Índice de Capítulo

    O cansaço era tão profundo que Carlos mal conseguia pensar. Quando o trabalho finalmente terminou, seus pés descalços o carregaram por inércia, seguindo o fluxo de corpos exaustos em direção à senzala. O barracão de paredes de barro rachado e telhado de palha se erguia como uma sombra contra o céu alaranjado do crepúsculo.

    Dentro, o ar era pesado e estagnado. A primeira coisa que atingiu suas narinas foi o cheiro encorpado de feijão cozido, vindo de grandes panelas de ferro suspensas sobre fogueiras baixas. O aroma fez seu estômago vazio se contrair em um ronco alto. Mas, em segundos, outro odor se infiltrou, agressivo e nauseante: o fedor adocicado de merda, literalmente. Olhando para o fundo do barracão sem janelas, ele viu a fonte. Um simples buraco escavado no chão de terra, onde um homem se agachava, sem qualquer privacidade.

    “Meu Deus… vamos ter que comer aqui dentro, com esse cheiro? Isso não é um banheiro, é um buraco no chão! Não dá para chamar isso de higiênico.” O desespero apertou sua garganta. “Estou morrendo de fome, mas preciso sair daqui para comer.”

    Mal havia formulado o pensamento quando um rangido áspero ecoou atrás dele. O grande portão de madeira da senzala foi fechado, e a pesada trava de madeira deslizou no lugar. Carlos se aproximou, suas mãos tocando a madeira áspera. Do lado de fora, ouviu vozes:

    — Todos dentro? — perguntou uma voz rouca. — Não podemos arriscar outra fuga. O próximo a sumir custa nosso salário do ano.

    O coração de Carlos afundou. Ele se afastou do portão, uma sensação de prisão sufocante fechando-se sobre ele. “Não… é sério que vou ter que comer aqui? Aff… Então essa é a minha nova realidade. A senzala. Minha ‘casa’.” Respirou fundo, o cheiro misturado enchendo seus pulmões. “Tudo bem. Só preciso comer.”

    Voltando sua atenção para as panelas, viu mulheres idosas, rostos marcados pela vida, mexendo os conteúdos com colheres de madeira. O “jantar” era uma visão deprimente: feijão aguado em uma das panelas e, no chão, uma bacia de madeira cheia de farinha de mandioca. Não havia mesas nem bancos; os escravos comiam sentados na terra ou em pé, equilibrando suas tigelas.

    “Não vou reclamar. Estou com tanta fome que comeria qualquer coisa.”

    Encontrando uma pilha de tigelas de madeira lascadas, Carlos pegou uma e se dirigiu a uma das mulheres. Ela era mais velha, de cabelos grisalhos presos sob um lenço roxo desbotado. Seus olhos tinham a paciência infinita daqueles que já haviam visto tudo.

    — Você deve ser o novo coitado que acharam por aí — disse ela, enchendo sua tigela com feijão. Seus dedos eram calejados, mas firmes. — Teve azar de cair aqui, moço. Este é um dos engenhos mais ricos da região. — Ela se inclinou para a frente, baixando a voz para um sussurro. Carlos, já comendo com as mãos, como um animal faminto, se aproximou para ouvir. 

    — Mas o dono é o mais mesquinho de todos. Só nos dão esse feijão, farinha e um charque velho para salgar. Nem as sobras de carne da casa-grande vêm para nós. Vão para os cachorros. Não podemos plantar nada, só cana. Até os homens livres reclamam da mesquinharia do senhor.

    Ela se endireitou, retomando o tom normal. — Mas, bem-vindo ao engenho do Seu Jorge. Pode me chamar de Tia Vera. Trabalho na casa-grande, cozinhando, limpando, cuidando das crianças… um pouco de tudo.

    Carlos engoliu rapidamente uma colherada de feijão, quase engasgando.

    — Me chamo Carlos. Prazer em conhecê-la, senhora… digo, Tia Vera.

    — Come sem pressa, mocinho. Sei que estão mortos de fome. Fiquei sabendo de tudo. Sou a mais velha aqui, conheço todos. Como o Seu Jorge janta cedo, tenho tempo para saber das novidades. Qualquer dúvida, é só perguntar.

    A Tia Vera baixou a voz novamente, seus olhos cintilando com um lampejo de rebeldia.

    — E tenho uma sobremesa para você e para os outros que foram trazidos de volta. Meu netinho conseguiu alguns cajus da árvore perto do lago. Enquanto todos estavam distraídos com o espetáculo no pelourinho, ele subiu e pegou um monte. Escondeu tudo aqui. Acho que vocês precisam mais do que todo mundo.

    “Ela fala bastante”, pensou Carlos, “mas é uma bênção ter alguém assim aqui. É incrível como ainda consegue encontrar gentileza no meio de tanta miséria.” 

    O feijão era simples, sem tempero, com alguns pedaços minúsculos de charque duro. Mas sua fome era tanta que aquele era o melhor sabor que já experimentara. “Uma semana disso e vou enjoar, mas por hoje… está divino. E ainda tem caju. Acho que posso pedir mais.”

    — Muito obrigado pelo caju, Tia Vera — sussurrou ele. — Posso pegar mais uma porção?

    Ela sorriu, enchendo sua tigela novamente.

    — Pode, sim! Estava mesmo esfomeado, né? Nossa, isso me lembra da pobrezinha da Tassi. Ela também deve estar faminta, e o Seu Jorge a tratou com tanta crueldade… O padre da capela veio hoje de tarde implorar para que ao menos lhe dessem comida, dizendo que Deus não gosta que seu povo passe fome.

    “Então o nome dela é Tassi”, Carlos registrou mentalmente, “e estou em dívida com ela.” 

    O comentário sobre Deus provocou um amargo riso interno. “Tenho certeza de que Deus também não aprovaria a escravidão. Mas um pouco de racismo e incentivo econômico são suficientes para fazer qualquer igreja esquecer seus princípios.”

    — Mas os apelos do padre não adiantaram — continuou a Tia Vera, com um suspiro de resignação. — O senhor não tem muito Deus no coração. Se tivesse, nos deixaria plantar uma horta. Nos outros engenhos, eles podem. E a Tassi, pelo menos, ganharia algo para comer.

    — É uma pena o que aconteceu conosco.  — disse Carlos, sua voz carregada de empatia genuína.

    — É, moço. Eu já estou velha demais para sonhar com a liberdade, mas queria que pelo menos meu netinho fosse livre. Por enquanto, tudo o que nos resta é rezar e esperar. E enquanto esperamos, posso te contar sobre todo mundo aqui.

    De repente, um homem aproximou-se silenciosamente.

    — Calma, Tia. Você está tagarelando demais. Aposto que ele está cansado depois do trabalho. O primeiro dia é sempre o pior.

    Carlos virou-se e viu um homem alto e esguio. Seus olhos eram de um azul surpreendente, uma raridade em um rosto negro. Ele segurava um pequeno pote de argila com cuidado.

    — Prazer, Carlos. Estava ouvindo a conversa… ou melhor, a tagarelice da Tia. Me chamo Pedro.

    Carlos, que já havia limpo a tigela, sorriu com cansada gratidão.

    — Que nada, estou adorando ouvi-la. Meu dia foi horrível. Estou num lugar desconhecido, trabalhando como um animal. É bom encontrar alguém que ainda consiga sorrir, mesmo que seja só um pouco.

    A Tia Vera pareceu comovida, mas se levantou.

    — Obrigada, moço, mas o Pedro tem razão, falei demais. Já está tarde para mim, e tenho que acordar antes do galo cantar para fazer o café do patrão. Boa noite.

    Antes de ir, ela se inclinou para o ouvido de Carlos, seu sussurro quente e conspiratório:

    — Vou deixar os cajus onde você vai dormir. Sei onde todos dormem, então vou deixar num lugar vazio. E não se preocupe, ninguém vai roubar. Aqui, temos honra.

    Eles se despediram, e Carlos a observou enquanto ela se afastava. Para sua surpresa, ela não foi para um cômodo separado. Em vez disso, dirigiu-se a uma fileira de montes de palha espalhados pelo chão de terra – os “colchões” da senzala. Ele a viu pegar uma fruta de um montante específico e levá-lo para outra “cama” antes de se deitar em sua própria pilha de palha.

    “Pelo visto, todo mundo dorme junto. Zero privacidade. E ela colocou o caju… bem perto do buraco do ‘banheiro’. Agora entendo por que aquele canto está vazio.”

    Percebendo que Carlos estava perdido em seus pensamentos, Pedro falou novamente.

    — Consegui uma pomada com o padre para as chicotadas. Já tratei todo mundo e estava esperando você terminar de comer.

    — Obrigado — disse Carlos, com genuíno alívio. — Trabalhar com as costas assim foi um inferno, ainda mais sob aquele sol.

    Pedro abriu o pote de argila. Dentro, havia uma gosma espessa, de cor azulada com manchas esverdeadas.

    — Vire-se. Vou passar isso.

    Carlos obedeceu. A pomada ardia ao toque, mas a sensação era um alívio bem-vindo comparada à dor latejante das feridas.

    “Ainda há pessoas boas aqui. Amanhã, preciso encontrar a Tassi e agradecê-la. E me pergunto o que é essa gosma… Tomara que funcione. Os remédios desta época não são famosos por sua eficácia.”

    A aplicação não demorou.

    — Pronto.

    — Pode me passar um pouco para a cabeça? — pediu Carlos. — O capitão do mato me acertou com alguma coisa. E tenho umas queimaduras nos braços.

    — Pelo visto, foi uma briga feia para te capturar. Tome. — Pedro entregou o pote, e Carlos aplicou a substância em seu couro cabeludo e braços antes de devolvê-lo.

    — Sabe, eu adoraria conversar mais — disse Pedro, cobrindo o pote —, mas estou morto de cansaço. Também trabalho na casa-grande e o dia começa cedo. Boa noite.

    Carlos retribuiu o desejo e se dirigiu ao seu canto designado – um amontoado de palha perto do buraco fedorento. Sentou-se e começou a comer o caju, sua doçura ácida um contraste celestial com a refeição insossa. Enquanto comia, sua mente trabalhava.

    “Primeiro, preciso inventar uma história para o celular e as roupas. Depois, preciso encontrar uma maneira de escapar. A segurança está apertada agora, mas… não posso viver assim. Prefiro morrer tentando.”

    Enquanto planejava, a exaustão finalmente o venceu, e ele adormeceu no chão duro, o sabor do caju ainda em sua língua.

    ───────◇───────◇───────

    O amanhecer não trouxe alívio, apenas dor. Cada músculo do corpo de Carlos protestava quando ele abriu os olhos.

    “Parece que dormi sobre pedras!” Ele bateu levemente no chão coberto de palha. “É, é literalmente duro como pedra. E essa palha coça horrores!”

    “Espere…” Ele tentou se mover e percebeu algo. “Minhas costas… não doem como ontem. Meus braços também não.”

    Levantando a mão, tocou as costas com cuidado. Em vez de carne viva e sangrenta, suas pontas dos dedos encontraram apenas crostas secas sobre a pele.

    “Nossa, as feridas já cicatrizaram tanto? Só minha perna ainda está ruim. Será que foi aquela pomada estranha? Preciso perguntar ao Pedro sobre ela mais tarde.”

    Ao tentar se levantar para o café da manhã, uma pontada aguda na perna direita quase o fez cair.

    “Que droga! Minha perna está horrível.”

    Em pé, ele examinou o ferimento. Havia uma laceração feia e inflamada, exatamente onde o chicote de Jairo o havia atingido.

    “Não lembro dela estar tão ruim ontem. Como piorou tanto durante a noite? Preciso daquela pomada milagrosa de novo.”

    Ele olhou em volta, mas Pedro não estava visível. Teria que esperar.

    Aos poucos, a senzala foi despertando. O “café da manhã” era uma repetição deprimente da janta: feijão e farinha. Mal haviam terminado quando o portão rangiu e foi aberto. Um capataz entrou, sua silhueta bloqueando a luz da manhã.

    — Hora de trabalhar! Nada de preguiça! — sua voz ecoou no barracão.

    Carlos reconheceu a voz e o rosto imediatamente. Era Jairo. Um calafrio percorreu sua espinha, mas ele se levantou, preparando-se para seguir o rebanho. No entanto, quando deu seu primeiro passo mancando para fora da senzala, o capataz estendeu um dedo ossudo em sua direção.

    — Você! Preto! Venha aqui!

    Carlos parou, seu coração batendo forte.

    — Qual é o seu nome? — perguntou Jairo, com um sorriso cruel. — Preciso saber, com tantos pretos por aqui. Se eu só gritar ‘preto’, ninguém sabe de quem estou falando.

    —… Carlos.

    — Então, Carlos — disse Jairo, aproximando-se até que seu hálito azedo atingiu o rosto de Carlos. — O patrão quer te ver. Conversei sobre você ontem, e ele está… curioso para ouvir sua história. Vamos ver se você mente para ele como mentiu para mim. Agora, vem comigo. E não faça nada estúpido.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota