Capítulo 37 - Inalcançável
Um vendaval formidável chacoalha a paisagem mórbida.
A névoa estremece como um véu enquanto o perigo ainda está à espreita.
Esse é um lugar corrupto, pois só de estar presente é um desafio.
O cheiro amargo e azedo consome as narinas, a sensação de ser observado perdura e a situação de encarar o completo desconhecido afrouxa os joelhos.
“Se acalme… Eu passei por Fyodor justamente pra essas situações.”
Os olhos de Raisel deslizam buscando algo além das árvores implacavelmente.
Para enfatizar a sua busca, a coloração dourada sobre o olhar ganha ainda mais nitidez. Tal brilho ofusca os arredores sob a sua perspectiva, reduzindo toda a paisagem em uma visualização energética.
Logo, assim como Yurgen havia dito, as Trevas atrapalham o visualizar da luz. O Gewissen nesse lugar está ondulante e curvo, sem perceber com exatidão de onde vem a aura azulada que está mantendo os dois sob o efeito da ilusão.
“Com o Zienung não vai dar…”
A espada em posse se deita enquanto os olhos dele se fecham.
Ao esticá-la para frente com a mão destra, o palmo esquerdo pousou sobre a lateral da arma direcionada aos céus.
Separando os pés, o rapaz concentrou o seu ímpeto.
O dourado sobre o seu corpo é restrito como um contorno leve, uma silhueta cintilante naquele instante.
Um respirar profundo infla os seus pulmões, mas revigora a sua determinação.
Acima da cabeça dele, a estrela que parecia ter desaparecido quando enfrentou Khinayen, reaparece.
Os olhos se abrem como uma explosão. A íris amarela, antes imaculada, ganha destaque com um azul parcial vindo do fundo das suas pupilas.
“Kalte Welle!”
A própria voz ecoa da mente com voracidade!
Em um balançar único da espada em um círculo, a lâmina corta o chão ao redor de Carmen e Yurgen.
Ao mesmo tempo, a luz dourada do menino no golpe sobe em uma espiral fluída encobrindo os vulneráveis como uma pilastra transparente rodopiante, um redemoinho.
No outro instante, ele toma uma postura de avanço. Curiosamente, o olho esquerdo se fecha.
A arma é apontada em uma preparação de estocada, o ombro esquerdo está à frente enquanto as mãos estão próximas do peitoral.
Liberando a concentração do seu Gewissen, a aura do menino se expande como um domo para os arredores. A expansão é veloz ao ponto de iluminar a paisagem.
“Não os sobreponha. Coloque eles um ao lado do outro…”
Nessa postura e preparação, o olho esquerdo fechado visualiza o Schaltung de Aquila dentro de si. Porém, ao mesmo tempo, o olho direito aberto mantém o Schaltung de Aquarius ativo.
O resultado de seu treinamento em poucas horas na sala da Toca da Gata, está aqui.
Após banhar a paisagem com a sua energia, o Zienung visualiza todo o ambiente com mais clareza.
Uma cabana está adiante. De lá é de onde vem a energia que prende a mulher e o velho na ilusão.
A cabana é reduzida a um mero ponto brilhante em dourado.
Então, a energia na espada começa a fluir e a se concentrar na ponta.
Em um lapso, os braços de Raisel engatilham a estocada para frente.
“Zienung: Eisam!”
A perfuração avança como um relâmpago em direção ao alvo cruzando e perfurando o que estiver em seu caminho.
Não sabia ao certo o que ou quem está lá dentro do casebre, mas o ataque é forte o suficiente para alertar o inimigo.
Em um piscar de olhos, o feixe perfurante passa pelo casebre indo além das suas paredes.
Ao mesmo tempo, um urro agudo de dor ecoa pela paisagem.
As folhas secas pelo chão se levantam com a intensidade do berro.
“Eu atingi, mas não sei o quão grave foi…”
A névoa envolvendo o local começa a ficar menos densa. De longe, a cabana é capaz de ser vista.
一 Raisel!
一 Ray!
A voz dos dois mentores vem de trás.
Em um suspiro de alívio ao se virar para eles, os olhos dele se abrem. A barreira que os protege se desfaz e a concentração para manter os dois Schaltung ativos é desfeita.
一 Vocês estão bem?
A mulher encara o homem ao lado por alguns instantes.
De maneira meio desconfortável, eles riem.
一 Estamos… Vamos atrás de quem armou essa ilusão. Não perca o foco.
O velho convoca Svartgren que é devidamente empunhado.
A mão da ruiva se estende e o seu florete também surge.
Enquanto caminham em direção ao malfeitor, um tremor de terra vindo de lá, os alerta.
A energia azulada dessa pessoa ganha ainda mais força ao ponto de envolver toda a cabana como uma névoa espectral.
Das janelas, projéteis de energia de diferentes tamanho sobem aos céus rasgando o ar.
一 É um feiticeiro!
A ruiva rapidamente toma à frente do grupo.
A mão destra expõe a arma na vertical à frente do corpo, os tornozelos bem unidos e a postura ereta, demonstram uma atmosfera nobre.
O dedo indicador e médio da mão esquerda passa por toda a extensão da lâmina, de baixo até à ponta.
Com isso, a aura da mulher acompanha o deslizar dos dedos. A sua energia serrilha em faíscas por todo o armamento.
Os projéteis vindo do céu começam a cair como trovões. Mas Carmen não hesita ao encará-los.
A tempestade se aproxima cada vez mais, mas os dois logo atrás não estão preocupados.
Quando finalmente estão prestes a acertá-los, a ruiva move a espada uma única vez para a horizontal enquanto pisa firmemente contra o solo.
“Verkehrt: Fliessen!”
Nesse instante, uma quantidade abissal de cortes é gerada os envolvendo como uma cúpula. A ferocidade dos ataques eliminam com rapidez os incontáveis projéteis enquanto se expande cada vez mais.
Em poucos segundos, o ambiente se tornou caótico. As esferas, setas e lanças de energia azul colidem como fogos de artifício e são desfeitas em partículas por cada corte.
As marcas das rupturas de todos os tamanhos feita por Carmen destruiu parte da paisagem, deixando as árvores mortas como mera poeira.
Com a calmaria após o conflito, a área aberta começa a ser preenchida com uma dezena de silhuetas de pessoas.
一 São ilusões?
O olhar de Raisel se dirige ao mentor.
一 Não. São pessoas.
Um homem segurando um ancinho se aproxima do trio. Ele, por sua vez, tem lágrimas saindo de seus olhos e a sua expressão é completamente descontente.
Pelas vestimentas, parecia um camponês comum.
一 Não ataquem a Bruxa da Floresta! Se não, vamos ter que parar vocês!
Ao fundo é visível as pessoas também preparadas para o combate. Mesmo com parte do corpo coberto pela neblina, provavelmente estão com a mesma expressão desse homem.
O protagonista se prepara para o combate.
Entretanto, Yurgen e Carmen desconvocam as suas armas.
Paralisado, o garoto os encara.
一 Não vamos atacá-la. Confie em mim.
O mentor toma à frente.
Nesse momento, as costas do velho arqueiro tapam a sua feição. Mas ao vê-lo, o camponês parece ficar mais tranquilo aos poucos.
一 Aproveite os seus sonhos. Não vamos tirar isso de vocês.
Um sorriso discreto de lábios se estende pela barba grisalha. Mesmo não podendo ver os olhos acinzentados, é nítido que a expressão de Yurgen afetou o camponês.
Com lágrimas nos olhos, o semblante do homem segurando um ancinho se contorce. A cabeça dele se abaixa, mas as sobrancelhas estão contraídas. Lágrimas escorrem com mais força.
“Eles estão tristes ou… felizes?”
A espada das cinco estrelas desaparece em poeira dourada.
Essas pessoas, por sua vez, pouco a pouco voltam a se perder no horizonte do nevoeiro.
Por outro lado, o caminho em direção a cabana está completamente livre.
一 Vamos.
A voz do mentor ganha destaque com o som de seus passos. Carmen, pela primeira vez em muito tempo, está em silêncio.
Ao fundo, é visível a porta da cabana se abrindo. Lá dentro, apenas o breu parece os esperar…
Subindo os poucos degraus para acessar a porta, a madeira está frágil ao ponto de sentirem o assoalho prestes a se partir.
Então, eles vão um de cada vez em direção ao lado de dentro da construção. O primeiro a ir é Yurgen, seguido por Carmen e Raisel.
Do lado de dentro, é ainda mais frio do que estar exposto ao sereno da madrugada. Diferente do cheiro azedo e amargo da corrupção, esse lugar exala um odor de mofo e poeira.
Há poucas velas acesas do lado de dentro. É uma cabana pequena em meio à floresta. Por isso, há apenas três cômodos.
Caminhando da sala para o corredor, eles avançam até um quarto mais ao fundo. O rastro de sangue do ferimento demonstra que o rapaz acertou a estocada de longa distância.
Quando passou da porta do quarto, o velho paralisou. Carmen logo ao lado tem a mesma reação.
Desconfiado, o coração do menino começa a bater com mais força.
O grunhir vindo do canto da parede, mostra uma pessoa resistindo a uma certa dor.
Ao ter os olhos dourados sobre a figura no cômodo pouco iluminado, vê uma garota com roupas esfarrapadas, um chapéu esquisito e uma cabeleira levemente ondulada dividida entre o preto predominante e as pontas esbranquiçadas.
Em um tom baixo, os lábios trêmulos emanam uma voz ruidosa e rouca:
一 O-O que… vocês querem?
Por entre os fios, é notável o tom de azul escuro dos seus olhos pulsando para fora. Ela está com medo ao ponto de tremer e estar recolhida no canto do quarto.
一 Não vamos te fazer mal. Eu me chamo Yurgen, essa é a Carmen e o garoto é o Raisel.
Em silêncio, ela desliza os olhos sobre os três. Das laterais da cabeça, algo parece se mexer. O cabelo volumoso abre espaço para orelhas pontiagudas caídas.
“Uma meio-elfa…”
O olhar de Raisel se encontra com os olhos dela.
Quando isso acontece, o menino sente uma pontada vinda do peito. Uma dor insuportável ao ponto de fazer a sua consciência quase se esvair.
Em alguns passos para trás, o rapaz escora a mão contra a porta.
“O que foi isso?”
Carmen o encara sem entender.
一 Tá tudo bem, Ray?
一 Sim… Não foi nada…
Por algum motivo, o ar ao redor da ruiva está melancólico desde que despertou. Yurgen, por outro lado, não houve muita mudança. O seu olhar de tristeza é algo natural.
一 V-Você não me respondeu… O-O que querem?
De maneira áspera, a meio-elfa permanece desconfiada. Arisca como um gato.
一 E-Eu fiz vocês verem os seus m-melhores sonhos… P-Por que m-me atacaram?
Ela não parece entender o motivo de ser atacada. Os adultos, por sua vez, parecem lamentar.
O garoto, por outro lado, toma à frente.
一 Eu não queria ficar preso em um sonho! Não é a realidade!
Balançando o braço com certa fúria, não se conforma pela exposição dos adultos. Tê-los vulneráveis sendo pegos na técnica, poderia ser fatal caso estivessem cercados de monstros.
一 Mas eu nunca os f-forcei a v-verem os sonhos… V-Você despertou, n-não foi? Eles também p-podiam…
Ao ouvir isso, a base sobre os seus pés pareceu estremecer. Ele ouve, compreende, mas ainda questiona o fato.
Os olhos do rapaz vão em direção ao mentor. A feição dele é de desapontamento. Carmen também não está muito diferente.
一 Vocês… preferiram ficar numa ilusão invés de acordarem?
A voz dele se propaga de maneira mansa.
一 E o que você me falou… de que as coisas não seriam como antes… De que agora é encarar essa realidade e seguir em frente!?
O tom sobe à medida que o garoto se indigna. Ele jamais esperaria algo assim do seu avô, o seu mentor e o mestre das suas práticas com arco, ou de Carmen, a sua mestra com a espada.
Os dois apenas ficam em silêncio ao ouvir o sermão. Contudo, Yurgen suspira e respira com calma.
一 Nós… entendemos a sua frustração, Raisel. Mas nós estamos velhos, cansados. Não há um dia em que não nos arrependamos de algo… Ter a chance de reviver memórias, de presenciar algo que nunca aconteceu, mas que gostaríamos que acontecesse… É algo raro. Precioso demais.
O monólogo de Yurgen é acompanhado com uma dor. Os arrependimentos, as suas falhas, estão cravados em suas costas como lanças. Por outro lado, Carmen sente as suas cicatrizes arderem. Não as da pele, mas as das mágoas em seu coração.
Ela abraça os próprios ombros.
Ele cerra os punhos com força.
O garoto, por outro lado, se decepciona com a fragilidade de ambos.
一 Eu não posso ter vivido muito… Não vi as coisas que vocês viram… Ou muito menos presenciei o que vocês presenciaram… Mas mesmo assim, não desistam assim tão fácil… Se vocês ficassem daquele jeito pra sempre, o que seria de mim, ou do Lavi, da Lila?
Com suas próprias lágrimas, ele refresca a dor antiga que os acompanha.
Os olhos do arqueiro se abrem com clareza. O azul cintilante aos olhos da espadachim se conformam com mais uma escolha errada.
O abraço reconfortante em si mesma aos poucos se afrouxa.
Os punhos de Yurgen se abrem gradualmente.
一 Desculpa, Raisel. De verdade.
O mentor caminha até o rapaz com alguma lentidão. O palmo dele repousa sobre a cabeleira castanha do neto chorão.
一 Seus idiotas… Pensem mais nos outros…
Rapidamente, ele se recompõe. As lágrimas são enxugadas com o antebraço.
A ruiva respira fundo e bate algumas palmas.
一 Foco! Foco! Qual… é o seu nome, garota?
A mulher desliza o polegar tirando alguma água do canto dos olhos. A ruiva, portanto, se agacha para ficar na altura da outra recolhida no canto.
一 J-Jeanice… Jeanice Asdoth…
O semblante de Carmen resplandece com um sorriso gentil.
一 As pessoas lá fora gostam muito de você, Jeanice.
Ao ouvir aquilo, a jovem tenta sorrir. Mas o que cobre a sua feição é a mais pura das tristezas.
一 E-Elas não gostam de m-mim… E-Elas gostam do que e-eu faço… N-Ninguém nunca entrou a-aqui dentro.
Com as palavras, Raisel olha para os lados.
O quarto está repleto de pelúcias costuradas a mão.
Com fantoches e rabiscos de pessoas grudadas nas paredes de papel.
Um cenário indescritível de solidão.
Do bolso da calça, Yurgen retira uma espécie de cilindro enrolado em tecido. Desfazendo as ataduras, é revelado um cristal verde.
一 Encoste no seu ferimento. Vai melhorar.
O homem estende para Carmen, que pega e direciona para Jeanice.
Ela encara o objeto com desconfiança.
Não sabia o que é receber uma gentileza, mas ainda assim, faz as pessoas verem os seus sonhos como forma de receber alguma aceitação.
Com hesitação, o palmo dela com unhas negras e roídas, se aproxima do cristal.
Ela é magra, repleta de cicatrizes de coceira no antebraço, ou melhor, parece isso. Pois há faixas que estão enroladas por eles, mas frouxas.
No fim, ela pega o cristal e direciona até a perfuração no ombro com cuidado. Ao fazer isso, parte do objeto derrete com o calor do sangue e fecha a ferida de dentro para fora.
Deslumbrada, toda a dor se foi.
Os olhos da feiticeira se levantam até as pessoas desconhecidas.
一 Entendeu que não vamos te fazer mal?
O velho complementa com um sorriso vindo da barba grisalha. Por outro lado, Jeanice acena com a cabeça quase imperceptivelmente.
一 Posso perguntar algumas coisas pra você?
Com o arqueiro tomando à frente, Carmen volta ao lado de Raisel.
一 P-Pode…
一 Asdoth é o nome de uma das famílias nobres que viviam em Kromslaing. Você fugiu de lá e ficou aqui por todos esses anos?
O questionamento faz a garota paralisar.
Ela encara o chão relembrando memórias dolorosas. São vislumbres de pessoas sendo consumidas, arrastadas em direção à escuridão.
Horrorizada, leva as mãos até a cabeça e se encolhe novamente.
Trêmula, é possível ouvir a respiração ruidosa.
一 N-Não… I-Isso não…
Coçando a barba com alguma preocupação, o homem olha para trás encarando especificamente Carmen.
Os dois se olham em silêncio e, após alguns segundos, ela acena com a cabeça.
Então, o olhar dele novamente desce em direção a garota abandonada.
一 Jeanice, quer vir com a gente?
Raisel os encara de soslaio.
Não podia contestar, mas levar uma pessoa tão fragilizada para onde as suas memórias mais dolorosas estão, poderia ser perigoso.
Contudo, deixá-la aqui eventualmente a mataria. Seria usada por toda a vida por essas pessoas em busca dos seus motivos egoístas, fugindo das suas realidades…
Aos poucos, a noite nublada encontra a plenitude da luz do luar.
Ultrapassando as telhas esburacadas, parte do seu brilho prateado encontra o rosto pálido da garota.
Ela encara o velho por alguns instantes com grande fascínio.
Engolindo os seus traumas, ela morde o lábio inferior.
Os palmos deles se unem enquanto as olheiras de Jeanice ganham destaque.
Ambos visualizam a escuridão um do outro.
Com um puxar, a meio-elfa se levanta. É quase do tamanho de Yurgen, maior do que Raisel e Carmen.
一 P-Para o-onde?
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