Capítulo 23 - Amanhecer Fora da Ruína

Com o céu aberto acima, como se houvesse sido rasgado semelhante a um tecido, Raisel enxuga as lágrimas com o antebraço.

A mulher cujo corpo brilha inteiramente move o palmo para a direção do garoto.

Em um piscar de olhos, ele desaparece da ilha e a fenda aberta se fecha.

Ao abrir os olhos com a pupila rodeada em um tom de azul, o menino está naquele espaço escuro com a mulher flutuante e o mentor ao lado.

一 Vovô, eu-

Antes que conseguisse falar algo ao direcionar o rosto, o palmo do velho pousa sobre a cabeleira encharcada de suor e com algum sangue.

一 Você foi ótimo, Ray. A gente conversa melhor fora daqui. Guarda a sua espada e fale com Pictor agora. É sua prioridade.

Por trás da barba, um sorriso breve se esconde. Os olhos cinza do velho estão estreitos com o elevar das bochechas. Somente um sentimento preenche o seu peito nesse momento.

一 Certo.

“Então, essa é Pictor?”

A curiosidade faz ele levar os olhos até a entidade etérea. Ela é uma mulher com poucas vestimentas, mas não há nada indecente nela. Seu cabelo é curto e uma tiara como uma coroa prende parte dos fios.

Flutuando, ela parece se sentar com as pernas cruzadas enquanto aguarda a sua vez de fala.

一 Ah, vovô… Como eu guardo a espada? Deixei minha bainha na ilha…

O semblante cai para a espada, preocupado com o que faria.

“Será que eu posso pedir pra voltar?”

一 Essa arma é uma Verbin. A bainha não é necessária.

一 Não?

一 Não. Só concentre a sua energia nela e imagine ela desaparecendo.

Antes de fazer isso, uma risada sem graça ecoa pelo ambiente. Afinal, está desde o começo carregando ela em mãos.

Em um suspiro, Raisel faz o que foi sugerido. No mesmo instante, a lâmina desaparece em partículas douradas que se perdem no breu do Núcleo da Ruína.

一 Uau…

“Então o cajado do Lefrier e o machado da Hiseld são Verbin também. Eles desapareceram e apareceram do nada.”

Olhando para cima pensativo, a mente do rapaz toma alguns esclarecimentos. Mas rapidamente a atenção se volta para a figura feminina.

一 Então, você é Pictor?

Com certa insegurança, não sabia o que esperar de uma Constelação.

一 Na verdade, sim e não.

A resposta fez o protagonista cruzar os braços com uma das sobrancelhas erguidas e a cabeça tombar para o lado.

一 Eu sou um vestígio da Constelação de Pictor. Uma parte da sua luz separada da sua luz principal. Um fragmento.

O semblante da entidade se torna ainda mais sorridente. Ela parece gostar muito do garoto.

O esclarecimento foi compreendido por ele, que não parou muito para pensar e rapidamente voltou a falar.

一 O que é esse lugar, no fim das contas?

一 A Ruína, você diz?

一 Isso.

Expondo o palmo para cima em um girar de pulso, o fragmento expõe uma tela totalmente em branco de um quadro.

Todavia, de uma única vez, pontos eclodem em diferentes posições dessa tela. Mas deixando ainda muitos espaços em branco e alguma distância entre si.

一 O céu dessa Ruína é como essa tela. Por mais que haja algo ocupando, sempre haverá espaço para mais. Os pontos são as ilhas.

O garoto leva uma das mãos até o maxilar.

一 E as ilhas são o que?

O quadro se expande ao ponto de ficar gigantesco acima da cabeça dela. Nessa perspectiva, os pontos ficam mais evidentes e restritos, como se fossem parte de uma vidraça quebrada.

一 Histórias que Pictor observou até o momento em que a Ruína chegou até vocês. Cada história aqui é um registro, uma memória exposta para ser compartilhada.

Raisel já havia chegado na conclusão após todos esses acontecimentos. Essa foi apenas a confirmação para a sua próxima pergunta.

一 Então, todas elas existem ou já existiram?

A pergunta fez os olhos tremerem em apreensão, com receio.

一 Exato. Nem todos estão vivos realmente, há aqueles que estão, como o dragão que você encontrou e outros que estão mortos, como a Rainha das Neves.

Ao ouvir a palavra “dragão”, Yurgen parece dar um soluço. O olhar dele cai para o discípulo incrédulo.

一 Você encontrou um dragão?

一 Pois é… Mas as ilhas não se repetem e são visíveis pra todo mundo? Achei que você tivesse encontrado ela também.

Ao responder de modo sem graça, a questão realmente traz uma névoa em sua mente.

一 Assim como na vida, há histórias que não querem se revelar para qualquer um. Esses são segredos. Meu trabalho aqui é avaliar se você está adequado para compreendê-los ou não.

A voz de Pictor ressoa com satisfação.

一 A experiência individual das pessoas aqui são únicas, Ray.

Em seguida, o experiente arqueiro volta a falar.

一 Fyodor é conhecida como uma das Ruínas que não tem padrão claro. Por isso quase não há pessoas aqui, é um risco muito grande para poucos ganhos financeiros.

A testa dele se contrai com desapontamento enquanto encara o discípulo.

一 Eu já expliquei isso pra você.

Por outro lado, Raisel desliza o olhar do avô para a entidade enquanto ri de modo envergonhado.

Em um coçar de garganta, ele volta a falar.

一 Sobre essa “Rainha das Neves”, Pictor, você diz a Hiseld?

一 Correto.

一 Pode me falar mais sobre a história dela?

Yurgen permaneceu calado. A primeira vez em Fyodor é fascinante, mas por serem experiências únicas, não há como experimentá-las de novo e o seu trajeto aqui só se percorre em ilhas neutras.

Pictor suspendeu o enorme quadro acima da cabeça e pareceu fechar os olhos, buscando as informações que foram fornecidas para a Ruína.

一 Viveu em uma terra distante chamada Borealis nos tempos atuais. Não há informações o suficiente sobre o presente falando quem ocupa, mas no passado foi palco de uma grande guerra entre os Jotnar e os seus descendentes.

Com atenção, Raisel escuta apreensivo em busca de compreender toda a história.

一 Os Jotnar são seres ancestrais que surgiram de Ymir, o Primeiro Gigante. Mas Ymir se rendeu aos interesses de Odin e as raças descendentes dos Jotnar, como os Eisikalt, foram sentenciadas à extinção.

O avô, com curiosidade, permanece intrigado ao imaginar como foi a experiência do garoto. Por isso, leva os olhos de canto para observá-lo.

一 Bergelmir, o representante dos Eisikalt foi capturado e poupado por ordens de Odin. Hiseld, sua esposa, tentou libertá-lo diversas vezes mas falhou em todas até que se suicidou em melancolia no pico de uma montanha.
Ao ouvir sobre o fim da companheira, o olhar do menino caiu. As esperanças de encontrá-la novamente foram completamente destruídas.

一 Sua morte espalhou o seu sofrimento por toda a região com a indignação de Aquarius, o que transformou Borealis em um eterno paraíso congelado e uma região cujo tempo corre diferente do resto do continente.

Ao fim, a figura etérea abre o olhar novamente.

O rapaz respira profundamente e levanta o semblante.

一 Obrigado, Pictor.

一 Não há de que. Resta mais alguma dúvida?

Ele passa a mão na nuca enquanto desvia o olhar.

一 Eu conheci animais falantes, de qual região eles são?

Novamente, a figura fecha os olhos e começa a pesquisar.

一 Animais falantes… Eu ouvi dizer que eles fazem parte do território de Roderich.

一 Roderich?-

一 Os animais falantes fazem parte da Floresta Lobelis, uma região que está sob influência da Calamidade da Natureza. Não há mais informações.

O curto diálogo de Yurgen e Raisel é interrompido pela voz feminina.

“Calamidade da Natureza! Por isso senti uma força parecida com a Tifra sobre a fruta Valfra! Ambas foram corrompidas pelas energias massivas das Calamidades!”

Os olhos de Raisel se abrem com surpresa após o esclarecimento.

一 Mais alguma dúvida?

Pensativo, o protagonista permanece com a mão ocultando os lábios.

“Minha única dúvida agora é sobre as armas Verbin, mas parece que o vovô as conhece. O que resta é…”



一 Pictor, no cenário da Floresta Lobelis, na ilha dos pilares gigantes, você disse que a região estava sobre a influência da Calamidade da Natureza. Mas lá tinha Batedores de Balmund. Eles faziam parte do cenário?

Ao ouvir isso, Yurgen se surpreende por um único momento e, em seguida, se aproxima do garoto.

一 Não há registro sobre Batedores de Balmund no cenário da Floresta Lobelis.

Sem entender, o rapaz muda a atenção sobre a Constelação para o mentor.

一 Esses Batedores de Balmund, você os matou?

一 Sim.

As mãos do arqueiro se fixam sobre os ombros do menino.

一 Precisamos ir agora. Eu, a Carmen e as crianças nos encontramos com uma dupla de Batedores antes de te encontrar e virmos pra cá.

一 Então eles…

一 Sim, eles entraram aqui depois da gente, provavelmente nos seguiu. Precisamos ir.

Incrédulo, o rapaz desviou o olhar para o chão.

“Eu matei… pessoas reais?”

A sensação da lâmina fatiando as suas carnes se torna mais pesada. Afinal, depois que Kaelduryx expôs sua energia para fora da ilha, pensou que aquelas pessoas faziam parte do cenário considerando a fala de Shishika, a coelha.

一 Pictor, vamos encerrar por aqui. Nos mande para fora, por favor.

Assumindo as rédeas enquanto o discípulo está em choque, Yurgen ordena para o fragmento.

Apontando o palmo para a dupla, a figura sorri uma última vez.

一 Que a benção de Pictor os acompanhe.

A porta de pedra sobre o gramado fragmentado em tons de azul, no fim, volta a brilhar.

Desse ofuscar, tanto Raisel quanto Yurgen reaparecem em frente a entrada de Fyodor.

Na perspectiva do garoto, o mundo ao redor parece distorcido. Os sussurros que haviam desaparecido começam a ganhar força. Contudo, o sol parece subir em meio ao horizonte que vai se clareando no fim da madrugada.

一 Raisel, olhe pra mim.

Assustado, o semblante do menino se fixa sobre o mentor.

一 Não se sinta culpado de ter matado pessoas. Lembre-se que elas não se sentiriam assim por você. A maioria delas te assassinariam à sangue frio.

一 Você precisa ser forte, mas não precisa carregar o peso delas em seus ombros. Provavelmente você precisará matar mais daqui para frente, mas farei o possível pra aliviar o seu fardo.

Conforme as palavras são ditas, o mestre se aproxima cada vez mais. O peitoral dele, enfim, encobre o garoto junto dos braços.

A sensação acalorada é aconchegante. As dúvidas que estão sobre a sua mente começam a ser incineradas.

一 Descanse. Você fez bem.

Fechando os olhos, o frio se foi totalmente. O menino abraça o avô sob a luz do sol nascente.

一 Obrigado, vovô…

No abraço, o peso de mais uma lâmina fere as costas do velho. Uma sensação de culpa o acompanha por ter feito isso com uma criança, mas não há como evitar.

O remorso e a amargura já preenchem o coração do homem há muito tempo. O seu olhar já não brilha mais como quando era jovem.

一 Vamos ir até o Distrito de Balmund agora. Estou preocupado com Carmen e as crianças. Se os Batedores nos seguiram, eles foram atrás deles também.

Afastando-se, Raisel acena com a cabeça.


一 Relaxe um pouco. Consegui recuperar um pouco de força ali dentro, o fragmento não vai crescer caso eu use Gewissen, mas após cada uso, precisarei meditar.

一 Tá bom.

No amanhecer, ambos partem para a direção da floresta enquanto a porta de Fyodor fica para trás.

A perspectiva se afasta indo em direção ao céu enquanto gira.

Do outro lado, entre incontáveis arranha-céus, fluxos de pessoas e barracas, mas dentro de uma sala escura, há Carmen, Lavi e Lila encharcados de vermelho.

Deitados sobre mesas tombadas e cadeiras derrubadas, eles parecem tremer completamente paralisados…