Capítulo 51 - Fracasso
Numa paisagem repleta de cores vibrantes, uma orquestra tocava em plena luz do dia, ecoando por toda a cidade de Kromslaing. Não era um som alto, mas suas vibrações delicadas e a paixão de cada músico, era o que dava a força necessária para atingir os corações dos cidadãos.
Não havia um dia em que a orquestra do castelo não saudava à todos com sua música agradável. Era uma canção alegre, cujas notas expeliam esperança e um sentimento nostálgico, como o gosto agridoce de um café de um ente querido que já se foi.
Entretanto, mesmo debaixo desse ambiente alegre, o mal sempre existiu.
Nas costas do castelo principal, havia um imenso jardim que poucos conheciam. A sua fama alastrou-se quando uma certa pessoa começou a visitá-lo: a única filha dos Asdoth, a bastarda acolhida pelo chefe da família.
Seus cabelos negros compridos e as orelhas caídas indicavam a sua natureza meia-humana, meia-elfo. Porém, apesar de todas as dificuldades, a paz no jardim oculto lhe tirava algum sorriso. As borboletas a adoravam. A natureza sorria para ela de volta.
Mas pelas janelas do castelo, seus irmãos a viam com desgosto, os funcionários, em sua maioria, a achavam um monstro. Contudo, havia uma exceção…
一 Jeanice? Está aqui tão cedo, querida…
Com um balde de ferro em mãos e uma pequena pá, a velhinha se aproximava já corcunda por cuidar desse jardim há tantos anos.
一 S-Senhora Willy…!
Antes que a meia-elfa pudesse se levantar do gramado, a jardineira estendeu a mão com a pá para que ela ficasse.
一 Não se importe comigo… É um prazer pra mim ter a sua visita.
Agachando-se ao lado da garota, a mulher pegava o adubo dentro do balde com a pá pequena e colocava gentilmente pelos canteiros.
Com as palavras da senhora, Jeanice que abraçava os próprios joelhos enquanto agachada, pareceu afundar o rosto por entre as pernas.
一 Você… é a única que fala isso pra mim…
一 Hoho! Que gracinha…~ Esse seu jeito tímido me lembra a minha netinha.
Por sempre receber o desprezo e os maus tratos, emoções como essa não eram nada normais para ela. As orelhas pontudas chacoalharam para baixo e para cima com felicidade e, o rosto, outrora pálido, ruborizou pelo mesmo motivo.
“A neta da senhora Willy… Espero que nos tornemos amigas…”
Passando pelo corredor próximo à porta que dava acesso a esse jardim, uma garota de cabelo dividido entre o rosa e o loiro, via o sorriso vindo da aberração. Seus olhos expressavam mais do que qualquer palavra de ódio ao ver a bastarda amada pela natureza.
Depois desse dia, a sensação quentinha em seu coração aos poucos se apagou. O frio se instaurou como nas noites em claro que passava na espera da senhora jardineira, que nunca mais retornou.
Ao abrir os olhos por entre os joelhos, o rosto se levantou. O quarto estava escuro e o símbolo do Grande Sol já não brilhava mais.
“Pessoal… Eles já foram?”
Levantando-se com cuidado, Senhor Oddy permanecia agarrado pelo braço direito abaixo da axila. Os olhos azulados brilhantes, esbugalhados pelo silêncio aterrorizante e a escuridão, ressoavam em um sentimento reconfortante e familiar: a solidão.
Porém, conforme foi observando o quarto escuro, conseguiu discernir um brilho carmesim vindo de um papel em cima de uma bancada.
“Essa energia é da Carmen…”
Aproximando-se, as mão magras saíram pelas frestas do manto negro que a encobre. Os ombros finos, recolhidos, tremiam por certa ansiedade para querer ler logo o que estava escrito ali.
Antes de abrir a carta, a garota engoliu seco.
“Jeanice, a gente foi pro Castelo, como você deve ter escutado antes de dormir. Caso as coisas fiquem perigosas, não precisa se intimidar… Aquela sua chuva de esferas de energia foi bem pesada. Você não é fraca (Mas ainda está longe de ser tão forte quanto eu). Estamos te esperando, ou você espera a gente aí… Assinado: a mais forte do grupo ❀…”
As mãos magras segurando o papel, começaram a tremer.
Naquele quarto escuro com o símbolo de proteção apagado, as lágrimas escorreram do rosto dela silenciosamente. Entretanto, a cabeça balançou negativamente. Em seguida, o antebraço enfaixado secou as suas lágrimas.
“Não é hora de ficar emocionada… Se eu puder ser útil pra eles de algum jeito… Eu preciso sair daqui!”
Dobrando a carta e colocando-a no bolso de seu colete social, Jeanice escuta passos pelos corredores. Imediatamente, a mão direita busca a varinha na cintura pela esquerda. Nesse instante, a ponta cintilou como uma névoa espectral…
一 A garota está aqui mesmo?
一 Aparentemente sim. Só três saíram daqui de dentro, de acordo com a atendente.
A maçaneta girou com lentidão e o ranger da porta se alastrou como um ruído quase imperceptível. Contudo, à medida que o quarto se abriu, a densa névoa os envolveu com sutileza.
Antes que percebessem, estavam paralisados com os olhos completamente azulados.
“Não vai demorar pra eles perceberem que é uma ilusão! Preciso sair!”
Passando pela porta recém aberta pelos encapuzados, ela correu em direção às escadarias para descer e sair da pousada.
一 O que foi isso?
一 Era uma ilusão…
一 A garota não está aqui!
一 Ela deve ter acabado de fugir! Vem!
“Droga… Droga…!”
Diferente dos outros três, o físico dela não era nenhum pouco apropriado para a ação. Mesmo correndo em alta velocidade, sua dificuldade ficava notável pela respiração ofegante…
Ao descer as escadarias, a recepção estava vazia. As portas já abertas, eram invadidas pelo brilho do luar infernal: a enorme esfera da noite encarou Jeanice com uma vibração gentil…
Os olhos azulados estremeceram ao encará-la de volta.
“Que bonito…”
一 Ela tá ali!
Quando a voz de um dos Bealerins chegou aos seus ouvidos, o encantamento se quebrou. Ao olhar para trás, percebeu a energia negra concentrada nos palmos de um dos encapuzados. No outro segundo, ela foi disparada como um vulto!
Contudo, com a varinha em mãos, um único brandir horizontal desviou o breu como um fluxo de névoa espectral. O projétil atingiu as ruas como uma massa negra que empurrou a calçada.
一 Merda! Ela é uma feiticeira!
一 Dispara o sinalizador!
Já tendo se afastado há alguns metros, a garota sentiu dores do lado esquerdo do abdômen. Seu despreparo físico a fez desacelerar pouco a pouco, conforme se defendia dos projéteis desses dois perseguidores.
De repente, uma esfera negra em tons vermelhos subiu aos céus e explodiu como trovões, mas em um som agudo. A audição excepcional da meia-elfa se demonstra prejudicada, ao ponto da visão dela ser afetada por uma náusea.
Tropeçando nos próprios pés, a garota caiu já sem forças de frente para a Praça Ander.
Olhando para trás, observou os dois inimigos prestes a finalizá-la. Fechando os olhos ao aceitar o próprio destino, também agarrou o senhor Oddy com ainda mais força.
“Me desculpa… Me desculpa… Eu não sou forte…”
Lacrimejando enquanto o semblante se contorcia esperando o fim, os sons de passos com salto alto ficaram mais nítidos conforme a audição se recuperava.
一 Basta… Essa é uma conhecida minha.
A voz familiar ressoou pela mente de Jeanice. Apoiando-se com as mãos, ela levantou o semblante.
一 Há quanto tempo, Jinny…
De frente para a garota esfarrapada e magra, havia uma mulher com trajes maduros e um batom púrpuro. Um vestido provocante com plumagem completamente negra ao redor do pescoço, mas aberto pela frontal e servindo como uma grande gola.
Os grandes brincos prateados, a cabeleira em um tom de roxo extremamente escuro e os olhos verdes como folhas de primavera.
一 E-Edina…
Os lábios negros da meia-elfa sussurraram em surpresa. Ao vê-la, a lembrança da velha Willy veio em sua mente. As imagens de uma garota pequena com o rosto coberto por uma franja enorme se sobrepuseram em um comparativo com a mulher madura à frente.
一 Você está igualzinho há dez anos atrás, Jinny. O sangue élfico é realmente uma benção contra a velhice…
Um sorriso de lábios se estabeleceu na feição da moça. Os olhos se estreitaram contendo alguma maldade. Porém, a meia-humana jamais perceberia essas intenções…
Estendendo o palmo para a invasora, Edina respira fundo e volta a falar:
一 Venha pro Castelo… Nós somos amigas, lembra? A vovó Willy adorava cuidar dos jardins de Kromslaing com a gente.
Confusa, a menina olha para o palmo e vem a aproximar uma de suas mãos. Algo parecia errado, mas o vínculo que existia entre elas, era convincente o suficiente para aceitar a sua companhia.
“Eu… ouvi certo? Minha cabeça ainda tá zumbindo pelo estouro…”
Ao contrário da Truman, o semblante de Jeanice demonstrou um sorriso puro que se formou aos poucos. As orelhas até se moveram para cima e para baixo e, a sensação de calor novamente preenchia o seu coração.
“Espero que eu possa apresentar a Edina pro pessoal… Aposto que ela se daria bem com a Carmen…!”
Mas, infelizmente, essa ingenuidade logo seria quebrada. Afinal, humanos não são confiáveis e espontâneos como os elfos… Jeanice jamais esperaria isso vindo de uma pessoa que era tão próxima dela no passado.
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