Capítulo 21 - O Castelo de Heinz
Paralisado, Raisel imediatamente recua em direção a varanda enquanto prepara a espada a ser sacada.
Contudo, antes que ele chegasse na varanda, a figura encapuzada bateu a ponta do cajado contra o chão. A energia apática, pesada ao ponto de ser sufocante, ressoa pelo ambiente como uma vibração capaz de estremecer toda a torre.
No outro instante, o menino sente o corpo ficar imensamente mais pesado. Os joelhos travam, mas o olhar continua fixo no inimigo
“Essa sensação… É como os cubos!”
Em um único momento, a energia em si é completamente dissipada do corpo do rapaz com um brilho dourado rasgando a melancolia, como uma fagulha de esperança em noite sem estrelas.
O movimento de braço de Raisel se estende pela sala, não só inibindo a energia amargurada, como impondo a sua luz para todo o cômodo escuro.
A feição dele é convicta 一 Preparado para o que viesse.
一 Ho… Você é mesmo diferente.
A voz rouca e áspera, emanada pela figura do capuz, é acompanhada de um breve riso. Elevando a energia, o feiticeiro está pronto para continuar o conflito contra o humano.
一 Basta, Lefrier.
À esquerda da sala, outra voz ecoa. De modo autoritário, o tom feminino simplesmente inibe a vontade da figura encapuzada de continuar.
O feiticeiro atende a ordem acenando com a cabeça.
一 Como desejar, majestade.
一 Me perdoe, solene campeão. Já fazem alguns anos desde que alguém conseguiu completar as Quatro Torres.
Conforme a fala prossegue, o servo se aproxima da voz. Ao pegar algo em cima da mesa, ele caminha até o trono cujo cadáver está sentado.
Adentrando ao véu, ele parece colocar algo sobre a mulher morta. O feiticeiro se afasta e a parede de tecido fino decai.
A luz do luar infiltra pela varanda com mais notoriedade. A lua desceu como se estivesse de frente, dando as boas-vindas aos seres que estavam na sala real.
Entretanto, pelo brilho prateado do luar, os olhos de Raisel se abrem ao visualizar a silhueta nobre daquela atrás do véu. As partículas de pó que sobem desse cômodo velho mais parecem fragmentos de estrelas.
一 Estou pronta. Abra, Lefrier.
A figura encapuzada puxa a cortina.
É revelado o rosto, a cabeça daquela que anteriormente não a tinha. Mesmo deteriorando como um cadáver, os traços nobres e majestosos da mulher são notórios.
Com cabelos cacheados finos, uma espécie de touca bordada, ela não tinha sobrancelhas. Os olhos são esbranquiçados pela morte, não há íris ou algo assim.
O batom sobre os lábios pútridos ressoam alguma feminilidade. As bochechas magras são contrastadas com o breve sorriso de canto da entidade.
一 Boas-vindas, campeão. Eu sou Viana, Quarta Princesa do Castelo de Heinz. Viana von Heinz. E o nome do nosso ilustre visitante?
O palmo, quase esquelético, se aproxima das manchas de sangue que marcam o vestido nobre pelo peitoral.
一 Meu nome é… Raisel.
Ainda em choque, aos poucos a postura de combate se desfaz. Não há intenções malignas, não há energia vindo daquela mulher ao contrário do servo ao lado.
一 Um nome e tanto. Diga-me, senhor Raisel… Imagino que tenha muitas perguntas sobre este lugar. Como recompensa pela sua vitória nas Quatro Torres, responderei todas elas.
“Ela é uma princesa mesmo. Ou melhor, já foi uma… Talvez seja bom demonstrar algum respeito.”
Um suor escorre na lateral da face, mas ainda assim, o menino se abaixa e se ajoelha somente com uma das pernas.
一 Sua Majestade, antes de começar as perguntas, preciso ter a certeza de que vocês não são inimigos.
O olhar do rapaz desliza para a figura ainda encapuzada e com o cajado em mãos.
Viana, ao escutar, fecha os olhos e suspira com certa satisfação.
一 Lefrier, por favor.
Diferente da princesa, o servo suspirou com insatisfação. O cajado desaparece em partículas púrpuras, a mão dele enrugada como as de um velho, vem a apanhar o capuz que é retirado.
A aparência dele, por fim, também é a de um cadáver. Um sábio careca e barbudo, mas o mais surpreendente é a presença de um terceiro olho sobre a testa, esse cujo brilho é irretratavelmente corrompido.
一 Peço que compreenda algo, Raisel. Lefrier não gosta muito de se revelar. Ele é bastante tímido, pois sente insegurança sobre a sua aparência.
一 Quando ainda vivo, sofreu muito com a discriminação por ser diferente dos demais.
O velho apenas fecha os olhos esbranquiçados ainda com a feição rabugenta e insatisfeita, mas aquele que está em sua testa sequer pisca.
一 Entendi. Me… perdoe pelo incômodo.
一 Não se preocupe. Tem mais algum pedido ou está pronto para começarmos?
一 Não tenho mais nada, Sua Majestade. Posso fazer a primeira pergunta?
一 Por favor.
一 Quem são vocês?
Com a pergunta, a mulher põe o punho à frente dos lábios. Coçando a garganta, a boca dela se abre novamente.
一 Eu sou Viana von Heinz, a última princesa desse castelo. Esse ao meu lado é o Feiticeiro Lefrier, o Chefe de Magia que ainda está comigo por todos esses séculos.
一 Como vocês ainda estão vivos, se estão mortos?
一 Para responder essa pergunta, senhor Raisel, é melhor explicarmos o que era o Castelo de Heinz e o que aconteceu com ele.
一 Certo.
Com os ouvidos em pé, o menino permanece agachado, mas os olhos voltados para a figura enigmática.
一 O Castelo de Heinz foi lar da antiga família real do Império de Heinz. Vivíamos a oeste de Wynward, perto do litoral… até sermos caçados pelos Três Vingativos.
一 A guerra contra essa entidade durou cinco anos. Eu, como filha mais nova, seria a primeira a morrer. A mais velha sempre permanece perto do castelo principal, é quem herdaria o trono.
一 Prevendo minha morte, Lefrier sugeriu que nos submetêssemos a Samael, uma das Estrelas Escuras. Abandonaríamos as Constelações… e adotaríamos a fé dos Pagãos. Com medo… e aceitando meu fim, sacrifiquei todos os meus servos para que obtivéssemos esta forma.
一 Não sei o que aconteceu com o Castelo de Heinz depois que morremos, mas fomos trazidos aqui por Pictor para sermos a Chave para o Núcleo.
“Pictor… Kaelduryx também foi convidado por Pictor pra cá.”
一 E quem é Pictor?
一 É uma das Constelações. A criadora desse lugar e quem nos permitiu viver aqui preservando as nossas histórias e memórias desde que cumpramos o nosso papel.
“Então, Pictor foi quem criou essa Ruína, um Mausoléu de Memórias e Histórias. Kaelduryx, Hiseld, Shishika, Asparsia e esses dois… São todos partes, fragmentos de memórias que seriam perdidas no mundo exterior.”
Uma mistura de sentimentos preenche o coração do garoto. Por um lado, está satisfeito com os esclarecimentos, mas triste por ser apenas uma brisa passageira nessas entidades que estão aprisionadas aqui.
O olhar de Raisel, cabisbaixo, se levanta novamente de maneira afiada.
一 Princesa Viana, agradeço as suas respostas. Mas há algo que me incomoda…
De modo semelhante, o olhar de Viana também se afia.
一 Você mentiu. São quatro princesas, mas esta é a quinta torre. Isso significa que sacrificou mais do que servos.
一 Você… envolveu as suas irmãs e seus pais no seu sacrifício, não foi?
Conforme a fala segue, é notável a ira presente em cada palavra do rapaz. A vida de inocentes foram tomadas para um mero propósito pessoal, a busca pela eternidade que se corrompeu.
O silêncio pesou, como se até o luar tivesse se recolhido.
Dos lábios pútridos da antiga princesa, revelam um sorriso maquiavélico. Mas pela primeira vez, o que o protagonista via e sentia eram coisas distintas.
一 Quanta perspicácia… Você tem razão. Minhas irmãs, meus pais e meu povo foram traídos por mim.
一 Me diga o motivo disso… Por que você fez essa atrocidade?
一 Os Três Vingativos tomaram todo o oeste do continente. Seríamos apenas mais um reino a cair diante da Calamidade.
一 Eu sabia que o Rei, minha família… jamais aceitariam se voltar contra a luz. Então, para preservar nossa memória e nossa existência, eu os entreguei às trevas.
一 Naquele dia, escolhi apenas a mim e a Lefrier como alvos da imortalidade. O preço de Samael? Mil vidas. Quando os Três Vingativos invadiram, todo o povo sob o Castelo pereceu. O Rei, a Rainha e as Princesas… todos mortos. Todos, menos eu.
一 A espada dele cortou minha cabeça. Uma ferida que mesmo após a morte ainda continua.
De costas para a luz do luar e com o semblante baixo, o rosto de Raisel é tapado pela sua cabeleira escorrida.
“Apesar de ser frustrante, é uma história que já aconteceu, a imortalidade dela custou a sua liberdade.”
“Então, ela não foi convidada por Pictor, mas sim aprisionada.”
Em um sorriso lateral, o olhar dele se ergue e um sorriso debocha de uma atitude tão medíocre vindo de alguém “nobre”.
As sobrancelhas de Lefrier se contraem com raiva, inquieto, mas ainda imóvel.
一 Meu avô me disse que os Pagões seguem as Estrelas Escuras, mas nunca me falou que alguém podia fazer um acordo com uma. O motivo disso é pelo terceiro olho?
一 Correto. O Terceiro Olho é uma característica extremamente rara. Mesmo Lefrier não sabe qual é a sua real importância, mas tudo o que sabemos é que se torna possível se comunicar com entidades que estão além do nosso mundo.
“Terceiro Olho… Talvez algo assim seja possível pra encontrarmos Imoriel.”
Encarando o tapete vermelho datado por alguns instantes, a imagem do bosque com as quatro torres vem à mente.
Erguendo o olhar, um suspiro profundo o preparou e o acalmou.
一 As quatro torres representam as princesas, mas o que seus testes representam?
一 Cada teste na torre é um passo a passo para o ritual de Samael. A primeira que você passou representa a pesquisa, o jardim significa a tomada das vidas alheias, os cubos são o rompimento com a fé nas Constelações e, a última, a tomada da escuridão na eternidade.
一 Então, além de contarem parte da história, creio que serviu como uma tentativa de me preparar pra essa revelação.
一 Como bem observado. Mas em todos esses séculos, você é o primeiro a passar pela Quarta Torre tão rápido. Suponho que seja devido ao fato de não ser um Constelado.
Esse comentário instiga uma forte curiosidade no menino. O olhar dele se arregala, mas não podia ser tão ingênuo ao ponto de confiar em Viana. Em um suspiro, ele volta a encarar o chão.
“Não ter um Glanz me ajudou nisso? É suspeito, mas ela realmente pode ter razão. Preciso pesquisar sobre isso lá fora…”
Após o período de silêncio, ele se levanta e volta a olhar para a Princesa Morta.
一 Resta apenas uma dúvida.
Em um aceno singelo com a cabeça, a mulher se dispõe.
一 Você me deu todas essas respostas. Me deixou vivo mesmo após descobrir a mentira. A única conclusão pra isso é que você precisa de mim. Me fale o que é.
Lefrier sorri de modo breve, assim como Viana. A risada entalada deles, uma mais grave por ser masculina e outra feminina, ressoam pela sala.
De frente, Raisel permanece sério.
一 Infelizmente, houve uma outra consequência do Ritual. Os Cavaleiros de Elite de Heinz, por serem poderosos, também obtiveram uma imortalidade. Não somos capazes de eliminá-los. Então, para abrir o seu caminho até o Núcleo, preciso que você derrote um deles para restaurar a nossa energia.
Após a fala, outra vez somente as brisas notívagas pairam pelo quarto. Os olhos dourados do protagonista encaram a entidade de três olhos e a princesa cadáver.
“É mentira. Mas caso eu me recuse, eles podem não liberar a passagem pro Núcleo. Provavelmente derrotar esse Cavaleiro apenas dará mais tempo de vida para eles.”
一 Entendi. Então vamos logo. Estou ficando enojado por estar aqui.
Descontente, ele se prepara.
一 O Cavaleiro de Elite, Khinayen, está à sua espera no bosque. Tenha cuidado, solene campeão, ou poderá ficar sem cabeça…
Com o fim da fala, Viana estreita os olhos e os dentes pútridos se mostram de bochecha à bochecha.
O feiticeiro fecha o véu de modo abrupto.
一 Vá. A sua audiência com Sua Majestade acabou.
O terceiro olho banhado na energia maligna e amargurada esboça hostilidade sobre o garoto. Em contraste, a dualidade entre o dourado e o púrpuro estremece as trevas do ambiente.
Virando-se lentamente, Raisel parte em direção a varanda e pula de lá para o bosque.
Conforme decai, ele vê alguém o esperando no centro das árvores divididas entre a morte e a vida.
Ao pousar, as dezenas de metros de vegetação pelo caminho separam os dois.
Novamente, a barreira púrpura de Lefrier surge enclausurando tanto Raisel quanto Khinayen.
Nesse espaço, ele seria capaz de superar mais uma vez a escuridão diante si?
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