calculada. Ele não estava lá para socializar, era mais para catalogar as falhas do sistema humano e, de forma não-utilitária, corrigi-las para garantir a ordem. Por outro lado, Ava começou a procurá-lo. Com uma curiosidade desafiadora. Ela o encontrou na biblioteca da Torre, que sempre era um local onde Hideki geralmente revisava os cálculos de risco de missões futuras. Ele estava em uma mesa lateral, cercado por planilhas e equações complexas.

    — A matemática não te deixa ir ao refeitório? — Ava escorou-se na mesa, ignorando as regras da biblioteca sobre o silêncio.

    Hideki não desviou o olhar dos números — Eu não estou com fome.

    — Ah, você é exaustivo. — Ava riu de leve. — Mas você estava certo sobre o meu bloqueio. Ganhei três combates hoje. Eu sou rápida, e agora fui mais precisa…

    — O seu problema é você usar a vontade como força principal, logo um motor de curto prazo.

    Ava se sentou à frente dele, cruzando os braços e desafiando a sua lógica. — E o que te move, então? Você é um portador. Disse que está aqui para nos ajudar, mas sabe que pode nos matar também quando bem quiser. Certeza que faria isso caso não consiga o que pretende ter cooperando com a Torre.

    — Eu não faria isso…

    — Então você nos ajuda sem querer nada em troca? — Ava colocou a mão esquerda na frente de alguns papéis, interrompendo diretamente o que ele fazia.

    Hideki parou o lápis sobre a planilha. Ele olhou para ela — Eu não premedito nada por nada. Muito menos coisas em troca. E tira a mão da frente, por favor.

    — Por que decidiu cooperar com nós? — Ava.

    Ava sorriu, inclinando-se um pouco mais — Eu sou o seu ruído, Hideki. E você não me eliminou.

    O silêncio que se seguiu não era mais tenso, mas eletrizante. Hideki sentiu o desconforto familiar, aquele leve ruído que o desviava da lógica pura, e ele sabia que ela era a única a provocá-lo.

    — Você está perdendo tempo com uma conversa desinteressante. — Hideki disse, voltando aos números, mas a voz era menos convincente do que o normal.

    — Você fala muito quem acha necessário falar muito, porque normalmente são desinteressantes o suficiente, lembra? — Ava citou-o, usando a própria economia de palavras dele como arma. — Você fala pouco e não se importa, mas está aqui, me respondendo. Isso torna a conversa interessante para mim.

    Hideki fechou a planilha, derrotado pela lógica reversa de Ava.

    — O que você quer?

    — Quero que você pare de me ver como um gráfico de ineficiência. Quero que me veja como uma aliada com vontade. E quero que me ensine tudo o que você sabe sobre como os portadores pensam, para que a gente possa vencer essa guerra estúpida da Fundação contra a Torre.

    O pedido de Ava era tático e ambicioso. Hideki viu a lógica por trás da vontade. Ela estava disposta a absorver o conhecimento dele, a lógica pura, para amplificar sua vontade humana. Era uma fusão de opostos.

    — Aceito. — Hideki respondeu, seco. — Mas o custo será alto. Você terá que adotar somente a execução como ato. Sem pensar no propósito.

    — Por que você como se fosse um ancião com um milênio de conhecimento?

    — Realmente quer que eu ajude? 

    — Que seja… Me ensine a executar sem propósito.

    A partir daquele dia, a relação entre Hideki e Ava se transformou em uma parceria intensa e desgastante. Eles passavam horas juntos. Hideki a treinava em salas privadas, ensinando-a a prever o movimento, a calcular o risco de uma falha de sistema, a agir como se a emoção fosse um recurso finito a ser usado apenas quando o cálculo falhasse. Por sua vez, Ava forçava Hideki a interagir com o mundo além dos números. Ela o arrastava para reuniões sociais da Torre, forçando-o a catalogar não apenas a ineficiência física dos agentes, mas a irracionalidade de seus diálogos.

    Em uma noite, eles estavam sentados nos telhados da Torre, olhando para as luzes da cidade. Ava havia insistido que ele precisava ver que a ordem que ele tanto prezava se manifestava também no caos da vida civil.

    — Qual o cálculo dessa vista, hein seu nerd? — Ava perguntou, apontando para as luzes caóticas.

    — Com certeza um desperdício colossal de energia. 

    Ava riu, balançando a cabeça — Não acha nada bom? Nem essas luzes que… Olha, até dão uma beleza para a cidade.

    Hideki ficou em silêncio. A coerência da contradição era a única frase que conseguia descrever a própria Ava. Ele, o homem que buscava a simetria pura, estava cada vez mais viciado na assimetria dela.

    — Então não vejo. Isso tudo é só instável. — afirmou Hideki, no momento em que Ava se virou para ele, com o vento movendo seus cabelos.

    — É instável? — ela pensou, abaixando a cabeça, olhando os seus pés que balançavam como os de uma criança. — Eu acho que tudo é assim.

    Naquela noite, sob as luzes caóticas da cidade, Hideki não falou sobre equações, nem respondeu o que ela disse pela última vez. Ele somente olhou para Ava, e nada disse. A noite caiu em uma estranheza confusa, difícil de entender…

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