Capítulo 63 - Realidade
O pé de Eilian bate com firmeza contra o chão após o lançamento esmagador de Gewissen. O impacto seguiu causando um rastro de destruição enquanto o vácuo do seu simples movimento balançava os destroços ao redor.
一 Merda…! Essa maldita fênix! – Em frustração, o escudo enorme espinhoso se desfaz. A autoridade de Scutum evapora como fumaça do topo da cabeça do Cavaleiro.
一 Quem era? – Intrigado, Berith se aproxima um pouco mais do homem. Com os braços para trás e os pulsos cruzados na altura da cintura, observa a situação causada em uma fração de segundos…
一 A maldita Lebre das forças rebeldes. Não imaginei que ela viria aqui pessoalmente pra resgatar eles…! – O punho do grande homem colidiu lateralmente contra um pedaço de parede.
一 Hm… Nesse caso, não precisa se preocupar, guia. Eu consigo saber exatamente para onde ela foi. – Sob a perspectiva do demônio, conseguia distinguir cada traço de Consciência utilizado pelos mortais. Eles se elevam como fios entrelaçados em direção ao céu e saem diretamente do topo da cabeça de cada um deles.
Ao encarar a feição desse monstro, o Cavaleiro arrepiou por inteiro. A densidade de força acumulada em seu interior, provavelmente era equiparável à do Senhor das Chamas. Porém, o som dos seus soldados se levantando chama mais a atenção.
Respirando profundamente, Eilian diz:
一 LEVANTAM-SE! AINDA OUSAM DIZER QUE SERVEM O SENHOR DA GUERRA?! AQUELES QUE NÃO SE ERGUEREM, EU MESMO OS MATAREI! – Novamente, o seu urro esvaiu-se como uma bomba para os arredores. A energia dele parecia amplificar o seu poder vocal com a autoridade máxima sobre os lacaios.
Em um único instante após o anúncio, os Cavaleiros inferiores e os Batedores se ergueram. Feridos? Sim. Mas com a determinação necessária para continuarem lutando.
Enquanto o guia lidava com seus servos, o demônio se aproximou de Yurgen cristalizado.
一 Esse homem no cristal… Vamos levá-lo. – O palmo do monstro pousou sobre a superfície do cristal que o aprisiona. Os olhos dele deslizaram para cima em busca do fio da Consciência, mas não havia nada ali…
一 Ele não está morto? – Questionou o guia enquanto distribuía cristais verdes para os seus soldados.
一 Definitivamente. Mas a morte representa somente o fim da sua consciência, pois o corpo se torna vazio. Porém, talvez eu consiga alguma utilidade caso consiga tirá-lo desse cristal… Ele tem o dom inato de manusear às Trevas. – Enquanto falava, Berith tomou à frente para partirem morro abaixo e seguir até a Zona Nobre de Balmund.
Com a sugestão do monstro, Eilian se aproxima da carcaça vazia. Somente com força bruta, o retira do chão junto do cristal e o coloca sobre os ombros.
一 Nossos meios de locomoção estão nos túneis subterrâneos. Vamos descer usando os elevadores na base da montanha. – Em formação, eles partem escoltando a criatura convocada diretamente das Trevas.
一 São aquelas carruagens flutuantes? A tecnologia humana é realmente intrigante… – Ansioso para descobrir mais sobre esse mundo, o demônio nunca havia encontrado um receptáculo que pudesse suprir a maior parte da sua existência. Mas dessa vez era diferente…
一 Eles se chamam Schiff… Não sei muito bem como funcionam, mas são movidos por energia cristalizada, os Lebenstein… Isso é coisa de Alquimista. – Finalizou com desdém, o Cavaleiro aparentemente não gosta muito de assuntos complexos.
Conforme descem a floresta em direção a base da montanha, a claridade da manhã finalmente aparece. Sob o raiar do dia, a criatura parece deslumbrada pela luminosidade e o calor em sua pele.
Por outro lado, mesmo em um salão vasto repleto de luzes amareladas, mas frias, a fissura da Fênix expõe o trio que escapou de Kromslaing. A mulher com ombreiras de ouro respira fundo, encarando o próprio palmo trêmulo ao relembrar dos olhos profundos e maliciosos daquela entidade…
“Aquilo não era humano… Ela sabia que eu ia aparecer, no momento em que eu saí da fissura, ela já estava olhando pra mim… Precisamos sair daqui, não é mais seguro permanecer escondido com aquilo solto…”
Ao fim do pensamento, a Lebre olha para trás. A máscara de coelho encara Jeanice com os dois palmos sobre o chão, Carmen está sentada e o garoto encarando o teto do salão com uma expressão vazia…
A atenção da mulher de cabelo laranja volta para frente ao ouvir o ranger da porta. Escoltada por duas máscaras de gato, a anciã Yolina aparece entre eles. A expressão dela é séria, mas se torna ainda mais pesada quando percebe que faltava um deles…
一 Como foi, filha? – Aproximando-se com seus passos curtos, a pequena senhora demonstra estar visivelmente preocupada.
一 Ele realmente foi consumido… Mas o que temíamos aconteceu, mãe… Balmund conseguiu trazer o primeiro demônio. Eu o vi… Ele é totalmente diferente de qualquer coisa… Temos que sair daqui rápido! – Mesmo com o rosto tapado pela máscara, a sonoridade das falas demonstram receio e pavor por reconhecer a ameaça dessa entidade.
一 Se acalme. Sairemos daqui logo em breve… Primeiro temos que desfazer a Ruína no vilarejo deles. – A baixinha estica o braço para acariciar a costela de sua filha, mas em seguida, volta o olhar para os três ao fundo.
O menino está completamente paralisado.
Carmen, com o rosto baixo, demonstra o clima fúnebre ao reconhecer que aquele homem morreu.
Já a meia-elfa é uma adição inesperada…
一 Levantem-se. Estamos seguros aqui por hora, então aproveitem para relaxarem e se recuperarem enquanto podem. – A idosa-gato se aproxima da ruiva sentada ao chão.
A mão enrugada repousa sobre a bochecha da espadachim. Os olhos rosados de Yolina brilham e sua energia flui para a mulher em uma mensagem:
一 “Eu irei te contar o que ele escondeu de você. Não se sinta brava por não ajudá-lo… Ele escolheu ficar em silêncio porque sabia que você se sentiria mal caso soubesse…”
Mordendo os próprios lábios, Carmen se sente ainda mais patética. O rosto dela se contorce tão firmemente quanto a dor pontiaguda em seu peito. O principal resquício de sua amada irmã se foi… Apesar disso, se sentiu reconfortada pela gentileza da senhorinha que a conhece desde a infância…
Afastando-se, a velha materializa outra máscara de gato com seu poder. Dessa forma, ao soltá-la no ar, outro servo se infla como bexiga para totalizar três soldados ao seu dispor.
一 Meninos, levem eles para os quartos…
Congelado, Raisel sai do salão. No outro instante, está dentro de uma banheira e, em seguida, sentado na cama espaçosa de um dos cômodos. O olhar dele não mudou. O rosto dele não se alterou. O brilho em seus olhos parece estar totalmente ofuscado pelo trauma.
“Meu avô… morreu?”
“É minha culpa… por não ter usado o medalhão?”
“Não… É minha culpa por ser fraco demais…”
“Desde o começo ele me protegeu… Eu dizia que queria virar um Nômade pra ser como ele…”
“Enchê-lo de orgulho… Pra ficar forte… Mas a verdade é que eu nunca levei isso à sério…”
“É por isso… que ele morreu. Porque eu não sou forte… Porque eu… só sei depender dele…”
“Mas agora ele se foi… Por que eu lutei até agora? O que adianta salvar o vilarejo, se meu pai não vai estar mais comigo…?”
Deitando-se sobre o colchão, as lágrimas escorrem do rosto sem perceber. A expressão não muda. O teto parece tão distante, mas próximo.
Sob um diferente teto, a espadachim sem braço está de frente para a velha. A feição no rosto da ruiva é marcante pela profundidade das olheiras em seu semblante. Mas ainda assim, ela olha para a anciã sentada à poucos metros.
一 Você sabe que ele passou cinco anos procurando uma cura para a doença da sua irmã. Mas o Verdorren é letal. Você cuidou dela por todos esses anos, tomando conta do Raisel e do Olga junto dos outros… – A fala da senhora é carregada de nostalgia, mas também de uma dor antiga. Afinal, conhecia tanto Sarina quanto Carmen desde à infância.
一 Mas ele falhou. Você o culpou como se ele tivesse a abandonado… Ele sequer viu os últimos momentos da sua esposa e, também me disse que não se lembra do rosto dela. Mas ele vagou do leste à oeste de Wynward procurando alguém que pudesse tratar o Verdorren.
Enquanto a idosa fala, o rosto da ruiva se abaixa. Essas lembranças ardem como ontem. Era como se um pedaço seu estivesse faltando, não físico, mas da própria alma.
一 Ele… deveria ter voltado pra casa… Ela morreu feliz… Ela sorriu por ele estar lutando até o fim… Mas do que adiantou, Yolina? Eu vi minha irmã se tornar um cadáver murcho, podre… Mesmo dando banho, cuidando dos seus ferimentos… Ele não viu o próprio filho crescer… O Olga ainda o odeia por isso… Ele errou em tudo… Em tudo! – Respingando em sua coxa esquerda, as lágrimas também caem no palmo direito sobre a outra perna.
一 Eu sei. Mas você o conhece… Ele tinha esperanças até o fim de que conseguiria salvá-la. Ele vendeu a própria liberdade para isso… Você deve ter visto… Os olhos dele completamente escuros pela escuridão de um Demônio. – A expressão de Yolina se enfurece. Jamais esperava algo assim de Yurgen, mas o desespero o levou a enganação…
一 Esse demônio… Ficou com ele por todo esse tempo… Eu percebi que o olhar do Yurgen mudou quando ele retornou… Ele sequer chorou quando eu contei que a Sarina havia morrido…! O olhar dele brilhava como o do Raisel… Era isso que minha irmã amava nele… – Frustrada, os dentes se apertam fortemente.
一 Mas agora, ele envolveu até o Raisel com esse demônio…! Como ele pode fazer isso com uma criança?! ELE AMALDIÇOOU O PRÓPRIO NETO! – Em fúria, o braço direito balançou contra o ar enquanto se levantava.
一 Se acalme. – A ponta da bengala bate contra o chão expondo o Gewissen rosado de Yolina como uma ordem autoritária. A voz suave contrasta perfeitamente com o olhar de dor.
Com a pressão da idosa-gato, Carmen se assusta como um filhote quando vê a própria mãe enraivecida. Ainda em fúria, ela se senta, mas de cabeça baixa.
一 Ele sabia e considerou tudo isso. Ele realmente foi um homem falho, mas ele amou tanto Sarina quanto Raisel até o fim. Todos os sacrifícios que ele fez podem ser questionáveis, mas foram necessários… O garoto não conseguiria sobreviver à jornada se ele não o fizesse… E ele foi atrás desse Demônio pelo boato de seu poder de cicatrizar qualquer ferida… Sua esperança o condenou para o seu próprio fim. Não menospreze a dor que ele sentiu por todo esse tempo, Carmen. – Sob o rosto da velha, as veias enfurecidas demonstram indignação com o egoísmo dessa criança. A exaustão a levou para a irracionalidade.
一 Desculpa… – Sussurrou com arrependimento, mas ainda confusa sobre tudo isso.
一 Antes de partirem para Kromslaing, ele me contou sobre o que fez com o Raisel, mas também me disse que sabia que iria morrer lá. Ele preferiu ser cristalizado de dentro para fora, do que ser completamente apagado na corrupção do Geloscht. Pois sabia que caso fosse corrompido, Leraje faria ainda mais atrocidades com o seu corpo e, quem sabe, até mesmo atacaria vocês… Ele jamais se perdoaria caso matasse você ou o Raisel. Assim como nunca se perdoou por ter falhado com sua irmã. – As palavras da senhora são firmes com o olhar estreito. Essa rigidez esconde a dor empática de imaginar o quão difícil foi fazer essas escolhas enquanto a própria vida se esvai.
Cabisbaixa, a ruiva não tem mais nada a dizer.
一 Vá descansar… Em poucas horas sairemos daqui para a base em Roderich. – Completou enquanto se levantava.
Dessa forma, a velha caminhou rumo às escadas laterais para subir até o quarto em que Raisel está.
Ao chegar no corredor, ela avista Lavi parado em frente à porta. Ele parecia indeciso e conflitante se poderia entrar ou não. Ao mesmo tempo que queria confortar o amigo, algo o impedia…
“Eu vi quando a porta daquele salão se abriu… Ele parecia diferente.”
一 O que está fazendo, menino? – Como uma assombração, a fala de Yolina faz o garoto pular para trás em susto.
一 N-N-Nada! – Como um bom fujão, saiu correndo pelo corredor.
Vendo toda essa cena, a anciã apenas suspirou…
一 Francamente…
Virando-se de frente para a porta, tocou nela algumas vezes antes de abri-la.
一 Estou entrando, Raisel.

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