Na manhã seguinte, a Torre havia ordenado um teste de proficiência para Ava, ela falada como a mulher pródiga, e a única forma de medir o progresso da agente-humana contra a lógica era colocá-la contra o Executor, o portador da Inversão, Hideki. A arena de treinamento era um cubo de metal polido, frio e sem distrações. Hideki estava no centro, em sua pose padrão de inatividade calculada. Ava entrou, vestindo o uniforme preto de treino, e com a vontade pulsando em seus olhos verdes. 

    — Lembre-se, Hideki… — o instrutor da Torre verbalizou o protocolo de segurança para ele  —, se contenha ao máximo. Você está apenas testando a capacidade de defesa e adaptação dela. Entendido?

    Ele assentiu positivamente com a cabeça, e voltou seu olhar para ela. Ava tomou a distância estratégica e com a respiração extremamente regulada. 

    — Eu tenho chances de te vencer? — ela sorria para ele, movendo seu corpo para a direita e esquerda. Estava leve.

    — Não gaste tempo com previsões — Hideki respondeu, parado e ereto, sem ao menos considerar ela uma ameaça.

    O ataque era rápido, mas para Hideki, era lento. Ele usou apenas um pequeno deslocamento lateral, um movimento que evitou o contato por milímetros. A mão de Ava cortou o ar onde ele estava. A frustração por não o atingir fez com que sua vontade se transformasse em fúria.

    Ahm? Como que…? — ela pensou assustada, e pivotando para um chute circular com a perna direita, mirando o pescoço dele. — Você não está lutando! Por que não ataca?

    Hideki reagiu, e ouvindo um leve som dos seus tênis arrastando no solo, diante do olhar de Ava que até acompanhava a ofensiva, mas segundos depois do real ato. Hideki avançou, e tão rápido foi, que ao surgir do lado direito dela, Ava atacou sim… mas o seu rastro por onde já havia passado milissegundos. E nela, disparou um chute de direita, no estomago antes da defesa dela, e a jogando para metros de distancia. Entretanto, a força não foi tamanha. Ava não bateu contra nada. Somente foi jogada. 

    Ava cambaleou, suando somente por nada ter visto, e com o rosto contraído pela raiva de ser superada tão rapidamente e facilmente.

    — Você está brincando comigo? Nem me derrubou! Usa seu poder de verdade!

    — Não ouviu o que disse o instrutor antes? — Hideki manteve a pose neutra, com os braços caídos. — Se eu não me contivesse, você estaria inteiramente desmembrada com um chute.

    Ava atacou novamente, rangendo os dentes, e aplicando uma sequência caótica e instintiva de socos e cotoveladas, no seu avanço superior a de um humano sem treinamento e preparo como ela possui. Ava era rápida, impressionante, mas nada que pudesse assustar o seu adversário. Hideki se movia como uma sombra, e ele nem buscava contra-atacar. O corpo dele se esquivava, até mesmo em uma proximidade da Ava, que soava inacreditável a sua velocidade. Em um movimento de esquiva, o braço de Hideki roçou o da Ava. O contato foi mínimo, mas a eletricidade que percorreu os dois era máxima. Por uma fração de segundo, a lógica de Hideki falhou. Ele parou, minimamente congelado pela sensação.

    Ava usou o erro logístico dele. Ela deu um passo à frente, travando os braços de Hideki com um movimento de artes marciais. Finalmente havia uma chance para ela. Eles estavam face a face, e a respiração ofegante dela batia contra o rosto inexpressivo dele.

    — O portador falhou? — Ava ofegou, o triunfo estava presente na sua voz exausta. A proximidade era esmagadora. Ela viu os olhos mortos de Hideki de perto, observando de perto a apatia plena: “Por que é tão sem vida?…”

    — Aproveitou da minha instabilidade. Foi uma boa. — ele olhou para baixo, para os pés dela — Mas se pedia tanto por um resquício do que posso fazer…

    Sem um movimento visível dos braços, frente a Ava, Hideki somente disse sem esforço “Hariyaga! Inversão!”

    Surpresa e levemente nervosa, Ava olhou para todos os lados e para trás.

    — O que… vai acontecer?

    — Sem medo, agente. — ele a encarou num tom de superioridade e soberba.

    Em um piscar de olhos dela, o aperto dela se desfez. Ela já não segurava os braços dele. O corpo de Hideki estava livre, e nas mãos dela? Tinha uma pedra, apenas. E em seguida, sem tempo de reação além da sua face confusa e perplexa, Ava teve suas costas empurradas, no uso de uma força o suficiente para quebrar, e arremessá-la por alguns metros e rolar no chão, até bater na parede da arena.

    Priiii!

    O instrutor apitou o fim da luta. 

    Sem aceitar em meio ao seu suor que caía de seu rosto e braços, e que molhavam o chão, ela socou o chão. A sua raiva fervia.

    — Você venceu. É claro. Você nunca perde — Ava levantou, limpando o joelho com um movimento brusco. Ela saiu da arena com passos rápidos, cheia de fúria instintiva e humilhação, deixando Hideki sozinho no centro frio do cubo de metal, observando a coerência da raiva dela.

    Horas passaram. O sol de fim de tarde havia chegado e cobria a sede da Torre com tons alaranjados. Ela estava no jardim interno da Torre, chutando uma pedra com raiva metódica, tentando dissipar a humilhação na arena. Ela havia perdido, e o pior, para quem cuja maneira de pensar era desprezível. Contudo, um som de passos se aproximou. Os passos eram calmos. Hideki estava lá, desuniformizado, em roupas civis que o tornavam apenas um homem comum, sem a mitologia do portador. Ele não se aproximou imediatamente. Apenas a observou.

    — Você está desperdiçando energia com um objeto estático — Hideki estava com as mãos nos bolsos.

    Ava não se virou — Por que não cala a boca? 

    — Eu vim fazer um relatório — Hideki deu um passo mais perto. — Um relatório para mim.

    Ava virou-se bruscamente, e tinha muita agressividade em seus olhos — E qual é o seu relatório?

    — Eu não queria te deixar vulnerável.

    — Nossa, está pedindo desculpas? — Ava se aproximou, o rosto a poucos centímetros do dele, buscando o confronto.

    Hideki manteve a calma, mas seus olhos opacos mostravam uma nova perturbação — Não. Eu desgosto disso. Desculpas não reparam danos. Mas é isso que posso fazer.

    Ele estendeu o braço, e, pela primeira vez fora do contexto de combate ou instrução, encostou a mão no ombro direito de Ava. Não foi um toque gentil e romântico para ele, foi apenas um toque firme, quase uma apreensão. Ele balançou levemente o ombro dela.

    — Não precisa ser raivosa. Eu a vi. Ela tomou você na arena. Isso não é bom… E a Torre tem você como a agente-humana mais eficiente que já produziu. 

    O toque e a sinceridade atípica do portador desarmaram a fúria de Ava. Ela sentiu o calor da mão dele através do tecido e a densidade da atenção de Hideki. 

    — Você está me tocando — Ava sussurrou, sua voz perdeu a agressividade e ganhou um tom de espanto. — O Executor está tendo um momento de contato físico desnecessário? Isso não é um desperdício?

    Hideki logo tirou a mão — É… Por isso que não tento animar ninguém. Vocês humanos não são nada demais.

    — Como é? — Ela avançou nele, encostando mesmo, quase nariz com nariz. Bom, ela se levantava até as pontas dos pés para conseguir. — Até parece que você é alienígena… Se pelo menos tivesse a aparência, seria mais fácil te bater…

    Sem espontaneidade suficiente para prever tanta proximidade, Hideki, que estava tão próximo, tão frente a ela, pegou nas duas mãos da Ava sem nem que uma vidente previsse. Instantaneamente, Ava olhou e viu.

    — Oh! Solta minhas mãos. — Reclamando, ela balançou as mãos para soltá-las.

    — Você nunca fica calma?… — Hideki não soltava as mãos dela, e ele a encarava nos olhos, bem de perto, sereno como sempre.

    Ela não conseguia olhar direito nos olhos dele, sempre desviava para o chão, para o céu, para qualquer canto.

    — O que tá fazendo? Me solta logo.

    Hideki não respondeu. Seus olhos, que antes eram opacos, ganharam um foco anormal pela primeira vez. Ele deu um mínimo passo à frente, diminuindo o espaço que restava entre os dois. A proximidade era total, nariz com nariz. Uma loucura poderia explicar o que ocorria? Talvez, mas naquele momento, a única solução lógica para o ruído emocional que castigava Ava, na visão dele, tinha uma solução.

    Em um movimento que rompeu com anos de apatia fria, Hideki a beijou. Foi um selinho, inicialmente, em um toque seco e calculado de lábios. Surpresa e perplexa, Ava tentou se afastar, mexendo tanto seus braços quanto suas pernas. Mas a pressão de Hideki nas suas mãos era firme e suficiente para mantê-la. O selinho se prolongou, demorou mais que o normal. E ela, que sentia a estabilidade estranha de Hideki, parou de lutar contra o beijo. A vontade dela, sempre ativa, silenciou. Ela não tentou se afastar mais, e permaneceu ali, com os olhos abertos, observando o rosto inexpressivo do Hideki, que, pela primeira vez, tinha os olhos fechados, imerso em sua própria atitude. Não demorou, e a coerência da contradição agiu em Ava. Ela também fechou os olhos, rendendo-se à quebra do protocolo. Naquele instante, uma substituição foi feita, pois foi Hideki, quem agora havia aberto somente o olho direito. Ele viu que Ava havia se rendido. A lógica que o moveu a dar o passo anterior ditou a próxima etapa do experimento. Ele aumentou a aposta.

    O beijo saiu do selinho demorado e transformou-se em beijo de língua. Para ele, quem tanto nunca buscava tal ato, era uma invasão metódica, e a sensação que sentia como um portador racional, soava uma exploração do novo território sensorial que ela havia concedido. Ava, sem se afastar, continuou no beijo. A sua vontade agora estava sincronizada com a execução dele.

    O beijo ficou mais quente. A fricção gerou um calor que Hideki nunca havia catalogado. As mãos dele soltaram as de Ava e se moveram para a cintura dela. Os corpos agora se tocavam e encostavam mais. Neste momento de intensidade máxima, um som seco se fez ouvir. Um papel dobrado escorregou do bolso esquerdo da calção de Hideki, e caiu silenciosamente na grama do jardim interno.

    Era uma lista, escrita à mão, em sua caligrafia precisa, quase matemática:

    “1 – Diálogo. 2 – Aproximação. 3 – Toque. 4 – Beijo.”

    O papel jazia na grama, sob as luzes fracas do pátio, como um documento de análise que provava que até mesmo o espontâneo era na verdade uma execução planejada na mente dele. Ele havia traçado cada passo, desde a conversa inicial até o clímax físico, enfatizando o quão lógico e frio ele ainda era, mesmo na presença de um suposto sentimento. O experimento sensorial continuou, com os dois se perdendo no silêncio da paixão, a vontade de Ava se fundindo à execução de Hideki, até que a exaustão do caos os atingiu.

    (…)

    O jardim interno da Torre estava em silêncio, apenas se escutava o som distante dos guardas em patrulha. Em uma parte mais reclusa, entre os arbustos densos, estavam Hideki e Ava. Ambos estavam caídos na grama, com as suas roupas tortas, bagunçadas e vestidas de forma errônea, sendo estas as claras evidências da pressa e do descuido com que se vestiram após o ato final daquele experimento. Ava estava dormindo, virada para Hideki, com seu rosto dominado por uma expressão de um bom sono, e o cabelo loiro espalhado na grama. Para ele, as dependências dela estavam resolvidas. Hideki estava acordado. Ele não dormia. Não era somente por um costume, mas a lógica de seu corpo portador raramente permitia o desperdício do sono profundo. Ele olhava para Ava dormindo, e mesmo que buscasse alguma resposta para si mesmo para o que tinha feito, o seu rosto ainda era inexpressivo, banhado pela luz pálida da lua que se filtrava pelas árvores.

    Sua mente, o laboratório de cálculos, estava em colapso. Hideki pensava:

    “Eu não sei… Se isso vai ser o suficiente para fazer com que as suas dependências passem. Se a raiva, qualquer coisa, que não é legal em você, não passar… Então o amor não foi suficiente, certo? E se isso vai me causar algo… até agora, acho que nada fez em mim… Só que, eu estou pensando, Ava. Eu nunca pensei nisso. O cálculo da satisfação física estava correto. Mas o custo da confusão é incalculável…”

    “Mas… E se eu deixar que… você seja parte da minha lógica? Você precisa de mim, e talvez para mim, seja lá como isso funcione, só não seja algo ruim se terei você como variável. Uma variável essencial, Ava. Você não é um vetor externo; você é uma variável essencial…”

    “Se algo vier até mim, saberei então que você é um ruído estranho. Para mim, pelo menos. Eu quero entendê-lo.”

    A integração da “variável Ava” ao “sistema Hideki” se consolidou em um vício mútuo. O portador aceitou a complicação e a inesperada utilidade da emoção em sua vida, mesmo que em um caráter superficial. A vida na Torre continuou, mas a dinâmica entre os dois era inconfundível. Existiam longas noites de conversas, testes de combate entre os dois, e o reconhecimento silencioso de que eles estavam se movendo em direção a algo irrevogável. O risco se tornou um custo real quando Ava foi selecionada para um intercâmbio de algumas semanas na sede chilena da Torre, em Santiago. Era uma missão vital para o desenvolvimento dela. A despedida aconteceu na área de embarque da sede da Torre em Brasília. O clima era seco, calor. Hideki estava lá, de pé, observando o avião que a levaria embora. Ele não falava.

    Ava se aproximou, puxando uma mala com a mão direita.

    — Eu vou voltar — ela disse, com um discreto sorriso, tentando quebrar a parede de apatia que ele havia erguido como defesa.

    — Eu sei — Hideki mantinha uma neutralidade inacreditável.

    Ava parou bem em frente a ele. Hideki, o homem que havia rejeitado o contato físico desnecessário, fez o que seria ilógico e sem precedentes para o Executor. Ele deu um passo à frente. Ele abraçou Ava fortemente. O abraço era rígido, e a tensão de todo o seu corpo Portador se manifestando na força com que ele a segurava. Seu olhar estava fixo para a frente, através de Ava, como se ele estivesse perplexo por estar realizando um ato de afeto que contradizia ele mesmo. Um peso estranho de agir, mas nada sentir do ato. Ava retribuiu o abraço, mesmo com o medo ilógico dele em cada músculo tenso. Ela sorriu. E quando o abraço se desfez, ela olhou diretamente nos olhos opacos de Hideki, que tão mortos ainda eram, mas quando nela pairavam, se perdiam, paralisavam nela e não desviavam. Esse ocorrido fazia Hideki cair diante de um silêncio interno absoluto. A estagnação do seu olhar sobre aquilo que lhe paralisava, também lhe acalmava. Os seus pensamentos se acalmavam. Um silêncio o dominava e isso era um remédio. 

    Foi essa conclusão que ele tirou nesse momento, diante de toda essa sensação: “É a lua… seu olhar. Me acalma…”

    — Você vai sentir a minha falta — Ava bateu repetidas vezes no ombro direito dele, sorrindo.

    Hideki não respondeu com palavras. Sua lógica estava em colapso. De repente, ela inclinou-se e o beijou. Um selinho demorado que soava como um ponto final na fase inicial do que significava ‘eles’. Ela se afastou e, em um segundo gesto, deu uma segunda bitoca rápida na bochecha direita dele, um ato de carinho espontâneo que quebrou completamente o protocolo. Antes de virar-se para caminhar em direção ao embarque, Ava depositou uma carta fechada na mão esquerda de Hideki, que permanecia apático, calado.

    A cada segundo, ele observava a figura determinada de Ava se afastar. A mão dele, que segurava a carta, tremia levemente. Apenas quando Ava desapareceu de vista, ele abriu a carta, as dobras do papel se desfizeram.

    O papel continha apenas uma frase:

    “Eu voltarei já já.”

    E sim, ela voltaria. Ela voltou. E juntos, eles viram alguns anos se passarem…

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