Capítulo 11 - Igreja
Carlos, ao ouvir a insinuação de que Pedro poderia ser o dedo-duro, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. O ar abafado da senzala, carregado do cheiro de suor e fumaça, pareceu ficar mais pesado.
“Não pode ser ele. O Pedro foi a primeira pessoa que me estendeu a mão aqui.”
Pedro se aproximou e sentou-se no meio deles. Seus olhos se voltaram para Tassi, suavizando-se.
— Então, como está se sentindo agora que finalmente se livrou daquela máscara horrível?
— Estou me sentindo… leve — respondeu Tassi, erguendo a mão para tocar o próprio rosto, como se ainda não acreditasse. — E ainda melhor por ter visto o seu Jorge ficar vermelho como um pimentão. Mas nunca imaginei que o padre teria tanta coragem. Obrigada por falar com ele.
— Eu não fiz quase nada — Pedro encolheu os ombros. — O padre já vinha insistindo com o patrão há dias para tirar sua máscara; eu só ajudei a encurralar o velho. Você é que deveria agradecer a ele depois.
— Sim, vou fazer isso. Pena que ele sempre tenta me converter por umas boas horas sempre que apareço por lá.
— Você precisa crer em Deus, irmã, para alcançar a salvação.
— No dia em que Deus me tornar uma pessoa livre, eu passarei a acreditar nele. Até lá, não vou depositar minha fé em nada.
— A salvação não existe aqui na Terra — Pedro argumentou, balançando a cabeça. — Só no céu seremos verdadeiramente salvos e livres. Eu ia perguntar ‘Você não concorda, Carlos?’, mas me lembrei do que você disse ontem. Percebi que você é do tipo que acredita que podemos construir um mundo melhor aqui. Bom, cada um acredita no que quiser.
“Parece que minhas palavras de ontem realmente ecoaram nele.”
— Pelo visto estão começando a me entender — Carlos disse, sentindo um fio de esperança. — Mas saibam que não falo da boca para fora. Vou provar isso para vocês.
— E como vai provar? — Pedro perguntou, inclinando-se para frente.
Tassi, sentada ao lado de Pedro, levou o dedo indicador rapidamente aos lábios, num gesto claro e discreto de silêncio. Da posição de Carlos, apenas ele podia ver.
“Ops, falei demais. Apesar de confiar nele, vou confiar no julgamento dela. Tenho minhas reservas. Melhor ser evasivo.”
— Apenas espere e verá.
Isso irritou Tassi. “Idiota! Que frase mais suspeita! Somos escravos; nada vai mudar a menos que sejamos livres. Dizer para ele ‘espere e verá’ é o mesmo que gritar que planeja fugir!”
Pedro registrou mentalmente cada palavra, mas decidiu não insistir no assunto.
— Então, sobre o que vocês estavam conversando, agora que a Tassi finalmente pode falar sem ter que sussurrar?
— Eu estava contando sobre a minha vida e explicando sobre as gemas mágicas — Tassi respondeu, desviando o olhar de Carlos. — Parece que ele viveu numa caverna e nunca ouviu falar delas.
“Se eu não disser nada agora, esse ‘idiota’ aqui pode acabar soltando outra bobagem.”
Carlos não gostou do comentário e revidou, sua voz um pouco mais áspera:
— Posso não saber nada sobre gemas mágicas, mas sei sobre tudo o mais! Sei que estamos no Brasil, que muitos escravos vêm do Congo, da Guiné. Sei sobre Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, o Império Otomano, Marrocos, os Mamelucos, a Etiópia. Sei que estamos no Brasil.
“Aliás, em que parte do Brasil? Considerando que é um engenho de açúcar e a época, provavelmente estamos no Nordeste. Foi aqui que houve a maior produção açucareira. Acho que a capitania na época era Pernambuco. Olinda foi a capital inicial, mas depois da expulsão dos holandeses, Recife assumiu. Se me lembro bem, o velho do engenho mencionou algo sobre os holandeses terem sido expulsos. Então a capital deve ser Recife.”
— Também sei que estamos na Capitania de Pernambuco, cuja capital é Recife. E o quilombo aqui perto chama-se Quilombo dos Palmares, pelo menos o maior deles por aqui.
Carlos proferiu tudo com uma convicção que ecoou na quietude do local.
“Pelo menos minhas mil horas jogando jogos de pintar mapa servirão para alguma coisa.”
Pedro e Tassi trocaram um olhar, e então não conseguiram se conter. Uma risada escapou, transformando-se rapidamente em gargalhadas contagiantes. Tassi precisou apoiar as mãos nos joelhos, respirando fundo para se acalmar.
— Na primeira parte você até me impressionou — ela disse, ainda ofegante. — Mas quando começou a falar das cidades, se embananou todo! Que diabo é ‘Recife’? A capital da região é Praia Branca! E o quilombo aqui perto é o Quilombo da Jabuticaba!
Pedro também tentou conter o riso antes de acrescentar:
— Você falou com tanta segurança que eu cheguei a duvidar da minha própria memória!
“Como eu ia saber que os nomes eram diferentes? Todo o resto parece igual. Não entendo a lógica deste mundo: metade das coisas é idêntica, a outra metade, completamente diferente.”
Vendo que a hilaridade dos dois não daria trégua tão cedo, Carlos levantou-se e afastou-se, sentindo o calor da vergonha subir pelo seu pescoço.
Alguns minutos depois, as risadas finalmente arrefeceram.
— Ele é meio esquisito, não é? — Pedro comentou, ainda com um sorriso nos lábios. — De onde será que veio?
— Não acho que seja esquisito — Tassi respondeu, sua voz séria novamente. — Você nasceu neste engenho, não é, Pedro? Então não sabe como é perder sua casa, sua família, seus amigos e ser jogado num lugar desconhecido. Isso mexe com a cabeça de qualquer um. Eu mesma demorei para me adaptar.
— E você realmente se adaptou? Não tentou fugir no começo da semana? — Pedro questionou, mas então baixou a voz.
— Mas você tem razão. Nasci e cresci entre estas cercas. Meu mundo sempre foi este. Não consigo imaginar como deve ter sido para você, ser capturada lá longe e trazida para cá.
— É justamente por ter me ‘adaptado’ que eu quero fugir. Quero ser livre. Você nunca foi livre, então não sabe o que é. E é por isso que lhe peço: tente não repetir tudo o que o Carlos diz para o senhor do engenho. Ele ainda não se acostumou com a vida daqui.
Pedro ficou em silêncio por um momento, então levantou-se.
— Infelizmente, deu minha hora. Tenho que voltar para a casa-grande.
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Carlos caminhava às margens do lago do engenho, sentindo a terra úmida e fria sob seus pés descalços. O ar noturno trazia o cheiro adocicado e mofado da água parada. Ele ruminava tudo o que ouvira, tentando assimilar as informações.
“Estou mesmo assumindo coisas demais. Este não é o meu mundo. Preciso ouvir mais, pensar mais. Não sei nada sobre a magia daqui, nem sobre o que posso fazer. Tenho que aprender sobre este lugar, e parar de presumir que é igual ao meu.”
Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz áspera que vinha de trás.
— O patrão está te chamando.
Ao virar-se, Carlos viu o capataz Jairo, de braços cruzados, seu rosto marcado por uma expressão habitual de desdém.
“Mas que droga. O que ele quer comigo num domingo? Nem sequer posso ter um momento de descanso?”
Quando se aproximou da casa-grande, viu Jorge esperando na varanda. O senhor do engenho estava furioso, seu rosto congestionado de raiva.
— Está atrasado! Pelo visto, nenhum escravo nesta propriedade me respeita! Mas você vai aprender a respeitar!
“Como assim? Achei que era dia de descanso. Pensei que não precisava vir.”
— Perdão, senhor. Achei que hoje era meu dia de folga.
— Mentiroso! Todos sabem que quem trabalha na casa-grande não tem dia de folga! Para aprender a me respeitar, você levará vinte chibatadas! Jairo, tire-o da minha frente e aplique a punição. Não quero ver a cara deste preto pelo resto do dia!
Sem hesitar, Jairo o agarrou pelo braço e o arrastou até o pelourinho em frente à senzala. A madeira áspera e manchada parecia absorver a luz do fim de tarde.
— Você vai aprender a respeitar seu dono!
Jairo olhou ao redor, para os outros escravos que observavam em silêncio, e gritou:
— Ouçam todos, seus pretos vagabundos! Isto é o que acontece com quem não respeita o senhor do engenho!
Relutantemente, Carlos puxou a camisa suada sobre a cabeça. Jairo desfechou o primeiro golpe. O chicote cortou o ar com um estalido seco antes de atingir suas costas com um impacto que queimou como fogo. Diferente da última vez, não houve preparação. A dor era imediata e avassaladora. Ele quase gritou, mas prendeu o grito entre os dentes, saboreando o sabor metálico do sangue em sua boca.
Alguns escravos desviaram o olhar, incapazes de suportar a cena. Outros apenas fitavam, em seus rostos havia marcas de resignação e pena.
Em sua mente, o tempo dilatou-se. Cada golpe parecia uma eternidade de agonia. Quando a última chibatada ecoou, ele mal conseguia se manter em pé. Suas costas latejavam numa dor excruciante, uma nuvem vermelha e pulsante de sofrimento.
— Queria tanto um dia de folga, não é? Pois agora terá! — Jairo cuspiu as palavras. — Vá até o padre tratar dessas feridas e pode ficar à toa, já que o patrão não quer você por perto.
Aos poucos, Carlos se levantou, cada movimento uma facada. Seus maxilares estavam tão tensionados que doíam.
“Vou matar esses desgraçados. Custe o que custar.”
Virou-se e começou a andar em direção à capela. Cada passo era uma tortura, cada respiração mais profunda um lembrete das marcas abertas em suas costas. A curta distância transformou-se numa jornada interminável.
Ao chegar, o padre Antônio, que varria a entrada, levantou os olhos e seu rosto imediatamente se encheu de preocupação.
— Meu Deus, meu filho! O que aconteceu com você?
— Boa tarde, Padre — Carlos falou, sua voz um fio. — Só levei algumas chibatadas por não ter ido falar com o senhor do engenho.
— Venha comigo, vamos cuidar disso imediatamente.
Ele guiou Carlos para a pequena sala anexa, onde guardava seus remédios. O local cheirava a ervas secas e álcool. Antônio fez Carlos sentar-se numa cadeira de madeira e começou a aplicar gentilmente uma pomada azulada e esverdeada, que emitia um leve brilho.
— Sinto muito por isso — o padre disse, sua voz carregada de culpa. — Acho que irritei demais o senhor do engenho com meu sermão, e ele descontou a raiva em você.
— Padre você me açoitou? Ou ordenou que me açoitassem? Não! Então o padre não tem culpa de nada!
— Você tem razão. Mas mesmo assim, deveria ter tido mais tato.
Carlos balançou a cabeça discordando.
— Só de ver o senhor Jorge com tanta raiva, já valeu a pena. E a Tassi realmente precisava comer. Deixar uma pessoa passar fome é uma crueldade sem tamanho.
— Além disso, se eu soubesse que deveria ter ido vê-lo, isso não teria acontecido. Eu realmente pensei que hoje era dia de descanso. Ninguém me avisou, embora, pensando agora, o Pedro tenha comentado que iria trabalhar na casa-grande. Deveria ter percebido na hora.
Antônio, que tentava conter a irritação disse:
— Mas você não deveria ter que trabalhar! Hoje é um dia sagrado. Infelizmente, para muitos senhores de engenho, escravos não têm direito ao descanso. Só consegui que dessem um dia de folga porque a Dona Alice é uma fiel devota e convenceu o marido. Mas o Senhor Jorge, infelizmente, não considera o trabalho na casa-grande como ‘trabalho’ de verdade. Por isso, você e os outros que servem lá devem comparecer.
“Meu Deus, que vida sofrida. Imaginar uma vida inteira sem um único dia de descanso… Coitada da Tia Vera. Se eu estivesse no lugar dela, não conseguiria ser tão amável. Odiaria tudo e todos. Ainda mais sofrendo com as dores constantes do trabalho excessivo… Minha mãe sentia muitas dores. Aposto que a Tia Vera também sofre, ainda mais com a idade.”
— Mas, mesmo a Dona Alice sendo tão fiel, acho que o principal motivo de vocês terem algum dia de descanso é porque a Cidade Sagrada fica aqui perto.
“Espere… Cidade Sagrada? Nunca ouvi falar disso!”
— Cidade Sagrada?
— Você realmente não é daqui, não é? Embora seu português seja excelente para alguém vindo da África. Aqui perto fica a Cidade Sagrada de Santa Maria. É uma das muitas cidades sagradas da Igreja.
“Como assim? A Igreja é mais poderosa aqui do que no meu mundo? Preciso saber mais.”
— Por que a Igreja teria uma cidade sagrada num lugar como este? E existem outras?
— Onde a palavra de Deus precisa ser espalhada, você encontrará uma Cidade Sagrada. Elas existem por todo o mundo. E, além de difundir a fé, essas cidades recrutam qualquer pessoa que demonstre aptidão para usar a gema da cura. Eu fui uma delas, e serei eternamente grato. Era órfão; meus pais morreram numa epidemia de varíola. Fiquei completamente sozinho, e a Igreja me deu um lar, uma educação, e tudo o que tenho — inclusive esta gema da cura para fazer pomadas e ajudá-lo. Mas, é claro, eles me ajudaram porque descobriram que eu tinha o dom.
Carlos estava tão absorto na conversa que mal sentia a dor nas costas enquanto a pomada fazia seu efeito, deixando uma sensação de alívio fresco e penetrante.
“Aposto que, além de espalhar a palavra de Deus, a Igreja usa essas cidades para consolidar e expandir seu poder. E a Tassi mencionou como é difícil trabalhar com gemas mágicas…”
— E só a Igreja sabe como trabalhar as gemas da cura?
— Sim.
“Então a Igreja mantém um monopólio sobre a gema da cura e sobre quem pode usá-la. E com esse poder, pode expandir ainda mais sua influência global. Pelo visto, a Igreja deste mundo é muito mais forte do que a do meu — e a minha já era poderosa. Só não sei se isso é bom ou ruim. Por um lado, os escravos da região conseguem dias de descanso. Por outro, a Igreja apoia a escravidão e o colonialismo.”
Antônio já imaginava o que ele pensava.
— Compreendo que, para quem não é muito devoto, a decisão de guardar as gemas da cura para si possa parecer cruel — o padre continuou, como se lesse seus pensamentos.
— No entanto, a Igreja usa esse poder principalmente para obter recursos de nobres e reis durante as guerras, cobrando uma taxa para curar combatentes. Esse dinheiro é então usado para tratar os fiéis. É graças a isso que posso curá-lo. Pelo menos, é assim que funciona por aqui; não sei como é no resto do mundo. Mas a Papisa da Cidade Sagrada de Santa Maria usa os recursos que a Igreja obtém dessas guerras inúteis para garantir que todos os desafortunados possam ser curados — exceto, é claro, aqueles que se feriram tentando matar outra pessoa, seja numa guerra ou fora dela.
“Qualquer um? Duvido que seja assim no mundo inteiro. Se fosse, a Igreja deste mundo seria muito melhor que a minha. Na minha, no papel, a Igreja aceitava todos, mas na prática, os doadores mais ricos recebiam os melhores tratamentos. Alguns pobres recebiam um cuidado básico, mas para muitos escravizados e indesejados não havia nada — em parte, claro, por falta de recursos e mão de obra… Espera aí, ele disse ‘Papisa’? E não ‘Papa’?”
— Lamentavelmente, os escravos também não recebem a cura gratuitamente. É cobrada uma taxa de todo senhor de engenho. Mas, mesmo que não fosse, eu faria o mesmo, porque acredito que qualquer um merece a cura de Deus.
“E nos engenhos que não pagam a taxa? Se há uma taxa, então não é para ‘qualquer um’. Mas, mais importante… a Papisa?”
Estava prestes a abrir a boca para perguntar, mas foi interrompido.
— Terminei, Carlos. Agora, tente ficar em repouso até amanhã.
— Obrigado, Padre.
“Bom, devo ter ouvido errado. De qualquer forma, preciso descansar, pois amanhã retorno à minha vida de escravo.”
Carlos levantou-se com cuidado da cadeira e começou a caminhar em direção à porta. Antes de cruzá-la, porém, parou e virou-se para o padre Antônio.
— Por que o senhor nos ajuda tanto? Não precisava ter confrontado o senhor do engenho daquela maneira. Para a Igreja, nós não passamos de escravos.
Antônio olhou para ele, e um sorriso tranquilo, porém triste, iluminou seu rosto.
— Sou eternamente grato à Igreja, meu filho. Mas eu sei que a palavra da Igreja… nem sempre é a mesma palavra de Deus.

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