Capítulo 53 - Última Pincelada

Observando-as pelo rombo na parede, a grande lua as saúda. Sua presença majestosa encobre as garotas como um véu gracioso, dando à elas o seu aval para acertarem suas diferenças e conectarem os seus corações sob a noite que parece infinita.

Enquanto os estilhaços ainda caem pela feitiçaria explosiva da invasora, a pressão crescente emanada por Edina não parece ter fim. As pernas dela começam a se mover ao deixar a marionete cadavérica da avó para trás.

Os passos lentos a deixam ainda mais assustadora. O barulho ressonante de seus saltos altos contra o azulejo, pouco a pouco, envolve a meio-elfa em uma clara intenção assassina.

Por outro lado, os calcanhares de Jeanice cada vez mais se aproximam da parede em suas costas.

一 Vai fugir de novo, Jinny? Achei que com toda essa vontade e coragem, você escolheria me enfrentar de frente…

De braços abertos, os seios da Truman balançam com o peso de sua passada, no qual trinca o concreto ao redor como um terremoto ecoando em pleno ar. A postura vulnerável não se alinha com o potencial mortal emanado por ela.

Os olhos atentos da orelhuda se estreitam quando a mulher se posiciona exatamente no centro da sala, onde conjurou sua energia para pulverizar as carcaças de sua própria família.

De repente, a varinha se estende contra o rosto da Pagã. O brilho azulado sobre a ponta indica um feitiço, mas… nada está saindo dali.

一 Pff… É sério que falhou esse feitiço?

Uma das mãos cobre os lábios tingidos por um batom roxo.

Porém, a brisa da noite chama a sua atenção. A graça em seu semblante se desfaz assim que ouve algo cortando o vento. Um clarão azul ofusca a visão de Edina e, consequentemente, outra explosão ecoa Castelo à baixo.

Sob o nevoeiro e a poeira, algo líquido, viscoso e completamente negro apareceu sobre o quarto, emergindo como uma pilastra das próprias sombras da Bealerim.

一 Desgraçada… Um feitiço com efeito de bumerangue? Nunca imaginei que você fosse tão habilidosa assim.

Conforme o pilar negro diminuí, o líquido começa a inundar o chão abaixo dos pés da mulher. Inesperadamente, algo parece borbulhar poucos centímetros à frente de onde ela está.

O enorme guarda-chuva carmesim vitoriano é o primeiro a sair. Em seguida, uma figura feminina de pele pálida, olhos completamente rosados e um grande laço bordado a caracterizam como uma…

“Marionete… Essa é diferente dos cadáveres. É uma marionete de verdade…”

Ao emergir completamente, o vestido carmesim pomposo e volumoso pode ser inteiramente visto. As botas marrons, os diversos acessórios como anéis, brincos e um colar extravagante, também.

Contudo, o que mais chama a atenção de Jeanice, é a meia-máscara que tapa o rosto dessa autômata junto de uma grande pena negra.

一 Linda, não? Essa é a Dama do Guarda-Chuva… Brinque um pouco com ela~

Edina, portanto, cruza os braços com um sorriso convencido.

Os olhos da meio-elfa encontram o rosto artificial da outra.

O guarda-chuva se abre como uma parede apontada para a invasora. No outro segundo, ela se aproxima o suficiente para tentar perfurar o peito de Jeanice usando o topo pontiagudo.

Porém, bem atenta, a feiticeira balança a varinha para o lado ao criar um fluxo enevoado. Essa onda esguia colide contra a perfuração e, junto do guarda-chuva, o ataque é guiado para fora.

Mas ao desobstruir a visão com o redirecionar do guarda-chuva, o que a meio-elfa vê, é a sola da bota indo em direção à sua face. Sem tempo para se defender, ela se joga para o lado enquanto o calcanhar corta brevemente a sua bochecha.

Ao cair, os passos da Dama vêm um após o outro para esmagá-la contra o chão. Pressionada, a menina continua a rolar para o lado.

“M-Merda… Desse jeito vou acabar caindo pra fora!”

O corpo dela passa pelo buraco na parede, mas antes de descer completamente, a mão esquerda segura o chão com a ponta dos dedos.

Implacavelmente, a marionete levanta a perna e abaixa para destruir a mão presa.

Sem outra alternativa, a meia-elfa solta como um reflexo. Do quarto andar do Castelo, seu corpo cai em direção ao chão. Seu cabelo negro esvoaça com o vácuo, seu chapéu fica para trás e, antes que pudesse fazer alguma coisa, a sua visão escurece junto com um estrondo aquoso…

Caminhando lentamente, Edina se aproxima da abertura. Olhando para baixo com insatisfação, tenta buscar algum sinal da outra pelo lago.

“Será que ela já morreu?”

A mão pálida de Jeanice aparece e agarra a beirada para se levantar. Encharcada, somente a varinha permanece sendo segurada pela mão destra. Usando toda sua força, ela se joga para fora do lago.

一 Cof! Cof!

A água é expelida pelos seus pulmões com as tosses.

Majestosamente, a Truman pousa de pé sobre a água como uma delicada folha. Em seguida, a Dama do Guarda Chuva flutua e também pisa com a ponta dos dedos sobre a superfície do lago.

一 Urgh…

“M-Meu corpo inteiro tá dolorido…”

As mãos vão contra o chão. O rosto encara os próprios palmos. Contudo, a sensação macia sobre os braços já não está mais ali…

“S-Senhor Oddy?!”

Ela se levanta e olha em direção ao lago.

Encarando com desdém, a mulher está com a pelúcia em mãos. Os olhos de botões, a costura grosseira, o tecido áspero e uma maciez questionável…

一 Foi você quem fez?

O olhar esmeralda se fixa sobre a meio-elfa.

Boquiaberta, as sobrancelhas dela se contraem enquanto oscilam para cima e para baixo. As íris azuladas estremecem com o seu desamparo ao ver o seu amigo sendo segurado por alguém tão detestável…

一 M-Me d-devolva.

O palmo esquerdo se estende quase como uma súplica.

Contudo, aquela expressão da meio-elfa é como um convite para Edina. O queixo dela sobe à medida que um sorriso perverso se estabelece em sua feição. As mãos que agarram a pelúcia, se afastam, rompendo a cabeça do corpo…

As folhas rasgadas que o preenchiam saem quase como uma explosão.

Segurando a cabeça do boneco, ela arremessa de baixo para cima como se houvesse se livrado de lixo.

一 Toma~

Estática, a cabeça da criadora e da criação colidem. Os olhos azuis deslizam para baixo e encaram os olhos de botões descosturados…

As mãos dela tremem.

As memórias, ainda calorosas da sua única agulha fluindo com um sorriso no rosto, começam a esfriar junto com o seu corpo. As noites geladas em que eles se esquentavam e as vezes em que se abraçavam, agora serão apenas lembranças…

O espírito de Jeanice desapareceu junto do abaixar de sua varinha.

一 P-Por… que… Por que você… tá fazendo i-isso comigo?

A voz dela sai com melancolia.

O cabelo molhado, ao encarar o chão, obstruí o rosto da meio-elfa.

一 Hã…? Por qual outro motivo seria? É divertido, simples assim.~

Uma das mãos desceu para a lateral da cintura enquanto os ombros gesticulavam. O caminhar contra a água continua para se aproximar da menina patética. Logo atrás, a marionete a segue como uma sombra.

Contudo, ao ouvir a resposta de Edina, os olhos se arregalaram. Os lábios negros, outrora completamente esprimidos, agora são mordiscados pelos seus dentes.

Vendo o próprio corpo franzino e os braços enfaixados, a coceira por debaixo de suas bandagens, se alastra por todo o corpo… Para se confortar, ela se abraça enquanto caminha para trás.

“D-Divertido? É divertido isso? Não… Não é… Não é. Não é. Não é. Não é!”

A Truman cessa o seu caminhar ao escutar algo trincando vindo da meio-elfa. Desconfiada, a marionete levanta a cabeça.

“Mas… se eu tivesse uma força igual a dela… eu seria assim? Desmembrar pessoas, profanar os seus corpos… Tudo isso porque é… divertido?”

Os ombros magros chacoalham. Da cabeleira molhada, uma risada engasgada ressoa pelo pátio silencioso…

Descontente, a mulher estala a língua.

一 O que é tão engraçado, Jinny?

O rosto com bochechas finas sobe. Os dentes pontiagudos se mostram com um sorriso de canto a canto, largo ao ponto de quase encostar nos próprios olhos.

一 A Carmen me disse que eu sou forte, mas eu sou tão fraca que eu sinto pena de mim m-mesma…~

Contudo, o semblante de Edina se fecha. Os olhos cobertos por olheiras a encaram de baixo para cima.

Acima da cabeça dela, a Constelação de Corvus aparece.

一 Mas sabe? Eu não ligo de m-me tornar um monstro… Se isso me deixar tão forte quanto ela… ou você.

De repente, uma explosão de nevoeiro recobre a área ao sair diretamente da garota. No mesmo instante, a Dama guarda a Viscondessa com um domo aquoso.

Do epicentro desse nevoeiro, uma imensa nuvem azulada sobe em direção aos céus. Sua forma oscila com rostos esqueléticos que vão como almas em direção ao céu. Pela primeira vez, Jeanice sente um ódio profundo no coração. Uma raiva crescente pela sua própria incompetência, pela sua própria fraqueza… Mas principalmente, pela vontade de querer ser forte como eles, pelo desejo de brilhar como eles!

Dos braços até os dois lados do rosto, rachaduras azuis aparecem sobre a pele pálida. Descontroladamente, o Gewissen responde à consciência, à subconsciência e aos seus desejos.

Não há espaço para pensar negativo. Não há espaço para duvidar. Tudo o que ela quer é algo simples: ser útil e forte.

一 Krähenfedern!

A habilidade do seu Schaltung se libertaria após muito tempo ao ser proclamada com a voz rasgada. Dos olhos vazios das caveiras que pintam a sua energia, penas negras de contorno azulado aparecem como uma floresta sombria.

Com o apontar da varinha, essa tempestade de penas de corvos avançam em direção ao lago como uma avalanche.

A marionete, por sua vez, começa a girar o guarda-chuva como uma broca 一 Atraindo e usando até mesmo a água do lago. A energia líquida acompanha a rotação como um fluxo indomável.

O Geloscht de Edina se expande contra a avalanche!

“Erzwungener Drehung!”

No conflito entre as energias, a enxurrada de penas bate uma após a outra contra a parede rotativa. O chão é destruído com a rotação cataclísmica e os projéteis redirecionados. As paredes do Castelo são perfuradas com força, demonstrando a alta resistência dessas penas.

O que era o lago, agora se transformou em uma cratera.

Sobre o nevoeiro manifestado do Glanz descontrolado de Jeanice, as gotas de água começam a cair pela região.

Observando de cima, a meio-elfo etérea, submersa em suas próprias emoções, apenas encara a outra.

De baixo, no epicentro do buraco, a Viscondessa está séria.

“Que força é essa? Não acredito que precisei usar minha habilidade. Isso não é mais uma brincadeira…”

O silêncio paira pelo ambiente ao som da chuva.

Em um movimento horizontal da varinha, uma onda enevoada desceu morro abaixo para esmagá-la.

Atenta, a mulher e a marionete saltam enquanto parecem pisar no próprio ar. Em poucos instantes, Edina se impõe na abertura do quarto andar, no cômodo em que elas estavam inicialmente.

Batendo um palmo no outro, as mãos giram para lados contrários. A aura líquida emanada de seu corpo a envolve num casulo espiral. Lá dentro, uma enorme escuridão se concentra pouco a pouco.

Logo à frente do domo, a marionete está voando, flutuando com seu guarda-chuva.

Porém, de repente, a Dama fecha o seu equipamento e flexiona os joelhos contra a proteção que envolve a sua mestra. No outro instante, ela parte como um míssil visando empalar de uma só vez o alvo.

Como relâmpago, a autômata arrebenta o chão abaixo com a colisão. O guarda-chuva atravessa por completo a figura de Jeanice, mas que se desfaz em penas de corvo.

Sob o nevoeiro, diversas outras imagens de Jeanice cobrem o local.

“Preciso destruir aquela defesa o mais rápido possível. Uma marionete não se move depois que sua mestra morre… Mas como eu vou imobilizar a Dama…?”

Os incontáveis olhos azuis brilham.

Em um mover das varinhas, os clones expelem esferas enevoadas azuis que vão em direção à marionete.

一 Neblige Kometen: Feier!

Demonstrando uma agilidade além da carne e dos ossos, a Dama salta enquanto pisa em cada gota de água. Flutuando em seus passos, o guarda-chuva se abre conforme os cometas nebulosos rasgam os ares.

Movendo-se flexivelmente, a marionete se defende dos ataques que não consegue desviar. A rotação do equipamento garante um fluxo líquido que colide contra os projéteis pesados.

Da perspectiva de terceiros, a neblina, a chuva, o brilho azul e os fluxos negros, mais se pareciam um quadro, cuja tela seria a noite infernal.

Acompanhando o combate dos olhos da títere, Edina continua a canalizar o seu Geloscht.

“Os clones não se moveram… Então é mais fácil acabar com todos eles de uma vez por todas!”

Estendendo o topo bordado do equipamento para cima, a ponta afiada expele um jato de líquido escuro para os céus.

Nesse momento, as gotas de chuva param. Absorvidas por um fluxo negro em pleno céu, um turbilhão se manifesta.

“Flaufleister Drehung!”

A enorme superfície aquática rotativa começa a se desfazer. As gotas caem girando como brocas minúsculas. Dessa forma, não só o chão do jardim é pulverizado pelos infindáveis projéteis, como cada clone de Jeanice se desfaz em penas de corvo.

O som agudo da afiação giratória de cada gota, forma um barulho semelhante a um zumbido.

Ao fim, não resta nenhuma silhueta, com exceção da marionete flutuante.

A nuvem que sobe é proveniente da umidade dos ataques de Edina. O nevoeiro que robria a área pelo poder do Glanz, se desfez por completo.

Porém, à medida que essa neblina úmida é carregada pelo vento, fica visível uma espécie de enorme pássaro negro. As asas desse animal se abrem, revelando a figura élfica completamente ilesa.

“Neidnäch: Neblige Blätter…”

Diferente das outras vezes, a varinha sobe em um movimento vertical; apontando diretamente para a marionete. Um único segundo depois, o pescoço da Dama se move para trás ao desviar de algo tão fino e afiado quanto uma agulha. Contudo, a velocidade do ataque arranhou a pele da marionete.

Com um pressentimento ruim, ela se encolhe por dentro do guarda-chuva. Nesse momento, toda a estrutura é arranhada incessantemente. Golpes afiados e perfurantes vindo de todas as direções penetram o Geloscht que a envolve…

“Merda! Desse jeito a Dama vai ser destruída!”

Antes que a boneca fosse totalmente danificada, a concentração de energia de Edina é compartilhada. O casulo que cobre a usuária diminui a potência de suas rotações, mas por outro lado, a defesa sobre a marionete é fortificada.

Ao perceber isso, o espírito de Jeanice se eleva. Enquanto a varinha brilha mantendo o feitiço ativo sobre a marionete, a mão livre esquerda agarra uma das asas do pássaro.

A ave, pouco a pouco, diminui o seu tamanho ao ser comprimida. Por revelar inteiramente a meio-elfa, é notável o quão trincada a sua pele está. Praticamente todo o seu corpo se mantém coberto pelas rachaduras azuladas. Um sangramento nasal faz com que a terra abaixo seja tingida…

“Mais um pouco! Mais um pouco!”

Os dentes se apertam. O barulho das rachaduras ganha ainda mais notoriedade…

Sob o palmo esquerdo, se forma uma enorme agulha negra feita inteiramente das penas do seu Schaltung.

“Krähenfedern: Schwarzer Nadel!”

Arrastando o braço para trás enquanto aperta firmemente a agulha, Jeanice a arremessa contra o casulo de Edina.

Sem conseguir enxergar por estar coberta pela energia do casulo e a marionete também estar envolta em um domo, a Viscondessa apenas sente o baque perfurante devastando camadas e camadas da sua defesa.

一 U-Urghh…!

Estendendo as mãos contra a direção da agulha, ela está prestes a perfurar o pescoço da mulher.

O esforço para concentrar tanta energia é visível pela vermelhidão do rosto.

Porém, antes que a agulha chegasse, ela simplesmente se desfaz.

Um silêncio repentino cobre o ambiente…

Confusa e ofegante, a mulher libera primeiro a defesa sobre a marionete.

Sob os olhos da boneca esfarrapada, ela visualiza a persona de Jeanice estendida sobre o chão. A menina está imóvel, mas pulsando em um brilho azul celeste.

Dos lábios roxos, um sorriso se forma somente em um dos cantos dos lábios. O casulo que a envolve se desfaz em seguida.

一 Meio-elfa imunda…

Ao dar um passo para frente, o corpo de Edina recebe um tranco pelas costas. No peito, uma sensação de ardência se confirma.

“Uma… espada?”

O sangue dela escorre torso abaixo com a espada a empalando. A garganta tosse e os lábios roxos expelem o vermelho que inunda os seus pulmões.

Virando o rosto, a única coisa que ela vê são os olhos dourados de um rapaz repleto de ferimentos.

一 V-Você-

Antes que pudesse falar alguma coisa, Raisel gira o cabo. Com o ajuste da lâmina, ele retrai os braços para cima e move a cintura. O corte simplesmente divide a Pagã ao meio de forma incompleta. Da cintura para baixo, intacta. Mas em cima, abriu-se como um livro…

As gotas, que outrora eram de chuva, agora se dão espaço para a tinta vermelha de um cadáver imundo.

Despencando para frente, a Viscondessa se espatifa no chão ao cair do quarto andar. Em seguida, sua marionete também cai como uma carcaça vazia.

O garoto balança a espada para o lado, retirando o excesso de sangue. No outro instante, a lâmina rachada se desfaz em partículas douradas.

“Jeanice!”

Descendo com cuidado pelas paredes, se encaminha em um salto para onde a companheira está caída.

“A forma como ela tá brilhando é uma Sobrecarga como eu tive na ilha da neve… Preciso apagar essa luz!”

Pondo o palmo destro sobre as costas da menina, a escuridão que lhe preenche é emanada. Por baixo das manchas de sangue em Raisel, sua pele também está trincada por rachaduras douradas e negras, mas já controladas pela sua alta recuperação.

“Ainda bem que vim pra cá o mais rápido que eu pude… Quando eu vi as esferas de energia saindo do Castelo, eu sabia que ela era…”

Com um sorriso no rosto, ele encara a meio-elfa apagada.

“Você foi ótima, Jeanice.”