Capítulo 20 - Corrupção e Purificação
Na noite em Fyodor, uma ilha pequena emite um tom prateado, iluminando-a.
Contudo, a luminosidade oscila com fluxos escuros que a cobrem parcialmente e momentaneamente, como uma brasa sendo movimentada por uma ventania.
Conforme o brilho das quatro estrelas se afasta, a aproximação até essa luz é inevitável.
Sentado sobre um gramado, a cabeleira branca, amarrada em um rabo de cavalo, flutua para cima com o fluir de sua energia.
De repente, os olhos se abrem. A coloração cinza escura em suas íris tremulam com a prata do Gewissen que vai se cessando.
“Isso deve ser o suficiente pra atrasar o crescimento desse ferimento por alguns dias.”
Ao colocar o palmo esquerdo sobre o fragmento de Ruína na costela esquerda, a visualização muda para algo mais tátil.
Ali, o pedaço de cristal anteriormente brilhante em azul, está envolto em trevas que vêm do próprio interior do humano.
O velho se levanta lentamente conforme suspira.
Observando o castelo em uma perspectiva mais afastada à direita, ele nota que a chama púrpura da terceira torre se apagou. Em seguida, a quarta chama é acesa.
Nesse momento, o olhar de Yurgen se estreita. O canto do lábio se curva. Uma dualidade de sentimentos preenche o peito do homem, mas ainda assim, a sua expressão quase não muda.
“Ele chegou na quarta torre. Essa é a mais difícil entre todas… Seja forte, Ray.”
Em uma lembrança, a perspectiva do homem ao observar o seu discípulo derrotando as árvores monstros poucos dias atrás ressoa pela mente.
Logo em seguida, há a visão dele sobre o desafio superado no santuário e a chegada do garoto no castelo, envolvido numa energia desconhecida.
“Sei que você vai conseguir passar. Você deve ter passado por Memórias e Histórias ainda mais difíceis…”
一 Irei te esperar no Núcleo.
Com o sussurrar, o homem gesticula quatro vezes com o palmo apontado para os céus.
Nesse instante, ele simplesmente desaparece.
O breu, após a partida do homem, preenche a ilha plana com gramado. Um breu profundo e estéril, como a noite iluminada somente por quatro estrelas e o luar.
Uma das nuvens deste céu noturno obstruem a luz. Por um único momento, o abismo consome o ambiente.
Nada pode ser visto, mas o som de passos e da própria respiração prova que algo caminha nessa escuridão.
Sem conseguir ver, sem conseguir sentir nada além de si mesmo.
“Que prova mais estranha… A quarta torre não tem porta e nem letreiro? Deve fazer alguns minutos que eu tô caminhando aqui.”
Apertando o punho direito enquanto carrega a espada com o outro palmo, passa a ter um sentimento ruim.
A nuca dele está arrepiada com um calafrio familiar.
A expressão desconfortável fica mais nítida no semblante, pois as sobrancelhas se contraem e o canto do lábio decai brevemente.
Impondo a energia acima da cabeça como um orbe dourado capaz de iluminar os arredores, Raisel tenta se ambientar um pouco mais.
“Não adianta. A luz não se propaga…”
Todavia, após essa tentativa, os sentidos do garoto captam uma movimentação estranha sendo emitida dessas sombras.
Vultos silenciosos. Quase imperceptíveis.
Em contraste com o calor corporal, é como um frio espinhoso cuja natureza é desconhecida.
Os olhos dourados vão de um lado ao outro com atenção. Mas, mesmo mantendo seu nível mais alto de percepção, não há nada além do vazio.
As hesitações deixadas para trás na sala anterior tentam capturar a mente perturbada do rapaz.
Engolindo seco, seus passos aumentam de frequência perante o ambiente completamente inóspito.
Nem um palmo, nem um centímetro à frente é capaz de ser visto.
O que o acompanha é a sua determinação, a grande força motriz para estar aqui e chegar onde chegou.
Mas essa mesma determinação seria o suficiente para escapar desse lugar?
Pouco a pouco, mesmo com a cabeça vazia, o espírito se torna mais pesado.
Quanto mais anda em frente, mais bagunçado é o senso de direção.
Não sabe se para onde está indo é em frente, para trás ou para os lados. Afinal, não há como sentir nada aqui. Não há som, não há cheiro, não há nada…
“É melhor parar. Não sei se ainda estou no corredor…”
Ao cessar os passos, o menino desembainha a sua espada. Balançando ela com um único braço, a força do corte propaga um vácuo para todas as direções. Mas se perde na imensidão do cenário sombrio.
“Como eu vou sair daqui?”
Aos poucos, a espada é guardada de volta na bainha.
“Isso me lembra…”
A sensação familiar sentida outrora, agora é identificada com clareza. A imagem dele vagando na vasta escuridão interior e tocando o orbe negro vem a aterrorizá-lo. No fim das contas, não foi uma experiência nada agradável ser quase engolido por algo invisível.
Os olhos dilataram. A íris estremece. O medo se torna palpável e a insegurança de estar diante do desconhecido nunca pareceu maior.
“Não! Não posso pensar nessas coisas!”
Novamente, o contorno do corpo é preenchido pela luz dourada.
Respirando profundamente, um suor escorre da sua feição.
Armando uma postura de defesa ao ter a espada pronta para ser sacada rapidamente, Raisel se prepara para o que está por vir.
“Até agora, foi sempre a luz que guiou o meu caminho. Seja a minha, a de Hiseld ou a do vovô… Não vai ser agora que eu vou me perder!”
Emanando a energia como rajadas violentas, o medo é mascarado pelo seu desejo. A decisão de manter a coragem em seguir mesmo aterrorizado, foi o que fez ele superar todos os seus desafios.
Mesmo na situação mais invertida, há vestígios da sua esperança. Basta uma mudança na própria perspectiva, onde o brilho sempre sobrepuja as sombras.
Com a expansão do Gewissen para todos os lados, a rajada se afasta cada vez mais da escuridão. Contudo, ao desaparecer completamente, os sentidos do garoto captam algo adiante…
Um ponto brilhou mais ao longe, como se refletisse a luz emanada por ele.
“O que foi isso?”
Os passos de Raisel são receosos, mas firmes. Pouco a pouco, se aproxima de onde o fenômeno estranho aconteceu.
Conforme chega à origem, os olhos dele se abrem por um instante. Todavia, em seguida eles se estreitam em um foco quase completo.
“Um espelho…”
As sombras, antes silenciosas, parecem agora estar respirando. O som dessa respiração parece dobrada com dois ritmos sobrepostos.
Com confusão, as sobrancelhas do protagonista se juntam. O olhar decai gradualmente com essa respiração vindo abaixo de si.
Ao olhar, ele está encarando a si mesmo.
Uma versão escura com contorno esbranquiçado está viva, mas trincada por rachaduras azuladas.
Por estar atento, Raisel vê o balanço rápido da espada contra si. Em um salto rápido, ele se afasta.
Contudo, as costas bateram contra o teto.
Com o choque, ele rola sobre o teto como se fosse o chão. De ponta cabeça, a sombra adiante também pousa nessa inversão.
“Ele sou eu?”
Em dúvida, o garoto prepara a sua postura com ambas as mãos segurando a espada na vertical.
Em réplica, a sombra faz o mesmo.
“Quando foi que ela surgiu?”
No mesmo instante, ambos partem na direção um do outro.
A espada estrelada decai, a espada de sombras sobe.
No conflito, a força está igualada. Mas mesmo em atrito, não houve vácuo ou muito menos faíscas.
Em dois meios passos para trás, o protagonista se afasta. A sombra também.
Um corte horizontal visa fatiá-la ao meio pela direita.
De modo oposto, o corte sombrio horizontal vem pela esquerda.
Novamente, o choque entre as espadas acontece.
“A força dela é igual a minha. Não sinto energia vindo dela. Talvez assim eu consiga superar essa sombra maldita!”
Reforçando-se com o contorno coberto por luz, o protagonista tenta se impor contra o eu inimigo em meio ao atrito das armas.
Todavia, com o Gewissen manifestado, as rachaduras azuladas na figura sombria diminuem brevemente.
A escuridão se torna ainda mais forte.
Os dentes de Raisel rangem ao tentar vencer essa disputa, mas, inevitavelmente, é arremessado para trás.
Rolando pelo chão, ele volta o olhar para o inimigo, mas ele… desapareceu?
Por cima, o garoto sente algo vindo em sua direção!
Rapidamente, ele salta para escapar do golpe e novamente o chão se inverte.
Incessantemente, a sombra continua a investir para a direção dele com extrema velocidade.
À medida que pula e se esquiva dos ataques, o chão e o teto são invertidos diversas vezes. Em um desses momentos, o eu inimigo consegue alcançá-lo e o impacto afunda o protagonista parcialmente em trevas.
“Porra!”
Sentindo as costas serem sugadas, não há como continuar esse combate de modo igual.
Mais energia preenche o corpo do rapaz, menos rachaduras azuis estão sobre o corpo da sombra.
Com um chute no abdômen da figura escura, o jovem consegue afastá-la momentaneamente. Em seguida, se desprende da escuridão e fica em pé agilmente.
“Será mesmo que é pra ter uma luta direta?”
Caminhando lentamente, o oponente se encaminha até o alvo.
“Deve ter alguma lógica. Não dá pra vencer esse cara. Quanto mais energia eu uso, mais forte ele fica. Fisicamente somos iguais e as técnicas dele são as minhas.”
Raisel prepara a sua postura com a lâmina baixa.
A figura faz o mesmo, só que do lado oposto.
“A primeira torre testou meu intelecto, a segunda testou minha vontade e a terceira testou a força… Essa quarta testa o que?”
Em um respirar profundo, a luta recomeça com outra aproximação.
A espada estrelada sobe em diagonal, a lâmina sombria a detém em um movimento horizontal.
Com um torcer de pulsos, Raisel tenta deslizar a espada da sombra para cima. Mas antes que conseguisse completar o movimento, ela pisa firme e também torce o punho 一 Forçando outro atrito.
A força da escuridão começa a sobrepujar o outro que está com as veias do rosto saltadas de tanto esforço. Em um momento proposital de afrouxar da sombra, o menino perde o equilíbrio e o controle da espada, tendo a sua lâmina defletida para cima ao ter a própria técnica usada contra ele mesmo.
一 DROGA!
Numa postura baixa, o punho sombrio atinge a costela do protagonista. Os olhos dele se abrem ao esperar uma dor abissal, mas o motivo foi uma brusca surpresa…
O golpe não o danificou, mas sim manchou a costela com a escuridão.
Dando passos para trás, o combate cessou momentaneamente, pois o garoto recuperou a guarda.
“Não doeu. Eu só não sinto minha energia fluir onde eu fui acertado… Caso eu seja coberto, não vou conseguir usar Gewissen e vou ficar preso?”
“Deve ter um jeito de superar isso. Em combate não é possível.”
Receoso, um outro respirar profundo faz a manutenção da sua concentração.
“Na primeira torre, eu fiquei contra o breu. Na segunda, eu exterminei o breu. Na terceira, eu deixei minhas dúvidas para trás… Na quarta, eu tô encarando a mim mesmo.”
Diferente de antes, a postura de combate não se perfez.
“Será que é isso mesmo o que eu tenho que fazer? Não. Não posso duvidar. É isso.”
O olhar dele se torna firme mesmo diante da escuridão.
Os braços dele se abrem, mesmo com a espada sendo segurada pela mão destra.
一 Vem. Não é isso o que você quer?
Em um sorriso lateral, Raisel está completamente vulnerável.
Em um sorriso lateral no canto oposto, a sombra agradece.
Num piscar de olhos, a espada sombria perfura o peito do menino. A escuridão se alastra através da lâmina, consumindo internamente e externamente o rapaz.
Na sala completamente vazia, não há mais nenhuma presença.
Tudo foi consumido pela escuridão.
O silêncio mortal preenche até mesmo os dois vultos ligados por uma espada.
Contudo, surpreendentemente a sala começa a vibrar gradualmente. O céu e o chão são cada vez mais afetados por algo além do seu controle.
Rachaduras incolores se abrem de um lado a outro nesse terremoto.
Perante a vastidão do tremor, novamente a calmaria personifica o ambiente. Contudo, as rachaduras ainda permanecem fragmentando todo o lugar.
Do peito perfurado, a espada de sombra começa a diminuir. Um movimento de sucção espiral começa a absorve-la.
Tal sucção cresce, engolindo toda a figura sombria.
Em um piscar de olhos, passa a crescer ao ponto de reverberar por todo o ambiente. A escuridão da sala é cada vez mais compactada.
O rosto de Raisel surge descoberto pela escuridão. De olhos fechados, ele não está encarando o vazio, mas a si mesmo.
Após algum tempo, o olhar dele se abre lentamente. A escuridão na sua pupila nunca foi tão profunda, mas ao mesmo tempo, o brilho do seu olhar nunca foi mais cintilante.
A paisagem no qual ele se depara ao despertar é o bosque e a torre central à frente.
“Deu certo…”
O pensamento foi acompanhado de um suspiro pesado.
O olhar se torna cabisbaixo, mas rapidamente os cantos dos lábios se curvam em um breve sorriso.
“Daquela vez, Hiseld me ajudou a controlar essa escuridão em mim. Ela usou toda a energia pra acorrentá-la…”
“No fim das contas, a sombra também faz parte de mim. Fazem parte de qualquer humano, de qualquer pessoa.”
“Ela era eu, mas eu também sou ela. Morte e vida… Também fazem parte disso, não é?”
“Acho que agora eu entendi o porquê do vovô ter escolhido aqui pra treinar.”
O olhar dele se ergue novamente. Agora não há mais a barreira púrpura, dividindo o caminho do bosque até a torre central.
A energia amargurada ressoa em espirais roxas até Raisel.
“MEUS PARABÉNS. VOCÊ CONSEGUIU COMPLETAR TODAS AS QUATRO TORRES. ISSO SIGNIFICA QUE COMPREENDEU A LÓGICA DOS DESAFIOS.”
“SIGA O CAMINHO E SUBA ATÉ A TORRE. A PRINCESA DO CASTELO, VIANA VON HEINZ, ESTÁ A SUA ESPERA.”
Com a mensagem, a espada em posse é guardada na bainha.
“Parando pra pensar, essa quarta torre foi mais fácil do que as outras três.”
Ao fim do pensamento, ele caminha em direção a torre.
Seguindo a trilha por entre o bosque, ao passar do limite onde a barreira estava, todo o ambiente parece mudar com o seu primeiro passo.
As árvores estão mortas.
A torre principal é escura como a noite.
Não há grama. Não há som dos pássaros.
O calafrio sentido no último desafio sequer se compara com a profundidade da escuridão vinda do alto dessa torre.
Encarando o céu enquanto parado, Raisel continua a andar.
De frente para o portão com grades, ele é aberto automaticamente com a aproximação.
Conforme a porta se ergue com o barulho das correntes, o ambiente interior fica cada vez mais nítido, sendo iluminado.
Todavia, mesmo a luz noturna parece tremular com a intensidade brutal das trevas nesse lugar.
“O que aconteceu… nesse castelo?”
Pisando no tapete vermelho desbotado, empoeirado e rasgado, o menino adentra na torre central.
Ao contrário das outras torres, o portão não se fecha.
Pelas laterais, há quadros artísticos completamente distorcidos por rasgos, queimados ou até maculados por rabiscos.
Perante os passos que ecoam no ambiente, ele se aproxima de outra porta.
Nessa, a mão direita agarra a maçaneta e a puxa.
O barulho velho de ferrugem rangendo ressoa. Ele sente o ar sendo sugado pelo vácuo recém-aberto. A escuridão além da porta é ainda mais amedrontadora.
No fim, ali os olhos avistam uma escadaria estreita e espiral.
O menino começa a subir.
A perspectiva da base da torre vem a se levantar à medida que os passos são dados.
Após alguns minutos, a visão alcança a varanda inundada em um breu ainda maior. Pela lateral direita, há uma porta sendo aberta.
Passando por ela, Raisel adentra ao cômodo real.
Sob os olhos dele, a imagem é clara.
Teias de aranha, caveiras pelo chão, armaduras vazias ainda mais nobres estão em pé em um corredor.
Caminhando para o centro da sala, ele ouve um sussurro.
Deslizando os olhos para a direita, vê um trono coberto por uma parede de véu branco, mas amarelado pelo tempo.
À frente dele, há alguém encapuzado segurando um cajado.
Uma brisa notívaga entra pela varanda, balançando as teias e o véu esbranquiçado.
Por uma fração de segundos, ele vê alguém sentado.
Com um vestido branco e bordado até as pernas, mãos magras como as de um esqueleto, manchas de sangue seco pelo peitoral e a ausência de uma cabeça. Uma princesa morta e esquecida o espera.
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