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    O mês não poderia ter sido pior para Jorginho. O homem branco, baixinho e magricela, fora arrastado para a força expedicionária do governador com a promessa de dinheiro fácil. Em vez de riquezas, encontrou o inferno na terra. O cheiro de queimado, de carne carbonizada e pólvora, ainda parecia impregnado em suas roupas e em suas narinas, um fantasma sensorial da derrota avassaladora.

    Ele fora encontrado horas após a batalha, escondido dentro de um casulo de gelo que criara em desespero, usando um velho escudo encrustado com uma gema de gelo. O calor das chamas ao redor e o frio mortal de seu refúgio criaram uma névoa fantasmagórica. Dentro do casulo, o medo foi tão absoluto que ele perdeu o controle de suas próprias funções, embora jurasse a qualquer um que perguntasse que se molhara ao tentar, em vão, usar um cajado de água para apagar o fogo da floresta.

    Agora, era um prisioneiro. Sua sentença: trabalhar por dois meses no quilombo antes de ser libertado. Confinado a uma área específica, vigiado como um animal, ele terminava seu almoço insosso – um ensopado de mandioca com um naco de carne seca – sentado num banco de madeira, esperando o momento de voltar à labuta no campo. O sabor da comida era o menor de seus problemas.

    “Eu sabia… eu sabia que essa ideia era uma loucura,” pensou, o desespero um nó na garganta. “Mas a Fernanda insistiu. ‘Precisamos do dinheiro, Jorginho! Para a Carla, para o futuro dela!’ E eu, como um idiota, acreditei. Agora estou aqui, cativo, e elas lá, sozinhas… Tomara que estejam vivas quando eu voltar. Se eu fosse um homem rico, bastaria mandar um boi como pagamento do resgate e eu estaria livre. Mas quem se importa com um pobre diabo como eu?”

    Seus pensamentos sombrios foram interrompidos pela aproximação de um guarda. Era um homem alto, de expressão dura, vestindo uma túnica simples mas carregando uma lança com autoridade. Um colar com uma gema branca brilhava levemente em seu peito. Ele parou diante de Jorginho, seu olhar carregado de desdém.

    — Jorginho. Sorte a sua hoje. Acabou-se o serviço no campo.

    Antes que o prisioneiro pudesse processar a informação, a ponta da lança do guarda se aproximou de seu pescoço, o metal frio tocando sua pele e fazendo-o estremecer.

    — Só espero que não tenha ideia de fazer nenhuma besteira — o guarda rosnou, sua voz um aviso claro.

    Jorginho largou a tigela de madeira, que caiu no chão com um baque surdo. Suas mãos voaram para o alto, tremendo visivelmente.

    — Não, senhor! Juro! Não farei nada!

    O guarda não acrescentou mais nada. Apenas deu meia-volta e começou a andar. Jorginho, com o coração batendo forte contra as costelas, entendeu a mensagem e seguiu-o, mantendo uma distância respeitosa. Caminharam em silêncio pelas vielas do quilombo, até chegarem a uma rua mais movimentada no Mocambo do Tatu. O som de vozes, risos e o trabalho de construção criava um burburinho que contrastava com o silêncio opressivo dos campos. Lá, parado em frente a um pequeno estabelecimento com uma placa tosca de “Sorveteria”, estava um adolescente negro de ar despreocupado.

    O jovem avaliou Jorginho de cima a baixo, um sorriso irônico nos lábios.

    — Então esse é o meu substituto temporário? — disse ele, dirigindo-se ao guarda. — Quando me disseram que era um dos que nos atacaram, até fiquei com medo. Mas olhando assim… parece que um vento mais forte leva.

    “Quem esse moleque pensa que é?” Jorginho fervilhou internamente. “Posso não ter feito nada na batalha, mas foi só porque fui pego de surpresa! Foi minha primeira vez!”

    Ele, no entanto, manteve os olhos baixos e a boca fechada. O guarda respondeu por ele, com um grunhido de desprezo.

    — Humf. E mesmo assim, teve a coragem de vir nos atacar. Na minha opinião, era pra acabar com a raça desses trastes. Em vez disso, a gente pune por um tempo e depois joga fora, como lixo. E pior, o Espectro insiste em dar chance, deixa eles se juntarem a nós se se comportarem. Até entendo com um escravo, que foi obrigado a pegar em armas… mas um branco, que veio porque quis?

    “Porque quis? Ninguém me deu escolha! Se eu não fizesse isso minha família morreria de fome” Jorginho quis gritar, mas engoliu a própria língua.

    Bentinho, no entanto, parecia imune à raiva do guarda.

    — Tá certo, tá certo — disse o jovem, com um aceno despreocupado. — Mas olha a cara dele. Não machucaria uma mosca. E o melhor: o Chefe Carlos é mais bonzinho ainda que o Espectro. Vai pagar um salário para ele trabalhar aqui.

    A informação atingiu Jorginho como um choque. “Um salário? Eu vou… receber? Não vou ser só mais um par de braços forçados?”

    O guarda balançou a cabeça, incrédulo.

    — O chefe de vocês é maluco, sim. Mas fazer o quê. Cumpri minha parte. Só não tira o olho dele, entendeu? Ele não pode sair daqui. Vão ter que trazer a comida dele. — Ele então se virou e apontou a lança mais uma vez para Jorginho. — E você, nem pense em fazer arte. Obedece o Bentinho em tudo. E saiba que está aqui só porque é fraco e mexe com gemas de gelo e ferro. Não é por mérito nenhum.

    Jorginho balançou a cabeça com vigor, seus olhos bem abertos. Finalmente, o guarda se afastou, misturando-se à multidão. Bentinho deu um sorriso e acenou para Jorginho entrar na sorveteria.

    — Então, qual é o seu nome? — perguntou o jovem, o ambiente interno fresco e cheirando levemente a leite e frutas.

    — Pode me chamar de Jorginho — respondeu o homem, ainda tremendo.

    Bentinho soltou uma risada.

    — Prazer. Pode me chamar de Bentinho. No fim, pra que servem os nomes de batismo se ninguém os usa, não é?

    Jorginho apenas assentiu, silencioso. Bentinho estudou-o por um momento.

    — Pelo visto não é muito de falar. Tudo bem, vou explicar. Você manja gemas de gelo e ferro, certo? Aqui no quilombo, a gente usa esse talento para uma coisa muito importante… fazer sorvete.

    Jorginho pestanejou, incrédulo.

    — Mas — Bentinho continuou, seu tom ficando sério — nem pense em ser esperto e cuspir ou fazer qualquer nojeira no sorvete por raiva. Sempre vai ter alguém de olho em você. Por enquanto, sou eu. Enfim, primeiro vou te ensinar a usar o liquidificador e a usar a gema do gelo para fazer sorvete e picolé. É fácil, não se preocupe.

    A tarde inteira foi gasta nessa instrução peculiar. Jorginho, em silêncio obsequioso, aprendeu a operar o mecanismo simples e a canalizar um frio controlado através da gema para conectar a mistura cremosa. Ele trabalhava nos fundos, enquanto uma jovem atendia os clientes na frente. Em certos momentos, pessoas chegavam com potes de argila vazios, que ele enchia com sua magia do gelo antes de serem levados embora. A curiosidade coçava, mas o medo falava mais alto, e ele permanecia calado.

    Era semana de pagamento, e a sorveteria ficou movimentada. Bentinho teve que ajudar no atendimento, mas, para sorte de Jorginho, Nia não o chamou para outros serviços. Quando o fluxo de clientes finalmente arrefeceu, o prisioneiro encontrou coragem para quebrar o silêncio.

    — Moço… me desculpe por ter ficado quieto o dia todo — ele começou, sua voz um fio. — É que… não esperava ser tratado assim. Tão… normal.

    Bentinho deu de ombros, limpando o balcão com um pano.

    — Eu te trato bem porque você vai me tirar esse serviço das costas — ele admitiu com franqueza. — E também porque eu nasci aqui. Nunca fui escravo, então não guardo esse ódio que alguns carregam. E olhando para você… realmente, não parece capaz de machucar ninguém.

    O que Bentinho não disse era que o quilombo já abrigava uma mulher branca, a Cavaleira Quixotina, considerada excêntrica, mas respeitada por todos. Sua presença havia, de certa forma, quebrado barreiras e atenuado preconceitos que ainda fervilhavam em outros mocambos.

    Ouvindo aquilo, um fio de alívio percorreu Jorginho. Sentindo que o jovem não representava uma ameaça, ele fez a pergunta que queimava em sua mente.

    — E… quanto é o salário?

    Bentinho riu de novo, o som era descontraído e fácil.

    — Duzentos réis. Para quem é de fora, deve parecer mixaria, mas aqui a gente vive bem com isso.

    “Duzentos réis…” O número ecoou na mente de Jorginho como uma sentença. “É quase nada. Estava sonhando em juntar um dinheiro para levar para a Fernanda e a Carla… Que tolo eu fui.”

    No dia seguinte, Jorginho retornou à sorveteria, mas agora era o responsável principal pela produção. A jovem do atendimento, Nala, ficaria de olho nele. Como medida de segurança, deram a Nala um anel simples com uma pequena gema de fogo. Felizmente Jorginho não era do tipo que causava problemas.

    Ao longo de uma semana trabalhando silenciosamente e ajudando ocasionalmente no atendimento quando a loja enchia. Até que um dia, menos atordoado pelo medo, pôde observar melhor seu entorno. A rua era limpa, arborizada, e levava a uma construção que usava um novo material – o “cimento”. As pessoas andavam com um propósito que ele nunca vira na sua cidade, onde os olhares eram vazios e as ruas, esburacadas. A coragem voltou a falar mais alto.

    — Sabe — ele disse para Nala, enquanto preparava uma fornada de picolés de jabuticaba —, eu não esperava que um quilombo fosse… assim. Tão organizado. Bonito, até. Essas ruas, as árvores… e as pessoas, parece que têm vida. Na cidade onde eu morava… era tudo morto. Eu era um dos mortos.

    Nala olhou para ele, surpresa com o fluxo de palavras. Então, seu rosto se iluminou com orgulho.

    — Isso aqui nem era assim até uns meses atrás — ela explicou, apoiando-se no balcão. — Tudo isso é novo, foi o nosso novo chefe que mandou fazer. Antes a gente trabalhava só pelo quilombo, e pronto. Agora a gente ainda trabalha por todos, mas também trabalha pra si mesmo. Tem gente que não gosta, mas eu gosto… — ela encolheu os ombros.

    Jorginho observava os clientes. Roupas novas, rostos animados, o movimento constante de uma comunidade vibrante. Ele, que fora um comerciante falido, conseguia ver a prosperidade pulsando naquele lugar. Então, a fala de Nala o atingiu.

    — Alguns meses? — ele repetiu, incrédulo. — Fizeram tudo isso em alguns meses? Mas isso… é impressionante.

    Nala se virou para ele, e por um instante, seu olhar foi de pura admiração.

    — E dizem que vai mudar muito mais, porque o chefe é—

    Ela cortou a frase no meio, e seus olhos se estreitaram levemente.

    — Quase me esqueci — disse ela, sua voz um pouco mais fria. — Você veio de fora. Sua pele já entrega. Melhor eu não falar demais. Enfim, cuida da loja. Vou buscar nossa marmita no restaurante. Ah, e vou descontar do seu salário, hein? Um réis por refeição.

    Ela saiu, deixando Jorginho sozinho com seus pensamentos. “Queria saber mais sobre esse chefe… Espera. Um réis por refeição? Isso é praticamente de graça! Com o que eu ganhasse, minha família não passaria fome! Se eu pudesse trazê-las para cá…”

    A ideia brotou como uma erva daninha, e ele a arrancou imediatamente. “Não, que absurdo! Trazer minha família para viver entre… entre…”

    O pensamento morreu quando a imagem de sua filha, Carla, invadiu sua mente. Ele se lembrou dela, anos atrás, brincando descalça na beira do rio com crianças negras, suas risadas ecoando iguais, sem um pingo da distinção que agora ele tentava forçar. O “absurdo” não era delas; era dele. Uma onda de vergonha e confusão o lavou.

    Foi então que a próxima cliente apareceu, e qualquer resquício de seu preconceito desmoronou.

    Era uma mulher branca, loira, de olhos da cor de rubi, usando um vestido azul-claro, elegante e cheio de babados. Na sua mão, segurava a mão de uma menina pequena. Ao ver Jorginho atrás do balcão, ela piscou, surpresa, mas logo recuperou a compostura com um sorriso gentil.

    — Bom dia. A Nala não está? — ela perguntou, sua voz era suave. — Não importa. O senhor poderia me dar um sorvete de mangaba e um de jabuticaba, por favor?

    Jorginho, atordoado, apenas acenou e se virou para pegar os potes de argila onde o sorvete era mantido gelado pela magia. Suas mãos tremiam levemente. Ele serviu as porções em tigelas de argila – ainda não tinham inventado as casquinhas – e as entregou.

    — Aqui está, senhora — ele disse, e antes que pudesse conter-se, a pergunta saiu: — Se não for muita intromissão… como… como é viver aqui?

    A mulher pegou as tigelas, entregou uma à filha e deu uma colherada no seu próprio sorvete antes de responder. Seus olhos se encontraram com os de Jorginho, e não havia medo ou hesitação neles, apenas uma serenidade feliz.

    — Ultimamente — ela disse, com um sorriso que chegava aos olhos — está sendo maravilhoso.

    Ela se virou e seguiu caminho, a filha saltitando ao seu lado, ambas saboreando os sorvetes. Jorginho ficou paralisado, observando-as desaparecerem na rua movimentada. Aquela cena simples, uma mulher branca e sua filha, livres, felizes e integradas, quebrou as correntes de todas as certezas que ele carregava. Este não era um covil de selvagens. Era um lar. Funcionava. E, de uma forma que ele nunca imaginara possível, funcionava melhor do que o mundo de onde ele viera. O medo antigo começou a se dissolver, substituído por uma centelha perigosa, irresistível e avassaladora: a esperança.

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