Capítulo 39 - A Graça da Névoa

A revelação de Jeanice ressoou em conjunto com uma brisa mais quente na madrugada.

O céu noturno começa a se encolher contra o tom claro do horizonte. Por de trás do morro, o sol começa a nascer.

Os três se viram para trás quase ao mesmo tempo.

Os olhos dourados de Raisel se fixam sobre ela ainda boquiaberto. Um suor lateral escorre na sua feição, como se não tivesse acreditado no que acabou de ouvir.

À esquerda, Carmen abaixa brevemente a cabeça. Os olhos azuis claros fixam com repleto interesse.

À direita, o olhar cinzento e afiado de Yurgen não se abala, pois isso era algo que ele, no fundo, já esperava ao ouvir o sobrenome dela.

“A família Asdoth era uma das três famílias mais influentes da antiga Kromslaing. É natural que eles já tenham encontrado Imoriel, por ser uma cidade que cultua a Calamidade da Moral, mesmo no território de outra Calamidade.”

O pensamento do arqueiro sela a confirmação da meio-elfa.

Com o silêncio dos três, a feiticeira reúne mais um pouco de fôlego. Levantando o olhar para encará-los de frente, ela até tenta manter contato visual constante, mas parecem ser repelidos pelo hábito da sua insegurança.

一 N-Não me lembro o-onde foi, ou q-quando… Mas tinha uma pessoa que s-segurava um amuleto estranho. P-Parecia uma espécie de ritual, t-tinha várias pessoas em volta de um altar a-assim…

Mordiscando os lábios, Senhor Oddy é deixado abaixo do braço. Os palmos livres tentam gesticular com formas geométricas como era o lugar. Porém, pela falta de costume de como fazer isso com clareza, parece ser mais atrapalhada do que eficiente.

一 O a-amuleto brilhou f-forte e eu fechei meus o-olhos. Nessa hora, eu t-tentei abrir mas não vi n-ninguém além da empregada que segurava a minha mão… Tava tudo escuro e eu fiquei com m-muito medo…

Os gestos, aos poucos, se cessam. O olhar da meio-elfa cai para o chão, assim como as orelhas pontiagudas se abaixam.


一 M-Mas apareceu alguém encapuzado… Não t-tinha rosto e nem nada… Parecia v-vir um calor dele, só que o f-frio também. Aí ele apontou pra n-nossa direção uma espécie de amuleto e tudo c-clareou de novo…

Gradualmente, o semblante dela sobe. O olhar hesitante demonstra já algum arrependimento por ter aberto a sua boca sem necessidade.

“Será que isso pode ajudar eles de algum jeito? Não contei nada de relevante… Parecia uma boa ideia… Me desculpem por ser tão inútil…”

Porém, mesmo com o rosto exposto, os olhos dela se negam a visualizar a decepção das pessoas.

Parecia estar convencida de que seria repreendida por dizer coisas desnecessárias. Então, se preparou para ter a dor rotineira da sua infância…

一 Isso foi muito importante, Jeanice. Tem algo a mais?

Um trovão rompe a escuridão da sua mente com essas palavras. Ela encontra o olhar de Carmen, sorridente.

Ao lado, Raisel está contente.

Porém, o velho está pensativo.

一 N-Não… Me desculpem…

Após ela se desculpar, a mão da ruiva abana pedindo para ela se aproximar.

Receosa, a garota vai de encontro com a adulta.

O fato da feiticeira ter uma postura ruim, facilita para a espadachim acariciar a sua cabeça, mesmo sendo bem mais baixa.

一 Não precisa se desculpar. Foi uma informação muito boa. Pelo menos sabemos que precisamos achar um amuleto pra encontrar Imoriel.

Em silêncio, a franja sobre o semblante serve como uma máscara para tapar as suas bochechas avermelhadas, mas as suas orelhas ruborizadas expõem o seu sentimento enquanto balançam para cima e para baixo.

O menino desliza o olhar até o idoso.

一 Sabe que tipo de amuleto é, vovô?

Ele, ainda pensativo, não consegue encontrar nada em suas memórias para dar um norte sobre esse objeto. Contudo, ainda assim, ele vem a suspirar e a encostar o palmo sobre a própria nuca.

一 Não tenho ideia de qual seja, mas deve estar relacionado à alguma Constelação. Provavelmente a mesma que abençoou Imoriel… Caso contrário, não vejo o porquê dele atender o chamado.

As palavras do mentor também não pareceram ser grande coisa para si mesmo, mas isso clareia um pouco a percepção de Raisel sobre o que são as Calamidades.

“Calamidades respondem convocações por parte das suas Constelações Protetoras? Então não só são existências de grande poder…”

Então, um segundo vento fisga a atenção do menino que o acompanha com o olhar. Ao fundo, o monte que sustenta Kromslaing obstruí o amanhecer, mas as luzes vermelhas do sol escapam pelas arestas da paisagem.

“As Calamidades tem Glanz. Elas foram aceitas e acolhidas por uma Constelação… E eu não. O que elas são, na verdade?”

O pensamento de Raisel ecoou em sua mente, mas a voz de Yurgen o tirou de seu transe.

O velho parecia ter tomado uma decisão.

一 Jeanice, aproveitando a pausa, nós precisamos da sua ajuda pra entrar na cidade. Mais especificamente, da sua habilidade.

Yurgen diz em um tom audível para todos, convicto. Ele aperta firme os punhos, resoluto em sua decisão de trazê-la com eles.

O olhar das mulheres e do garoto estão voltadas para o homem.

一 Nos fale o que você pode fazer, por favor.

Com humildade, a cabeleira grisalha se abaixa ao curvar-se para a direção da moça. O rabo de cavalo voa para os ares.

一 N-Não precisa disso, senhor Yurgen… Eu conto sim.

As olheiras da meio-elfa escurecem os seus olhos com menos força. O olhar dela sorri, mesmo que os lábios sequer se movam.

一 Minha C-Constelação é Corvus e a habilidade q-que ele me concedeu f-foi o Schwarzer Rauch…

Conforme a voz de Jeanice esclarece sobre si, o brilho do dia sobre a floresta morta ganha cada vez mais notoriedade.

As luzes do acampamento se apagam uma a uma e, no fim, a maior das tochas está bem disposta ao céu azul.

Esgueirando-se por detrás de rochedos grandes, o quarteto está há algumas centenas de metros do acampamento que circunda todo o monte.

O olhar de Yurgen cintila em prata, demonstrando o uso da sua habilidade sensorial para verificar a situação do cerco.

Ao fim, ele suspira enquanto põe a mão na costela direita.

一 Pelo o que eu pude ver das energias, tem pelo menos dezenas de Batedores e dois Cavaleiros só nessa parte da frente.

一 T-Tem certeza que eles n-não vão nos identificar caso e-eu use a minha habilidade, senhor Yurgen?

一 Tá tudo bem. Nem eu tinha conseguido te notar. Se não tem nenhum de Elite ali, eles não vão.

A feiticeira acena com a cabeça e se levanta, se pondo acima das rochas.

O acampamento está bem visível com torres de vigilância bem dispostas por todas as direções primordiais. As barracas contornam todo o morro enquanto a energia corrompida da cidade sobe aos céus como uma fumaça.

Jeanice, por outro lado, se concentra e empunha a sua varinha com a mão esquerda. A postura dela se endireita e o seu olhar agora para de ser tapado pela sua franja.

Apontando o equipamento para a direção do cerco, a feiticeira eleva o seu Gewissen. O tom azulado espectral preenche o seu corpo e flui como sussurros para os arredores, tendo detalhes de rostos distorcidos por todo o seu brilho.

Nas costas dela, há alguns metros de distância, o trio encara ela se preparando. Os detalhes na energia dela chamam a atenção de Raisel.

一 Carmen, aquilo na energia dela… É sinal de Kern?

Ele pergunta de maneira genuína, pois assim como a ruiva, as características da aura estão evidentes. Por outro lado, a peculiaridade na energia de Yurgen era mais discreta por ser como um fogo.

一 É sim… Acho que ela é uma Neidnächster. Eles estão ligados à Inveja e à Caridade, então faz sentido caso ela seja uma. Já que ela passou anos trancada naquela cabana se doando para os outros em busca de ser aceita…

A atenção de todos é fisgada com o nível de Gewissen da meio-elfa se consolidando como alta. Da ponta da varinha, todo o brilho azul espectral começa a se condensar.

Acima da cabeça, a Constelação de Corvus aparece.

“Schwarzer Rauch!”

Com o anúncio mental, a concentração de energia na varinha se desfaz como uma névoa em direção ao céu 一 Sobe como uma vela que acabou de ter seu fogo extinto.

Em segundos, todo aquele nevoeiro como o da chegada na floresta morta, começa a aparecer. Porém, ao horizonte, envolve grande parte do cerco.

一 E-Enquanto a ponta da varinha b-brilhar, significa q-que a habilidade ainda está ativa. T-Temos que nos apressar, não sei quanto tempo p-pessoas tão poderosas vão ficar sob a ilusão.

Os três acenam com a cabeça e, à partir daí, Raisel se aproxima da meio-elfa.

一 Você não vai conseguir acompanhar nosso ritmo. Pode subir.

À frente, ele se agacha e se prepara para levá-la nas costas.

A visão sobre si mesma evidencia o quão imunda está. Por mais que o manto negro cobrisse boa parte do corpo, ela não se sente pronta para ser tocada por alguém.

Hesitante, ela parece engolir agulhas.

一 Vamos.

De soslaio, o rapaz a encara. A mulher se contorce de constrangimento, se preparando para algo tão vergonhoso.

Sem escolhas, ela sobe.

Os braços dela envolvem o pescoço do garoto. Abaixo, os palmos dele estão bem firmes contra as coxas pálidas.

A feiticeira afunda o rosto contra as costas do menino. Parece resmungar continuamente…

Encarando o horizonte, um suor escorre na lateral da bochecha. Os olhos dourados fisgam a paisagem enevoada enquanto o mentor e a espadachim partem na frente.

Os dois somem como vultos.

一 Vou ir, Jeanice… Se segura firme.

A forma como ela treme e resmunga incomodam um pouco, mas com concentração, dava para ignorá-los.

Em um instante, ele também desaparece como um vulto. Contra os rochedos, a marca do solado está bem estampada pela força da arrancada.

Conforme se movimenta em extrema velocidade, passando por entre as árvores mortas com saltos grandiosos, a paisagem é cada vez mais obstruída pelo nevoeiro do Glanz da garota.

Porém, como eles não foram os alvos da habilidade, passam a se mover sem chance de serem pegos por ela novamente.

As primeiras barracas ficam para trás, Raisel encara os Batedores completamente paralisados e encarando o céu, assim como Carmen e Yurgen estavam.

Por outro lado, a feiticeira está a todo momento vendo a ponta da varinha na cintura. Completamente apreensiva e nervosa, sente que vai desmaiar em um único instante por estar fazendo algo tão perigoso.

A densidade da neblina é tão grande, que o rapaz não enxerga o que está à frente do rosto. As silhuetas de Carmen e Yurgen desapareceram completamente. Mas deve continuar a seguir até chegar em Kromslaing.

Após alguns minutos, o vasto acampamento fica para trás. Os saltos agora são mais altos para subir o morro acima.

Conforme se aproximam da cidadela, o brilho na varinha começa a ficar cada vez mais fraco. Com o nevoeiro, não dá pra saber o quão próximo estão, ou pra onde estão indo.

O nervosismo com a tremedeira e os resmungos da garota nas costas, começa a deixar o menino nervoso mesmo indo o mais rápido que podia.

一 Se acalma, Jeanice! Desse jeito eu tô ficando nervoso também!

一 D-D-Desculpa… E-E-Eu n-não consigo…

Em um tom choroso, é nítido que não podia fazer nada. Por outro lado, Raisel demonstra uma feição descontente.

一 Tsc.

Acelerando ainda mais, introduz o Schaltung de Aquila com mais velocidade, ao mesmo tempo que concentra ainda mais os esforços físicos nas pernas no uso do Impetus inconsciente.

O brilho na varinha desaparece. O som de ambos em altíssima velocidade rasgam o ar. Aos poucos, o nevoeiro começa a enfraquecer.

Não sabia o quanto faltava para chegar até a cidadela, mas continuam a subir sem ver o horizonte.

Ao pisar em um galho mais frágil daquelas árvores sobre o monte, coincidentemente ele acaba se partindo.

Sem base, eles caem e começam a rolar pela terra abaixo até bater com as costas em uma parede.

一 Aí… Se machucou, Jeanice?

Coçando a cabeça, Raisel se levanta conforme retira a poeira das vestes. Procurando a mulher, ela está logo à frente completamente ilesa, mas observando algo acima.

“Ela… Caiu em pé? Foi tipo um gato…”

Com o nevoeiro mais raso, é possível ver uma grande catedral adiante. Grande ao ponto de precisar levantar o rosto para ver o seu topo, mesmo encarando a construção pela sua lateral.

一 Jeanice! Raisel!

A voz de Carmen chega junto do pisar sobre o gramado logo ao lado do menino. Yurgen, por outro lado, apenas pousa próximo de Jeanice enquanto encara a catedral.

一 Conseguimos?

A ruiva e o menino se aproximam do velho e da garota.

一 Sim. Aqui é Kromslaing… Mas…

Todos notaram o que o arqueiro iria dizer. Diferente da floresta morta, não há corrupção esbanjando, ou muito menos presença de algum corrompido.

De dentro da catedral, o som de um coral e o bater de um sino começa pela manhã. Os vitrais em diversas cores começam a reluzir em contraste com a luz do sol ao fundo.

De algum modo, Kromslaing parece normal… O que está acontecendo?