Capítulo 48 - Vitória
O ar no Quilombo da Jabuticaba ainda carregava um cheio residual de fumaça e pólvora, mas agora era sobreposto pelo aroma tentador de carne assando e pelo fermentado adocicado da cachaça que começava a circular. Um dia após a batalha, uma energia de euforia aliviada tomava conta de todos os mocambos, transformando-se em festa. Cantorias, batucadas e risadas ecoavam por toda parte.
Todos, exceto no Mocambo do Tatu.
Lá, a agitação era de um tipo diferente. Diante do salão de festas, uma multidão de pessoas conversava animadamente, seus estômagos roncando em uníssono. O cheiro de mandioca cozida e de um ensopado que ainda não estava pronto torturava seus sentidos. Carlos havia pedido que esperassem, argumentando que os caçadores trariam mais caça e que as bebidas compradas dos mercadores ainda estavam sendo distribuídas. A recompensa pela paciência, ele prometera, seria uma festa muito mais farta do que a dos outros mocambos.
Finalmente, Carlos subiu lentamente em um palanque de madeira improvisado. Suas mãos estavam frias e suadas, e ele as esfregou discretamente nas calças antes de se firmar.
— Boa tarde a todos! — sua voz saiu um pouco mais fraca do que gostaria. Ele pigarreou. — Sei que estão ansiosos para começar a festa, e eu também estou. Mas, antes, gostaria de me apresentar direito. Muitos aqui ainda não me conhecem. Sou Carlos de Nogueira, o chefe deste mocambo.
Ele fez uma pausa, respirando fundo. Os olhos de centenas de pessoas estavam fixos nele.
— Como todos já sabem, fomos atacados por uma força de quase dois mil homens. E, contra todas as expectativas, conquistamos uma vitória decisiva! — Sua voz ganhou força com a palavra “vitória”. — E essa vitória… essa vitória foi conquistada principalmente por nós, do Mocambo do Tatu!
Um murmúrio de orgulho percorreu a multidão. Alguns gritaram e ergueram os punhos.
— Quase todas as armas que nossos guerreiros usaram foram feitas por nossas mãos! — Carlos continuou, gesticulando para as oficinas ao fundo. — A pólvora que abriu caminho foi fabricada aqui! E as roupas e tecidos que produzimos foram o que deram o dinheiro para comprarmos o ferro necessário! Foi um esforço de todos! Do ferreiro ao tecelão, da costureira ao agricultor que manteve nossos guerreiros alimentados! E como prometi, todos serão recompensados!
O murmúrio se transformou em um burburinho excitado.
— Com o lucro que tivemos, vamos começar a pagar um salário! Cem réis por mês para todo trabalhador das oficinas e fábricas!
Aplausos e exclamações de surpresa surgiram, mas Carlos ergueu a mão.
— Sei que não é uma fortuna! E infelizmente, ainda não podemos estender isso aos trabalhadores do campo. Mas é um começo! É a nossa semente! E muitos devem estar pensando: “de que adianta esse dinheiro se não há nada para comprar?” Pois bem, a partir de agora, haverá!
— Em primeiro lugar, o restaurante! — anunciou Carlos. — Sei que todos se acostumaram a comer lá de graça, mas alguns espertinhos, que não dão um dia de trabalho nas nossas fábricas, vinham mais cedo e abocanhavam a melhor parte, deixando os verdadeiros trabalhadores com as migalhas. Isso acaba hoje! O restaurante agora será subsidiado, oferecendo uma refeição de qualidade por um preço simbólico, acessível a todos que recebem seu salário!
Palmas dispersas ecoaram, principalmente daqueles que haviam sido prejudicados pelos tais “espertinhos”.
— Em segundo lugar… — Carlos fez uma pausa dramática enquanto Nia subia ao palco, usando uma saia colorida e uma blusa vibrante. — …as roupas que produzimos! Elas não são só para vender lá fora! Estarão disponíveis para vocês, aqui mesmo!
Ele fez um sinal, e Pedro subiu ao palco. Vestia uma calça de sarja preta e uma camisa de algodão branco, impecável, a roupa de um trabalhador urbano próspero.
Tassi apareceu em seguida, usando um vestido inspirado nas guerreiras de sua terra, com listras verticais brancas e azuis que destacavam sua silhueta, firmemente cinturado. Por fim, Quixotina subiu, um tanto hesitante, usando um vestido longo azul-claro, com delicados babados na barra. Um suspiro coletivo, especialmente das mulheres, percorreu a plateia. Os olhares eram de admiração pura, misturada com a inveja nua e crua das que trabalhavam no campo, sabendo que aquilo estava temporariamente fora de seu alcance.
— Roupas de altíssima qualidade! — Carlos prosseguiu, aproveitando o impacto. — E vocês não precisam pagar tudo de uma vez. Podem parcelar! Pagam uma parte agora e o resto nos próximos meses!
— Em terceiro, as moradias! — ele anunciou, antes que a euforia pelas roupas diminuísse. — Estamos começando a construir casas de alvenaria, com tijolos e cimento. Serão mais próximas do trabalho, mais resistentes às chuvas, mais frescas no verão. O mocambo irá alugá-las por um preço justo, ou… — ele enfatizou a palavra, — …vocês poderão comprá-las, também parcelado!
Desta vez, a multidão ficou em silêncio. A ideia de pagar por uma casa, algo que sempre fora simplesmente construído pela comunidade, era estranha e recebida com ceticismo.
— Quarto benefício! — Carlos rapidamente mudou o foco, sentindo a hesitação. — Um bar! Inauguraremos um bar aqui no mocambo!
Agora sim, os apreciadores de uma boa bebida na plateia comemoraram com gritos e acenos.
— Quinto: doces! Sorvetes! Guloseimas! Lojas especializadas serão abertas! — A menção a itens de luxo tão raros fez os olhos das crianças e de muitos adultos brilharem. — Sexto e último: tudo o que produzimos nas oficinas – mesas, cadeiras, potes, talheres – estará à venda! Não precisarão mais esperar meses na fila por uma cadeira de madeira simples. Se tiverem o dinheiro, poderão ter na hora!
A multidão agora estava dividida entre o entusiasmo pelas novidades e um mal-estar subterrâneo com as novas responsabilidades.
— Se querem usufruir de tudo isso, estamos contratando! Falem com a Aqua amanhã. Ela também será a responsável por pagar os salários de todos! — Carlos concluiu, erguendo os braços. — E com isso… boa festa a todos!
Ele havia instruído algumas pessoas próximas a iniciarem os aplausos, e o plano funcionou. Um grupo começou a bater palmas, e logo toda a multidão se juntou, o som crescendo em um rugido de aprovação e alívio por aquele discurso ter finalmente acabado.
“Ufa,” Carlos pensou, descendo do palco com as pernas ainda trêmulas. “Achei que ia ficar aquele silêncio constrangedor no final.”
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Na manhã seguinte, no Mocambo da Serra, o ar era pesado e formal. Dentro da sala de reuniões, Ganga Zala ocupava a cabeceira de uma grande mesa de jacarandá, girando um copo de vinho tinto entre os dedos. O cheiro da bebida e da cera do assoalho preenchia o espaço. Espectro, de pé, relatava os detalhes da batalha para os chefes dos nove mocambos, incluindo Carlos, que se mantinha em silêncio.
— A batalha consumiu quase toda a pólvora que tínhamos estocado — disse Espectro, sua voz clara e impessoal. — Mas os frutos foram imensos. Não sofremos uma única baixa. Do lado inimigo, contamos oitocentos e cinquenta e sete corpos. E capturamos cento e setenta e nove prisioneiros de guerra, dentre eles muitos escravos aceitaram viver conosco sob vigilância, é claro.
Ele fez uma pausa, e um leve tom de satisfação coloriu suas palavras ao continuar.
— Apreendemos dezenas de armas mágicas: espadas, colares, armaduras, escudos… e uma luneta com a gema da visão. Um troféu que nos será muito útil.
Espectro então olhou diretamente para Carlos.
— Esta vitória avassaladora só foi possível graças às armas de fogo fornecidas pelo Mocambo do Tatu. Espero que todos nós possamos, em breve, contar com esse poder.
Foi quando Zala bateu o copo na mesa com força, fazendo o vinho saltar.
— De fato, devemos agradecer a Carlos pela vitória — disse Zala, sua voz um rugido baixo. — Mas também devo cobrá-lo! Você esgotou o ferro de todo o quilombo para alimentar sua produção! E não deixou nada para os outros mocambos!
Carlos manteve a expressão neutra, mas por dentro, um vulcão de indignação entrou em erupção.
“E daí? Metade do meu lucro com os tecidos foi para o quilombo! Para onde foi esse dinheiro? Compraram nada de ferro? Ou você, Zala, embolsou a grana para encher sua adega e deixou os outros mocambos na mão?”
Ele suprimiu os pensamentos com um esforço sobre-humano, fruto de anos lidando com chefes incompetentes em sua vida passada.
— Compreendo, Ganga — respondeu, sua voz calmamente controlada. — Não vou repetir o erro.
Zala tomou um gole lento de vinho, saboreando o momento.
— Espero que não. E além disso, aumente a produção de roupas. O quilombo sempre precisa de mais dinheiro.
O silêncio na mesa era pesado. Os outros chefes trocavam olhares desconfortáveis, sentindo a injustiça, mas nenhum ousava desafiar Zala abertamente.
A raiva de Carlos ferveu, mas ele a canalizou em um plano.
— Já que sou eu quem arcará com todos os custos do ferro daqui para frente — ele começou, sua voz ainda serena, — sugiro que todos os ferreiros dos outros mocambos sejam realocados para o Mocambo do Tatu. Teremos comida e trabalho para todos. E em troca, prometo fornecer qualquer item de ferro que seus mocambos necessitarem, sem custo.
Um burburinho de descontentamento varreu a sala. Era um pedido ousado, que enfraqueceria as outras aldeias. Mas, no contexto da cobrança de Zala, soava quase como uma solução lógica. O chefe Malik quebrou o gelo.
— É justo. Enviarei meus ferreiros para o seu mocambo.
— Farei o mesmo — emendou Fernando, o chefe do mocambo vizinho.
Espectro ponderou por um momento.
— Enviarei metade dos meus. A outra metade precisa ficar para manutenção das armas que já temos.
Um a um, ainda que relutantemente, os outros seis chefes concordaram.
Zala bateu na mesa novamente, encerrando a discussão.
— Então está decidido! Estão dispensados. E Carlos… não erre novamente.
— Sim, Ganga — Carlos respondeu, com uma leve inclinação de cabeça.
Assim que se viu longe da sala, caminhando de volta ao seu mocambo com seus guardas, a máscara de compostura se desfez. Ele rangeu os dentes, sua raiva finalmente transbordando.
“Não acredito! Aquele velho avarento desviou os recursos todos e ainda me culpa! É hora de trazer a guilhotina para este lugar!”
Ele respirou fundo, o ar fresco da mata ajudando a clarear seus pensamentos.
“…Ou seria, se eu fosse impulsivo. Não, no momento, não preciso me preocupar. Com o tempo, a vida no meu mocambo será incomparavelmente melhor. O povo do quilombo inteiro verá qual é o caminho a seguir.”
Enquanto adentrava o Mocambo do Tatu, seu humor melhorou. Ele via uma rua de terra batida sendo aplainada, ladeada por lojas improvisadas de pau-a-pique. A prioridade ainda eram as fábricas e a prefeitura, mas o esboço de um distrito comercial já tomava forma. Com ferro em abundância, poderiam usar vigas para estruturas maiores. As lojas, ainda rústicas, mostravam sua promessa. A loja de roupas exibia seus vestidos e camisas em manequins de madeira esculpidos pela própria Tassi. Mulheres paravam para admirar, algumas entrando para ver de perto. Ao lado, uma loja de ferramentas e outra de móveis já funcionavam. Do outro lado da rua, mesas e cadeiras eram dispostas em frente ao bar, onde o cheiro de cachaça, ainda cara por ser importada, começava a se misturar ao ar.
“Agora só falta um lugar vendendo pastel e caldo de cana…” pensou Carlos, sorrindo para si mesmo. “Tudo a seu tempo.”
No fim da rua, o esqueleto da nova prefeitura crescia. Os trabalhadores, agora motivados pelo salário, moviam-se com um propósito renovado. Carlos se aproximou para inspecionar. Um jovem de origem indígena, Renato, assentava tijolos com uma concentração feroz.
— Boa tarde, Guaíra. Como vão as coisas?
O jovem ergueu os olhos, surpreso, e levantou-se rapidamente.
— Boa tarde, chefe! Vão bem, sim. Aprendendo a lidar com o cimento. Sua casa foi um bom treino, mas esta prefeitura… é bem maior. Aos poucos a gente vai pegando o jeito.
— Ótimo. Qualquer dúvida, é só me chamar.
Saindo dali, Carlos dirigiu-se aos campos de algodão nos arredores do mocambo, onde Tassi conduzia seus experimentos. Ele a encontrou colhendo amostras de pés de algodão que vergavam sob o peso das fibras brancas e fofas. Ela ditava observações para um assistente que anotava em uma prancheta.
— Pelo visto, o adubo fez diferença — comentou Carlos, aproximando-se.
Tassi olhou para ele com relutância.
— Infelizmente… sim. A mistura de esterco com minha magia produziu resultados melhores. Não era o que eu esperava.
— Bem, o que as plantas gostam nem sempre é agradável para nós — ele disse com um sorriso. — Agora que sabemos, podemos pensar em otimizar ainda mais a produção, liberando mais mão de obra para as fábricas.
— Você realmente quer colocar todo mundo nessas suas fábricas, não é? — ela questionou, erguendo uma sobrancelha. — E qual será minha função, então, como sua ‘ministra’?
Carlos esfregou uma folha de algodão entre os dedos, observando como as fibras se desprendiam com facilidade. O cheiro da vegetação fresca enchia o ar ao redor dos campos experimentais.
— Que bom que está me entendendo — disse ele, virando-se para Tassi. — Agora quero ver se conseguimos ir além. O que aconteceria se combinássemos o adubo orgânico apenas com o poder da sua gema da grama? Será que conseguiríamos produzir um algodão com fibras mais resistentes, que não se esfarelassem ao primeiro uso? Ou quiçá desenvolver variedades de plantas comestíveis que mantivessem seu valor nutricional mesmo após o processo mágico?
Tassi apertou o cabo de seu cajado, seus dedos ficando brancos de tanto pressionar. Seus olhos estreitaram, e quando falou, sua voz tinha um tom cortante que Carlos nunca tinha ouvido antes.
— Então é isso? Depois de tudo que fiz por este mocambo, agora quer me substituir? — Ela gesticulou com o cajado em direção às plantações exuberantes ao redor. — Esse algodão que sustenta suas fábricas, os legumes que alimentam seu povo – tudo cresce porque eu canalizo a energia da terra através dessas gemas. Acha que pode dispensar meus serviços?
Carlos não respondeu imediatamente. Ele pegou um punhado de terra, deixando que a textura arenosa escorresse entre seus dedos antes de olhar nos olhos dela.
— Ha ha ha! — sua risada soou genuína, não provocadora. — Tassi, por favor. Substituir você? Isso seria como tentar substituir o sol por uma vela. — Ele se aproximou, sua voz baixando para um tom mais sério. — O que eu quero é justamente o oposto: quero tirar esse fardo dos seus ombros. Você passa dias a fio curvada sobre essas plantações, drenando sua energia para alimentar centenas de pessoas. E se descobrirmos como replicar parte desse efeito – nem que seja um décimo do que você faz – para que outros mocambos possam produzir sua própria comida em abundância?
Tassi manteve sua expressão fechada, mas Carlos notou que sua postura relaxou levemente. Ele continuou, gesticulando em direção às fábricas ao fundo.
— No momento, dependemos completamente do seu cajado e da sua habilidade única. Mas imagine se pudéssemos libertar você desse trabalho exaustivo. Há tantas outras áreas onde seu conhecimento seria inestimável – na medicina, na logística, ou até mesmo na defesa do quilombo, se você assim desejasse. Você é muito mais do que uma simples agricultora mágica, Tassi.
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo zumbido de insetos entre as plantas. Tassi olhou para suas mãos calejadas, depois para o cajado ornamentado, e finalmente para o horizonte, onde as novas construções do mocambo começavam a tomar forma. Quando ela finalmente falou, sua voz tinha perdido a aspereza, mas mantinha uma certa resistência orgulhosa.
— Acho… que entendi o que você está propondo — ela disse lentamente, como se estivesse saboreando cada palavra. — Talvez tenha me apressado em julgar. — Seus olhos encontraram os de Carlos, e um brilho teimoso acendeu neles. — Vou começar esses experimentos ainda hoje. Mas deixe uma coisa bem clara: mesmo que você consiga replicar um milésimo do meu trabalho, saiba que sou verdadeiramente insubstituível. Há segredos nestas terras que só as minhas gemas e eu podemos desvendar.
Um sorriso genuíno iluminou o rosto de Carlos.
— Que bom que você está animada! E não se preocupe — ele respondeu, com um tom de respeito genuíno em sua voz —, eu nunca duvidei por um segundo que você é única. É exatamente por isso que preciso de você para coisas mais importantes do que apenas fazer plantas crescerem. Tomara que esses experimentos deem certo – para o bem de todo o quilombo.
Deixando os campos, seu caminho o levou até a casa simples de Quixotina. Antes mesmo de abrir a porta, ouviu vozes animadas vindas de dentro. Ele entrou silenciosamente e parou na soleira, observando a cena.
Quixotina estava no centro da sala, cercada por um grupo de crianças hipnotizadas. Um livro aberto repousava em seu colo, mas ela não estava lendo; estava performando.
— “Me salve, meu cavaleiro!” — ela gritou, com uma voz aguda e cheia de desespero, suas mãos tremendo perto do rosto.
Imediatamente, ela se ergueu, inflando o peito, sua voz descendo para um tom grave e heroico. — “Não tema, minha nobre dama!”
Então, curvou-se para frente, seus dedos se contorcendo como garras, e sussurrou com uma voz sibilante e maléfica: — “Se quiser levá-la, terá que passar por mim, seu verme insolente!”
Carlos ficou maravilhado. “Então é assim que ela as controla,” ele pensou, um sorriso se formando em seus lábios. “Ela não apenas conta a história; ela a vive. Até eu quero saber o que acontece a seguir.”
E foi exatamente o que ele fez. Permaneceu ali, encostado na porta, até o final da história, surpreso ao descobrir que uma narrativa de cavaleiros e dragões podia ser tão cativante. Talvez não fosse a história em si, mas a paixão contagiante com que era contada.
Quando a última criança saiu, ainda comentando animadamente sobre a batalha final, Carlos aplaudiu levemente.
— Você é uma contadora de histórias fantástica. E acho que seria uma professora maravilhosa.
Quixotina fechou o livro e o guardou em um baú sob sua cama, um pouco corada.
— Eu? Não sei… Meu tio, sim, ele era um professor nato. E contava histórias muito melhor do que eu.
— Agora fiquei curioso para conhecer esse seu tio — disse Carlos.
Ela serviu-se de um copo de água de um jarro de argila, sua voz um pouco rouca do esforço.
— Olha, se eu pudesse, traria ele para cá num piscar de olhos. Mas nem imagino onde ele esteja. Duvido que tenha aguentado a vida pacata com meus pais.
— Já que ele não está aqui — Carlos encostou-se na porta, cruzando os braços —, que tal você assumir o posto? Quero abrir uma escola. Para todos. A prefeitura está a caminho, e com ela, projetos como um censo. A Aqua precisa de ajuda com os registros, a Tassi, com as anotações… Precisamos copiar livros. Precisamos de gente que saiba ler e escrever, e isso é uma raridade não só aqui, mas no mundo.
O efeito foi instantâneo. Quixotina engasgou, sufocada pela surpresa e pela água que tentou descer pelo lugar errado. Um jato de líquido saiu de seus lábios e ela tossiu repetidamente, o rosto ficando rubro de esforço enquanto batia no próprio peito com a mão fechada. Os olhos lacrimejavam, mas não apenas por causa do engasgo. Eram olhos de incredulidade.
— Espera… cof… um momento! — ela conseguiu falar entre um acesso de tosse e outro, limpando a boca com as costas da mão. — Está falando sério? Você… você quer que eu ensine? Mas, Carlos, olha para onde estamos! — Ela gesticulou em direção à porta, para o mocambo simples e laborioso que se estendia lá fora. — Aqui não existem salões de etiqueta, nem jovens damas para aprender harpa ou latim. Não há… nobres. Quem eu iria ensinar? E o que, pelos céus? A arte da cavalaria já morreu, e o resto… o resto eu mal me lembro.
Carlos não se abalou com o ceticismo dela. Seus olhos brilhavam com uma convicção que parecia iluminar o cômodo simples. Ele se adiantou, puxando um banco de madeira para se sentar de frente para ela, seus joelhos quase tocando os dela.
— Mas é claro que estou falando sério — disse ele, e sua voz era tão sólida e real quanto a terra sob seus pés. — E não é sobre recriar um salão nobre. É sobre construir algo novo. Algo que este lugar nunca viu. — Ele fez uma pausa, deixando as palavras ecoarem. — Vou abrir uma escola, Quixotina. Uma escola para todos. Para o filho do ferreiro, para a menina que ajuda no campo, para o guerreiro que quer entender um mapa. Uma escola do povo. Nesta escola não só crianças como adultos poderão ensinar a ler e escrever, matemática básica, biologia, geografia. Tudo isso você já sabe.
Ele inclinou-se para a frente, sua expressão era de urgência e admiração.
— E para fazer tudo isso, para construir este futuro que mal conseguimos vislumbrar, eu preciso do maior tesouro que um povo pode ter: mentes que possam ler, escrever e pensar. E isso… — sua voz ficou grave — …isso é mais raro do que gemas mágicas neste quilombo. Não, é raro neste mundo inteiro. E você, Quixotina, carrega esse tesouro dentro de si. Não a etiqueta da nobreza, mas a chave que desbloqueia todo o resto.
Quixotina não respondeu imediatamente. Ela parecia ter sido atingida em cheio por uma verdade maior do que ela. Lentamente, ela se levantou e foi até a mesa. Seus dedos, que antes brandiam uma espada imaginária, agora cerraram o copo de argila com uma solenidade repentina. Ela o levou aos lábios e bebeu o resto da água num gole longo e contínuo, como se estivesse selando um juramento.
Ao baixar o copo, seu rosto estava transformado. A incerteza e a melancolia haviam se dissipado, substituídas por uma centelha de propósito que iluminava seus olhos de um modo que Carlos nunca tinha visto. Ela não estava mais olhando para o passado, mas para um futuro que ele havia pintado para ela.
— Está bem — ela disse, e sua voz, antes rouca, agora era clara e firme como o tilintar de metal. — Eu aceito. Quero que muitas crianças também possam se perder nos livros como eu, e quem sabe poderem sonhar.

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