Capítulo 38 - Um Novo Eu
Agora, o quarteto caminha buscando circular pela base da montanha sem se aproximar do cerco que isola Kromslaing.
Yurgen e Carmen seguem na frente, enquanto Raisel e Jeanice estão lado a lado. Coberta por um manto negro, a garota anda cabisbaixa e até de maneira corcunda.
Encarando-a de soslaio, o rapaz se sente desconfortável por não saber ao certo como se conectar com ela, ou melhor, até mesmo como conversar com essa pessoa.
Por isso, passa a observar o céu cada vez mais limpo e mais perto do fim da madrugada.
O silêncio o faz divagar pela cena de alguns minutos atrás.
Ao ter os olhos sobre o luar, a sua luz adentrava pelos buracos na cabana.
Lá dentro, Yurgen não se assustava com o tamanho da meio-elfa que, rapidamente, se inclinou com o mau jeito nas costas.
一 Nós estamos tentando encontrar Imoriel… Soubemos que ele apareceu pela última vez em Kromslaing. Queremos entrar lá por isso.
Com certa inexpressividade, a feiticeira encarava o velho. A sua reação de desespero, como a de poucos minutos atrás, não veio.
Ela portava um semblante calmo, mas um olhar que se abaixou. Como se revivesse outras memórias que, de certa forma, parecia aparar um pouco os espinhos do seu coração.
一 É-É muito perigoso… H-Há uma dezena de Cavaleiros e d-dois de Elite.
Apreensiva, ela une os palmos e entrelaça os dedos. Contudo, os polegares afiados deslizam um contra o outro. Para ela, ponderar sobre a ideia de invadir um local tão bem protegido seria questão de tempo ao serem percebidos.
一 A-Além disso, ainda e-existem pessoas que f-ficaram lá… N-Não sei como elas estão, m-mas elas podem estar G-Gelöscht.
As falas da garota deixam claro para Yurgen e Carmen o que significava aquele termo. Afinal, eles parecem ter soluçado ao mesmo tempo que ouviram aquilo.
Os olhos dourados de Raisel deslizaram até a ruiva ao lado. Ela, por sua vez, se aproximou da orelha do menino para cochichar.
一 Geloscht é quem teve o Glanz apagado, corrompido. São basicamente os Pagãos.
O menino acenou com a cabeça brevemente após entender o que isso significava.
“Superar um cerco de Balmund e lá dentro procurar pistas, enquanto enfrentamos uma força que os próprios Reinos não conseguem extinguir… Parece realmente loucura de outro ponto de vista.”
Um suor escorreu da bochecha dele.
一 Nós vamos mesmo assim. Existem pessoas que queremos salvar… E entrar lá é a única escolha que temos.
Com essas palavras vindas do velho, toda a hesitação palpável pelo ambiente veio a desaparecer. A nitidez dos seus objetivos, de todas aquelas pessoas, parecem iluminar parte da visão escura que tomou conta da perspectiva de Jeanice.
Ela os encara com admiração.
一 Um deles é um meio-elfo, como você. Ele se chama Tejin.
Esse foi o ultimato para a garota.
“U-uma outra pessoa igual a mim…”
Aproximando o palmo para mais próximo do coração, um imperceptível sorriso se formou em seu rosto. O olhar dela se levantou em direção ao grupo.
一 E-Eu vou com vocês… P-Por favor, tenham p-paciência comigo.
Naturalmente, ela se curvou ainda mais. A postura dela já é horrível com as costas inclinadas, mas de alguma forma, essa atitude não foi acompanhada de violência. Pelo contrário, pela primeira vez, o palmo de alguém acariciou a sua cabeleira desbotada.
一 Não se preocupe. Pode contar com a gente.
Nesse momento, ela parecia estar prestes a dizer algo. Mas engoliu as suas palavras. A mesma hesitação doía o seu coração ao ponto de fazê-la estremecer levemente.
Portanto, ela apenas acenou com a cabeça.
Raisel e Carmen se direcionaram para fora da cabana.
一 Se ela vai com a gente, como vão ficar essas pessoas?
Ao fundo, era visível alguns camponeses entorpecidos pelos sonhos causados pela habilidade de Jeanice.
一 Acho que vão despertar aos poucos, se reunir em volta da cabana até alguém resolver entrar. E depois…
De braços cruzados, a ruiva os observava com uma feição de quem sabe o que aconteceria quando pessoas têm o que acreditam ser seu retirado.
O menino, por outro lado, sentia um certo incômodo.
“Para eles buscarem viver assim, significa que não resta mais nada… O vovô mentiu dizendo pra eles que não os tiraria do sonho…”
Os lábios se contraem com certo desgosto.
Yurgen se aproximou dos dois ao sair da cabana.
一 Ela está pegando as suas coisas.
O homem também via os iludidos, mas diferente da espadachim ou do aprendiz, um sentimento diferente preenchia o seu peito.
Era inveja.
Lá dentro, Jeanice se despedia dos seus amigos nas prateleiras, pela cama e aqueles desenhados na parede.
一 D-Desculpa, pessoal… E-Eu vou voltar aqui pra pegar vocês.
Com uma varinha distorcida como se fosse repleta de ossos, articulações, ligamentos e carne em uma coloração negra na cintura, ela pegou um manto e se preparou para sair do quarto.
Porém, de frente para a porta, os seus pés não conseguiam ir além sozinha.
Hesitante. Essa é a palavra mais próxima para descrever a maneira como o corpo dela estremecia com a mera possibilidade de ser abandonada de novo. Seria o certo seguir essas pessoas?
“E-Eles não bateram em mim… N-Não me chamaram de feia… De h-horrenda… De aberração… Todos eles conseguem b-brilhar tão bonito… Será que eu…”
Apertando os punhos, as próprias unhas se fincam brevemente contra o palmo.
Ao encarar de lado, tinha uma espécie de gato com olhos de botões.
“Senhor Oddy…”
O palmo dela buscou a pelúcia como um vulto. Por baixo do manto, ela o segurava abaixo da axila.
Agora, os pés saem e ela caminha em direção a luz vinda do lado de fora da cabana.
Com o brilho do luar os acompanhando há alguns minutos, Raisel novamente desliza os olhos até Jeanice.
Porém, o som de algo explodindo e uma fumaça subindo, fisgam a sua atenção
“Isso veio…”
As sobrancelhas dele se contraem.
Instintivamente, ele busca a garota ao lado.
Ela parece ainda mais surpresa do que ele.
Desacreditada.
Ao virar-se para frente novamente, os dois adultos encaram com certa lamentação, mas conformidade.
“Eles sabiam que isso iria acontecer?”
A meia-elfa cai de joelhos.
Por baixo do manto, os braços dela seguram Senhor Oddy com ainda mais força.
O rosto dela se afunda contra a pelúcia.
Entre soluços e ranho, o choro dela é silencioso.
Vê-la nessa situação, fez ele se lembrar de quando a Ruína caiu.
“Naquele dia, eu estava assim? Não, talvez até pior…”
Por trás da jovem ajoelhada e abatida, Raisel se aproxima e encosta o palmo sobre o ombro dela.
O velho se abaixa do lado esquerdo e a ruiva do lado direito.
一 Desculpa, Jeanice… Mas deixar você lá seria pior. Pode contar comigo, com o Yurgen ou com o Ray… Estamos com você.
Os olhos de Carmen acolhem o olhar cansado e maltratado da meia elfa. Elas se encaram em silêncio e, aos poucos, a garota para de chorar.
Secando o ranho no manto, ela reúne forças para se levantar.
一 O-Obrigada… Me desculpem p-por ser tão fraca… Não q-quero atrapalhar.
O velho sorri brevemente.
一 Fique tranquila. Nós também somos fracos… Afinal, a gente tá junto~
Com essas palavras, a ruiva discordaria se essa fosse uma situação normal. Entretanto, ela apenas suspirou como quem deixaria passar dessa vez.
O rapaz também sorri.
Retomando a caminhada, as luzes no fim da floresta morta próximo ao cerco estão cada vez mais fortes.
Por outro lado, a cabana destruída pela revolta dos desesperados fica para trás.
Enquanto o trio caminha, Jeanice diminui os seus passos. Um respirar profundo marcou o início da sua resistência. Como eles, ela também queria brilhar.
一 Q-Quando eu era pequena, eu e-encontrei Imoriel…
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