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    Carlos voltou para a senzala depois de uma longa tarde de trabalho na casa-grande. O ar quente e pesado do entardecer carregava o cheiro doce e enjoativo da cana queimada, misturado ao odor de terra molhada. No caminho, sob a luz fraca do crepúsculo, avistou a figura conhecida de Tassi. O rosto dela era parcialmente oculto pela máscara de flandres que cobria a boca, e na testa, uma ferida recente formava a marca cruel de um “F”, cicatriz indelével deixada pelo senhor do engenho.

    Se aproximou com passos cautelosos, sentindo o peso da culpa apertar seu peito.

    — Você é a Tassi, não é? Lembro que você tentou me avisar sobre os capitães do mato antes de eu ser capturado, mas não dei ouvidos na hora… — a voz dele saiu em um sussurro carregado de remorso. 

    — Você foi capturada tentando me salvar, e tudo foi culpa minha. Se eu tivesse corrido quando você me avisou, talvez não estivesse nesta situação… Sinto muito. Realmente sinto.

    “Se não tivesse sido tão inútil naquela hora. Tenho que fazer algo por ela. Se conseguir uma arma e matar o velho do engenho, a gente fica livre. Mas isso é um grande ‘e se’…”

    — Vou te compensar de algum jeito, prometo — disse, mais para si mesmo do que para ela.

    Tassi, impossibilitada de falar claramente pela máscara de metal, comunicou-se com os olhos. Seu olhar intenso transmitia uma mensagem que as palavras não podiam carregar. Ela tentou fazer um sinal com as mãos e murmurar algo abafado, mas foi interrompida por um estalo seco e alto, seguido por gritos ásperos que cortaram o ar.

    — Vocês dois, continuem andando se não quiserem levar umas chicotadas bem dadas! — rugiu a voz de Jairo. 

    — Principalmente você, vagabunda! Não vai instigar mais ninguém a fugir, não!

    O barulho súbito fez Carlos estremecer. Ao olhar para trás, seus olhos foram atraídos para o cabo do chicote de Jairo, onde duas gemas brilhavam com uma luz interna sinistra: uma de um verde claro e outra de um verde escuro. Lembrou-se das palavras do padre sobre uma gema que fazia os ferimentos piorarem mais rapidamente, mas não pôde observar por mais tempo. Qualquer hesitação resultaria em dor.

    “Toda hora esse verme nos incomoda. O trabalho já acabou e ele ainda enche o saco. E pior, usa duas gemas mágicas! Me pergunto qual delas é a da podridão e o que a outra faz.”

    Os dois rapidamente adentraram a senzala, e a grande porta de madeira foi fechada atrás deles com um baque surdo que ecoou na escuridão.

    Dentro da senzala, o ar era abafado e carregado de corpos suados, feijão e lenha queimada, além da podridão no fundo da senzala. A visão era de pessoas se servindo nas panelas de feijão, suas silhuetas dançando nas paredes à luz tremula de lamparinas fumacentas. Morto de fome, Carlos nem perdeu tempo; foi direto para a comida. Não comera nada pela manhã, pois fora falar com o padre para conseguir um remédio para tratar sua perna machucada.

    “Se continuar assim, vou acabar virando apenas pele e osso.”

    Estava com tanta fome que devorava a comida avidamente, sem notar a idosa que se aproximava até que uma voz doce, porém cansada, soou:

    — Boa noite!

    Era Tia Vera. Na pressa de cumprimentá-la, Carlos engoliu a comida sem mastigar direito e engasgou-se, tossindo.

    — Calma, menino, pode comer em paz — disse ela, com uma risada suave. 

    — Sei que deve estar morto de fome, afinal pulou o café da manhã. Acho que vou ter que esperar você terminar de mastigar para conversar, porque toda vez que venho falar com você, se engasga.

    Os olhos de Tia Vera se moveram em direção a algo atrás de Carlos.

    — Se uma manhã sem comer te deixa assim, imagina ficar dias sem comer…

    Carlos virou-se lentamente. Na penumbra, um rosto emergiu da escuridão: olhos brilhantes, da cor de esmeralda, e uma boca coberta pela máscara de ferro. A má iluminação da senzala tornava a imagem assustadora, e Carlos sentiu um frio percorrer sua espinha.

    “Meu Deus! Que máscara assustadora. Antes não tinha notado como era assustadora porque estávamos lá fora, e mal dava para ver o rosto dela. Mas aqui dentro, com essa iluminação… Parece uma aparição. E esses olhos… Pelo visto, não estamos num mundo onde as pessoas têm cabelos coloridos, e sim olhos coloridos… Mas a Tia Vera tem razão, não comi nada hoje e estou quase morrendo de fome. Imagina ela, que não come há dias e ainda tem que ficar vendo os outros comerem.”

    Tia Vera notou o susto de Carlos e riu baixinho.

    — Te entendo, Carlos. Essa máscara é bem medonha mesmo. Só não entendo como um homem que se diz de Deus pode forçar outra pessoa a usar algo assim e ainda deixá-la sem comer. Por isso, fiz algo para te ajudar, nem que seja um pouquinho, Tassi.

    Tia Vera fez um sinal para Tassi se aproximar e sussurrou algo em seu ouvido, mas Carlos ainda conseguiu ouvir:

    — Meu netinho conseguiu pegar alguns cajus do cajueiro, e eu espremi alguns para você. Sei que com a máscara não consegue comer, mas ainda dá para tomar alguma coisa, né? Não é muito, mas vai te dar um pouco de energia. Deixei num potinho de argila na sua cama. Mas é melhor tomar antes de dormir; não sabemos quem pode te denunciar para o seu Jorge.

    Tassi pegou as mãos de Tia Vera e as apertou com força, murmurando algo abafado e gutural.

    — Não precisa me agradecer, menina. Mas, deixando isso de lado, você tinha que ter visto o Carlos hoje! Ele pegou dois artefatos do diabo das mãos do ambulante — eram duas pedras lisas e cinzas

     — Ele começou a explicar como funcionavam. Não entendi nada, só que de um lado as pedras se atraíam e de outro se afastavam. Parecia magia! Mesmo usando toda a força, ele não conseguiu juntá-las quando estavam no lado que se repele. É como a igreja disse, devem ser coisas do diabo mesmo! Tomara que essa coisa ruim não tenha jogado uma maldição em nós.

    Tassi, ao ouvir a história, ergueu as sobrancelhas e fitou Carlos.

    “Calma lá, tia, também não usei toda a minha força. Parece até meu avô contando histórias, exagerando tudo. Mas me incomoda o fato de falarem que são artefatos do diabo. São apenas coisas comuns… Pelo menos sei que não sou uma pessoa do diabo apenas por ter a mesma origem dos artefatos.”

    — Não se preocupe, tia. Sei o que estou fazendo e não acho que sejam do diabo. Afinal, existem gemas mágicas que soltam fogo, curam feridas, fazem plantas crescerem… Acho que deve haver outros tipos de magias e forças. Por exemplo, as pedras que peguei hoje, os ímãs, são um exemplo de outra força, a eletromagnética. Só porque não sabemos a origem ou o funcionamento, não quer dizer que sejam ruins.

    — Nossa, você é bem culto — comentou Tia Vera, impressionada.

    — Obrigado. Mas, deixando isso de lado, notei que você não estava aqui na senzala ontem. Você é uma das poucas com quem posso falar, então senti sua falta.

    Tia Vera soltou um suspiro demonstrando seu cansaço.

    — É que ontem fiquei na casa-grande fazendo uma sobremesa para a senhoria e voltei tarde. Eles fecham o portão da senzala, mas abrem para mim entrar. O povo que trabalha no canavial acha que meu trabalho é fácil, mas também sofro: tenho que arrumar tudo, cozinhar, cuidar das crianças e, alguns dias, fico até depois do sol se pôr. Além de ser a primeira a sair para fazer o café do seu Jorge. Só não reclamo muito porque gosto de cozinhar, então há uma parte do trabalho que me agrada, o que não é comum por aqui.

    “Minha mãe trabalhava como diarista. Eu a via sempre cansada, então sei que não é um trabalho fácil. É uma pena não poder fazer nada por ela no momento… Bom, ela disse que gosta de cozinhar…”

    — Vi que foi comprado cacau em pó hoje com o comerciante. Conheço uma receita maravilhosa que leva cacau.

    Carlos descreveu detalhadamente um bolo que adorava, e até Tassi pareceu interessada, aproximando-se para ouvir atentamente.

    — Menino, não acredito que você saiba uma receita com um ingrediente tão caro! Só gente muito rica usa aquilo. Mas, do jeito que você falou, parece delicioso. A dona adora doces, certeza que vai amar, e o filho dela também.

    Tia Vera bocejou, cobrindo a boca com a mão.

    — Agora tenho que ir dormir, porque, como falei, tenho que fazer o café do seu Jorge. Obrigada pela receita.

    “Ela parece mesmo uma mãezona, tentando ajudar todo mundo. Mas notei que pouca gente além de mim fala com ela. Por que será?”

    Carlos olhou ao redor, para as pessoas que ainda comiam ou se preparavam para dormir. Percebeu que muitos desviavam o olhar quando ele os encarava. Um homem, em particular, fitou-o com desconfiança.

    “Ué, por que aquele cara me olhou assim? E por que estão me evitando? Achei que num ambiente desses as pessoas seriam mais unidas. Já não basta todo mundo que não é escravo nos olhar com desdém e nos insultar? Ainda temos que ficar com picuinhas entre nós? Pelo menos a Tassi não me evita.”

    Enquanto se perdia em pensamentos, Pedro aproximou-se deles. Carlos resolveu tirar a dúvida.

    — Deixa eu te fazer uma pergunta. Por que o povo parece estar me evitando? No começo, achei que fosse por ser novato, mas acho que tem mais coisa.

    Pedro suspirou levemente antes de responder.

    — É bem simples. Primeiro, você é novato. Segundo, começou a trabalhar diretamente com o senhor do engenho; eles não gostam de quem trabalha com ele. Ouvi dizer que em outros engenhos os escravos da casa-grande ficam separados para evitar conflitos. O povo daqui normalmente é mais amistoso, mas você chegou junto com a falha da fuga, então os ânimos estão acirrados. Todos procuram um culpado e estão cheios de desesperança.

    — Mas nem todo mundo é assim. Por exemplo, a Tassi, que está do seu lado, sempre falou com todo mundo.

    “E agora não pode falar mais, por causa da máscara que ganhou por minha culpa.”

    — Eles também evitam a Tia Vera. Ficou animada com sua chegada porque agora tem mais uma pessoa para conversar. O povo também não gosta muito de mim; acham que delatei o plano para o senhor.

    “Ah, agora faz sentido. Me perguntava por que só eu falava com uma senhora tão gentil. E por isso também devem evitar o Pedro.”

    Nesse momento, Tassi fitou Pedro intensamente. Carlos notou, mas não comentou.

    “Será que ele é um dedo-duro mesmo? Parece tão gente boa. Embora Tassi não o evite, como todo mundo parece nos evitar. De qualquer forma, é melhor me lembrar disso.”

    Pedro tossiu e continuou:

    — De qualquer forma, a Tia Vera sofre mais. As pessoas acham que ela é amiga da patroa. Meu filho, que é neto dela, às vezes brinca com o filho da patroa. Só não fale isso perto do senhor, que ele fica furioso. Falando nele, tome cuidado: ele é cruel e nos odeia acima de tudo. Às vezes pode te tratar bem, mas saiba que não te vê como pessoa.

    — Eu sei. Quem te tem como escravo não te vê como gente. Nunca senti nada por ele além de ódio. Todos aqui se matam de trabalhar no sol, enquanto ele fica mexendo em bugigangas e ganhando dinheiro às nossas custas. E aposto que a patroa, que é muito ‘amiga’ da Vera, não faz nada para ajudá-la. Só a vê trabalhar como condenada e não move um dedo.

    “Lembro das histórias da minha mãe sobre sua patroa, que se dizia amiga. Minha mãe se matava trabalhando, enquanto essa ‘amiga’, que era apenas dona de casa, não fazia nada, nem cuidava do próprio bebê. Só saía para ioga, aulas de dança e, claro, trair o marido, que também a traía. Típica família de classe média brasileira.”

    A resposta deixou Pedro surpreso.

    — Você é bem radical, mas controle seu ódio. Em qualquer lugar do mundo, existem escravos e servos. Quem manda e quem obedece. Isso nunca vai mudar; sempre foi e sempre será. Por isso, às vezes acho que não adianta lutar. Até o quilombo aqui perto sofre ataques dos portugueses. Um dia será destruído.

    — Talvez você tenha razão. Talvez nunca criemos um mundo sem escravos e senhores. Mas, mesmo supondo que seja impossível acabar com a escravidão, isso significa que devemos ficar parados, quietos, deixando eles nos chicotear? Para mim, mesmo que seja uma luta em vão, ainda vale a pena lutar. E talvez nossa liberdade não esteja tão longe quanto pensam.

    Tassi não pôde deixar de olhar fixamente para Carlos, erguendo as sobrancelhas. Parecia querer dizer algo, mas a máscara a silenciava.

    — Além disso, agora pode parecer que tudo sempre será assim, com senhores de engenho e escravos. No tempo dos faraós, os escravos também achavam que os faraós sempre existiriam, mas eles caíram. Roma parecia eterna, com seus escravos servindo aos senhores, mas Roma caiu. Os escravos não ficaram completamente livres, viraram servos, mas isso mostra que nada é eterno. Até os reis de hoje, que parecem intocáveis e protegidos por Deus, um dia terão seu fim. Assim como os senhores de engenho um dia desaparecerão, serão apenas um parágrafo sombrio nos livros de história. E, com seu fim, a escravidão acabará. Isso não significa que seremos totalmente livres, mas será melhor do que ser escravo.

    Pedro mal sabia quem eram os faraós ou Roma, mas entendeu a mensagem geral, ficando profundamente pensativo.

    Tassi, que apenas ouvira a conversa, não pôde conter a surpresa e, mesmo com a máscara, murmurou baixinho:

    — Você tem razão.

    “Nossa, ela consegue falar com a máscara? Não sabia. Embora soe mais como um gemido. Só entendi porque está quieto aqui; a maioria já foi dormir e quase não há luz.”

    Notando sua surpresa, Pedro explicou:

    — Ela pode falar, mas é muito difícil, pois tem um ferro que vai na boca. Aliás, falei com o padre sobre a máscara, e ele disse que vai tentar convencer o seu Jorge a tirá-la um pouco mais cedo.

    Tassi pareceu feliz com a notícia. Logo depois, levantou-se e acenou para eles, indo para seu canto. Carlos seguiu pouco depois.

    Pedro ficou para trás, sozinho com seus pensamentos, ruminando as palavras que ouvira.

    “Que bom seria… um mundo sem escravidão. Um mundo onde meu filho possa ser livre.”

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