Capítulo 19: Vida
A base do acampamento dos saqueadores era conhecida por ter tudo o que era necessário para a vida cotidiana. Além disso, tinha muita carne. Por causa da proximidade com a região proibida, os saqueadores iam e vinham diariamente, e eles precisavam comer. Carne. Então, havia barracas de vendedores montadas exatamente para esse propósito.
Ao ouvir que Xu Qing queria comer cobra, um sorriso vibrante surgiu no rosto enrugado do Sargento Trovão. Não passou despercebido para ele que Xu Qing se lembrava de seu amor por carne de cobra.
Antes que Xu Qing pudesse sair, o velho bloqueou seu caminho.
“Há muitas pessoas astutas neste acampamento”, disse ele. “E você não está familiarizado com todas as bestas mutantes que vivem na região proibida. É bem provável que acabem te enganando. Eu compro a carne.”
Ao ouvir a palavra ‘enganar’, Xu Qing instintivamente esfregou seu espeto de ferro, pensou por um momento e então disse:
“Ninguém vai me enganar.”
O Sargento Trovão olhou para o espeto, então riu involuntariamente. Sem dizer mais nada, saiu.
Depois que o velho se foi, Xu Qing foi até a cozinha, limpou tudo cuidadosamente e arrumou a mesa. A última coisa que fez foi colocar um terceiro conjunto de utensílios na mesa. Enquanto colocava a tigela e os hashis extras, percebeu algo de repente.
“O terceiro conjunto… é para alguém que nunca virá.” Pensando nessas palavras, ele moveu o terceiro conjunto de utensílios para perto do lugar do Sargento na mesa.
Fez o mesmo com a terceira cadeira.
Depois de terminar, ele olhou para o pátio. O entardecer trouxe um vento frio, que soprava carregando delicados flocos de neve.
Na parte leste da Fênix do Sul, o final do terceiro mês marcava o retorno do calor à terra. As plantas floresciam, e os animais despertavam da hibernação. Mas o inverno raramente cedia sem resistência, utilizando nevascas ocasionais para lembrar a todos que ainda estava presente.
À medida que o crepúsculo se aprofundava, o vento trazia flocos de neve cada vez mais densos para o pátio. Ao caírem do céu para o mundo dos homens, derretiam ao tocar o chão.
Eventualmente, tudo se tornou um lamaçal.
Não importava o quão alto fosse o ponto de vista de alguém, nem o quão limpa fosse essa pessoa; era impossível negar que o mundo humano estava imerso em sujeira que jamais poderia ser totalmente limpa.
Era difícil dizer se o frio do vento fazia os flocos de neve aparecerem, ou se eram os flocos que tornavam o vento ainda mais gelado. De qualquer forma, à medida que o vento soprava pelas terras, atravessava o acampamento e chegava ao pátio, Xu Qing sentia o frio penetrar até os ossos.
Embora fosse um cultivador, não conseguia esquecer o medo profundo do frio que carregava consigo há anos. Por isso, sentia-se desconfortável.
Eventualmente, ele notou uma figura cambaleando através do vento gelado e da neve. Quando a figura abriu o portão do pátio e entrou, ele estava sorrindo.
“Tivemos sorte, Garoto. Olha só isso. Uma cobra de cártamo. A carne delas é excelente. Você vai ver, vou te mostrar como sou bom na cozinha.”
Com isso, o Sargento trouxe a cobra morta para dentro. Ao notar a cozinha limpa e a mesa posta, seu sorriso se alargou. Olhando para Xu Qing, perguntou: “Quer aprender a cozinhar uma cobra?”
“Sim”, respondeu Xu Qing, com os olhos brilhando. Ele adorava aprender coisas novas, e além disso, já sabia o quanto o Sargento era bom na cozinha.
Sorrindo, o Sargento fez um gesto para que Xu Qing se aproximasse e começou a trabalhar, explicando o processo enquanto o fazia.
“Sabe, a maioria das pessoas acha que deve cortar a cabeça e a cauda da cobra antes de cozinhar. Bem, as excreções da cobra vêm da área da cauda, então essa parte realmente precisa ser retirada. Mas a cabeça não. Desde que você tome cuidado para remover o veneno, a cabeça vai adicionar muito sabor ao prato como um todo.”
O Sargento adorava falar sobre cozinha. Xu Qing observava e ouvia com atenção enquanto o Sargento limpava a cobra, a despelava, retirava as vísceras e preparava a carne.
“Lembre-se, Garoto, se você comer só a carne assim, sem mais nada, não vai ter sabor. Precisa de um bom caldo para acompanhar.”
O Sargento Trovão começou a ferver água em uma panela de barro, então adicionou várias ervas e especiarias. Por fim, colocou a cabeça da cobra.
Em pouco tempo, um aroma delicioso tomou conta do ar, e Xu Qing começou a salivar. Ao ver isso, o Sargento deu uma boa risada, pegou uma wok((Wok, uoque ou uosque é um utensílio básico da culinária asiática, originário da China. Parece uma frigideira grande.) limpa e fritou o restante da carne. Estalos e chiados ecoaram pela cozinha, e o aroma da comida se espalhou, ficando tão forte que alcançou até o lado de fora.
O frio intenso foi afastado, e a barriga de Xu Qing roncou alto. Seus olhos ficaram cada vez mais arregalados ao observar a carne da cobra fritando.
Finalmente, o Sargento terminou de fritar a carne, despejou tudo na panela de barro e fechou a tampa.
“Você vai lembrar de tudo isso?” perguntou ele, com um sorriso satisfeito.
Xu Qing olhou para a panela de barro e assentiu. O processo não parecia tão difícil, pelo menos para ele.
O Sargento Trovão sorriu, saiu da cozinha e voltou com duas garrafas de licor. Uma ele entregou a Xu Qing, e a outra ficou com ele. Dando um gole, suspirou.
“Carne é fácil de encontrar aqui no acampamento. Mas licor… ahhh, isso é bem mais raro.”
Xu Qing ergueu a garrafa e observou o líquido turvo dentro dela. Nunca havia consumido álcool antes. Pelo que o Sargento dizia, o licor era raro. Xu Qing lembrava que o álcool nem sequer existia nas favelas; só os adultos da cidade o consumiam. Vendo o quanto o velho parecia apreciá-lo, Xu Qing levou a garrafa aos lábios e tomou um gole. O líquido queimou, mas ele forçou a garganta a engolir. O calor desceu pelo seu esôfago e se espalhou pela barriga, como uma explosão que enviava uma corrente de calor para o restante do corpo. Ele exalou, quase tossindo, e podia sentir o cheiro do álcool em seu próprio hálito.
“Isso é nojento”, disse, olhando para o Sargento Trovão.
O velho jogou a cabeça para trás e soltou uma grande gargalhada. Apontando para Xu Qing, disse: “Você é muito jovem para entender o sabor do licor. Você vai gostar quando ficar mais velho.”
Com isso, estendeu a mão para pegar a garrafa de Xu Qing, mas ele a puxou para si.
“Deixe-me tentar de novo.” Tomou outro gole e, embora franzisse a testa, sentiu que já estava se acostumando ao sabor incomum.
O tempo passou enquanto bebiam juntos, e o Sargento Trovão zombava e fazia piadas com Xu Qing o tempo inteiro. Logo, a carne ficou pronta.
Quando o Sargento colocou a panela de barro na mesa e retirou a tampa, o aroma delicioso se espalhou no ar. Xu Qing sentiu a garganta tremer. Colocando a garrafa de lado, esperou que o Sargento Trovão pegasse o primeiro pedaço de carne. Então, ele usou os próprios pauzinhos, espetou um pedaço e colocou na boca. Como antes, não conseguiu evitar comer apressadamente, como sempre fazia.
Assim, enquanto a neve caía lá fora e o vento soprava, um velho e um jovem comeram e beberam juntos, com a sensação de calor se espalhando entre eles.
Enquanto o Sargento Trovão observava Xu Qing lidar com os pauzinhos de forma um tanto desajeitada, um olhar terno apareceu em seus olhos.
Ele é um bom garoto. Uma pena que viva em um mundo tão brutal.
A cabana tinha rachaduras, pelas quais flocos de neve entravam. Quando caíam sobre Xu Qing, não importava que ele estivesse suando pela comida, ele ainda não gostava da sensação fria e se encolhia um pouco.
O Sargento Trovão percebeu, mas não disse nada.
O tempo passou. Xu Qing observava como o Sargento bebia e foi aprendendo com ele, tomando um gole e exalando o aroma da bebida. Em determinado momento, olhou para aquele homem velho que o tirou das ruínas da cidade e disse: “Sua lesão…?”
“Vou ficar bem. Já convivo com isso há anos. Não vou morrer tão fácil. Estou bem.”
Xu Qing acenou com a cabeça. Quis perguntar como a base de cultivo do Sargento Trovão foi destruída, mas, ao lembrar do que aconteceu na região proibida, preferiu ficar quieto.
Eles continuaram aproveitando a refeição por um bom tempo, até que, finalmente, o Sargento terminou sua bebida. O velho então se levantou, com os olhos um pouco turvos, e se encaminhou para sua cabana. Xu Qing percebeu, de repente, que a viagem à região proibida havia tirado algo da postura imponente do sargento.
Ele ficou sozinho por um tempo, antes de se levantar para limpar a cozinha e lavar a louça. Quando o trabalho foi concluído, voltou para sua cabana. Sentado na cama, observou a neve caindo pela janela e, eventualmente, se encolheu, tirando a bolsa que um dia pertencera ao Capitão Sombra de Sangue. Não havia pílulas medicinais dentro, mas havia muitas moedas espirituais, além de alguns itens aleatórios.
Havia um par de manoplas pretas, feitas não de couro, mas de metal. Xu Qing as experimentou e percebeu que eram extremamente resistentes, representando uma grande vantagem para sua defesa. Ele deu alguns socos de teste e ficou muito satisfeito com os resultados. Tirando as manoplas, sentou-se e começou a fazer seus exercícios respiratórios.
A noite passou sem incidentes.
Ainda estava nevando pela manhã, mas estava mais quente do que na noite anterior. No entanto, havia frio suficiente para que a neve grudasse.
Ao sair de sua cabana, Xu Qing viu a neve no chão e apertou um pouco mais suas roupas ao redor de si. Olhou rapidamente para a cabana do Sargento e deixou o pátio. Seu objetivo nessa manhã era comprar alguns bolus brancos para o sargento.
Seus passos faziam um barulho na neve enquanto ele se dirigia à loja geral.
No caminho, passou pela tenda do Grão-Mestre Bai, onde ouviu as vozes daquele jovem e daquela jovem do dia anterior. Eles estavam lendo livros em voz alta, o que fez Xu Qing parar e escutar com inveja.
Após um curto momento, desviou o olhar da tenda e continuou em direção à loja geral.
Quando se aproximou, viu a garota do teste das bestas, trabalhando arduamente para varrer a neve na frente da loja. Suas roupas estavam esfarrapadas, suas mãos estavam vermelhas, e sua respiração se condensava no ar enquanto ela trabalhava. Ele não a via há alguns dias, mas parecia que já estava acostumada à vida no acampamento. Ela parecia cansada, mas estava trabalhando com disposição.
A neve ainda caía, mas ela continuava a varrer. Na luz da manhã, a cicatriz em seu rosto parecia ainda mais evidente. Ela o notou se aproximando e olhou para cima. Sorriu.
“Bom dia!”
“Bom dia…” Xu Qing murmurou de volta. Não estava acostumado a cumprimentar alguém assim. Acenando com a cabeça para ela, olhou para dentro da loja. Talvez fosse por ser cedo, ou talvez pelo frio, mas de qualquer forma, a loja estava vazia.
“O que você quer comprar?” a garota perguntou. “Eu pego para você.”
Ele a olhou. “Bolus branco.”
Colocando a vassoura contra a parede, ela o conduziu para dentro. Correu até um dos balcões, mexeu nas coisas e retirou alguns sacos. Procurando entre eles, escolheu um saco específico e o entregou a Xu Qing.
“O dono disse que só podemos vender cinco por dia”, disse ela, parecendo um pouco constrangida.
Xu Qing pegou o saco e examinou-o com cuidado. Para sua surpresa, os bolus branco dentro eram de qualidade muito superior aos que ele havia comprado antes. Na verdade, três deles não tinham nenhuma coloração verde e exalavam um leve aroma medicinal.
Pensando em como a garota havia sido tão cuidadosa ao escolher o saco, Xu Qing a olhou.
Ela piscou algumas vezes, sorriu e então disse: “Não se preocupe. Eu tenho permissão para fazer isso.”
“Obrigado.”
Ela sorriu radiante. “Não precisa agradecer. Eu é que deveria agradecer a você. Se não fosse por você, eu não estaria viva agora.”
As palavras dela pareciam lembrá-la de algo, e, enquanto acompanhava Xu Qing até a porta, ela disse baixinho:
“Ouvi o dono da loja comentar que muitos jovens desapareceram recentemente na região proibida. E, pelo jeito dele, fiquei com a impressão de que não era por causa da própria região, mas sim por causa de… outras pessoas. Só… tome cuidado.”
Pelo olhar da garota, parecia que ela estava genuinamente preocupada com ele, e Xu Qing não sabia muito bem como responder. Acenando com a cabeça, ele a agradeceu e saiu.
Alguns passos depois, ele olhou por cima do ombro e viu que a garota, mais uma vez, estava varrendo a neve. Por algum motivo, a cicatriz em seu rosto parecia ainda mais visível.
De repente, Xu Qing se lembrou da história de Sargento Trovão sobre como o templo na região proibida tinha algum tipo de cristal que poderia remover cicatrizes.
Se eu tiver uma chance, vou pegar um deles para ela.
Enquanto caminhava, ele deixou um rastro na neve. Atrás dele… a neve caía com mais intensidade.
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