Capítulo 70 - O Novo Reino
一 O que você fará depois que eu morrer, Carmen? – O velho arqueiro, sentado sobre uma pedra, encarou a mulher de frente para ele. Separados pelo amontoado de pequenos pedregulhos para formar uma fogueira, os dois não sabiam, mas estavam em sua última conversa.
O olhar de Yurgen, diferente do habitual, não expressava sua melancolia. Convicto em suas palavras, parecia apenas aguardar o momento em que o seu fim viria.
Ao longe, o garoto colhia galhos para acender a lareira. A floresta noturna ressoava com seus animais, sendo os meros espectadores desses desconhecidos.
Confusa sobre a repentina fala, a ruiva suspirou sem acreditar.
一 Já ouvi essa conversa antes… Você nunca morreu até agora, Yurgen… Por que dessa vez seria diferente? – Com os olhos estreitos, tinha os braços cruzados abaixo dos seios enquanto a feição se demonstrava completamente insatisfeita.
Em resposta, o arqueiro sorriu com a cabeça baixa.
一 A morte um dia chegará para todos… Quando eu não estiver mais aqui, apoie ele o quanto puder. – Com os dedos entrelaçados e os cotovelos apoiados sobre as coxas, a face do homem carregava consigo um olhar de nostalgia.
一 Queeee saco… Para com esse papo dramático… não preciso do seu pedido pra apoiar o Raisel, velho broxa. – Abanou com um dos palmos, como se estivesse afastando a atmosfera melancólica desse homem.
A sensação de ter um nó na garganta fazia o arqueiro relutar por um único instante. Mas superando os seus receios, o arqueiro levou o olhar para a direção do garoto.
一 Ele queria se tornar um Nômade, tão puro… mas você e eu sabemos como nosso mundo funciona. Então, não sei se essa paixão em descobrir mais sobre o mundo… vai existir por muito tempo. Se algum dia ele estiver quebrado, perdido, leve-o para Herstal… Carmen. – Com essas últimas palavras, nem ao menos a encarou de volta. O rosto dele observava o horizonte, fissurado no jovem que vinha com os galhos para a fogueira.
Sem entender o estranho pedido, Carmen sequer teve a chance de respondê-lo e o silêncio pairou por completo.
Sob a atmosfera corrupta do incidente de Kromslaing, as últimas lembranças de aconchego com o antigo companheiro, o amigo de longa data e os resquícios do amor da sua falecida irmã, se encerraram ali.
Abrindo os olhos lentamente após o cochilo, a ruiva está sentada na poltrona em um dos salões da base dos Selvagens, a Toca da Gata.
一 Spencer, foi um demônio que decepou o seu braço? É a energia mais pura de uma Estrela Negra que eu já vi… Que tipo de hospedeiro era? – O loiro tinha as mãos próximas ao membro decepado da mulher. A energia translúcida em runas está tentando curá-la, ou ao menos, tirar os resquícios de Beisen tanto de Berith quanto de Raisel.
一 Foi Berith. Ele não teve um hospedeiro comum, o corpo dele foi criado com a carne de incontáveis pessoas… Praticamente toda a população de Kromslaing ao longo de dez anos. – Com o olhar baixo, não parece ter mais o espírito guerreiro que um dia já teve.
一 Um corpo artificial… Deve ter sido algum Alquimista bem habilidoso que formulou o Skizzieren. Mas é estranho pensar em quem seja… Os elfos proibiram a transmutação de espécies com alquimia depois do que houve com as fadas… Um humano com esse conhecimento é questionável… – Conforme refletia em voz alta, Kimich retirava o misto de energias restante no ferimento. Então, formaram-se duas esferas: uma completamente negra pertencente à Leraje e outra com tons vermelhos, mas ainda escura, pertencente à Berith.
一 Obrigada, Kimich… Se não fosse você, eu ficaria com essa sensação incômoda o resto da minha vida… – Levantando o olhar, ela até tenta sorrir. Mas agora já não havia a possibilidade de voltar à luta.
一 Qual é… Ele não gostaria de te ver com essa cara. Mesmo sem poder lutar, você ainda é a nossa açougueira e mestra espadachim, Spencer. – Pondo um tapinha nas costas dela, o alquimista se dirigiu para outro cômodo com as esferas de Beisen flutuando ao seu redor , orbitando sobre o Gewissen transparente.
Aparentemente, o loiro parece bem familiarizado com o local.
“Do que adianta ser uma mestra espadachim sem minha melhor habilidade? Não consigo mais usar o Tennung porque meu braço esquerdo foi arrancado… Aquele demônio maldito sabia do meu Glanz.” – Agarrando o vazio do local onde havia o braço, a frustração é imensa ao ter a sua principal característica tirada de si.
Pelos arredores do cômodo, Tejin, Kali, Lila, Lavi, Raquel e Jeanice, distribuídos em diferentes assentos, observam a impotência da ruiva. O clima pesado os deixa apreensivos de como confortá-la, pois são perdas imensas, seja do caçador do vilarejo ou de uma das principais motivações daquela antiga guerreira…
Porém, o barulho da porta dupla enorme de madeira se abrindo, chamou as suas atenções.
Raisel e a Lebre partem com pressa para outro cômodo. Por outro lado, a senhorinha com orelhas e cauda de gato vem devagar com suas pernas curtas.
一 Contou pra ele? – Carmen levanta a voz com apreensão. Não sabia como estaria o espírito do rapaz após tudo o que aconteceu, mas sabia que ele poderia contribuir imensamente caso escolhesse a causa.
Yolina acena com a cabeça, dizendo:
一 Sim… Ele irá se unir à nós, mas sobre três condições. A primeira delas é apoiar vocês… Por isso, me contem como eu posso ajudá-los. – De pé, a idosa os encara um a um.
A ruiva espadachim arregala os olhos momentaneamente, mas se encolhe na poltrona em seguida. Os cabelos tapam o rosto… Não havia nada que ela pudesse solicitar. Entretanto, alguém se levanta.
Respirando profundamente, os olhos esmeralda e o cabelo branco escorridos parecem pulsar. Seu espírito é latente, explodindo, enfim, a raiva de ser tão inapto.
一 Eu quero ser forte… Forte pra ajudar o Raisel…! Pra não fazer ele carregar tudo sozinho! Eu quero estar com ele! – Pondo uma das mãos no peito, Lavi descarrega a sua agonia em berros.
Yolina se surpreende ao abrir minimamente os olhos, revelando-os em sua coloração rosada.
一 E-Eu também quero ajudar o Ray como eu puder! – A tímida garota de cabelos brancos acompanha o levantar do irmão gêmeo. Com os punhos cerrados e o semblante firme, ela sequer hesitou após a iniciativa do garoto.
一 O Raisel me salvou… Eu preciso retribuir o favor. – De maneira calma, Jeanice põe uma das mãos no peito. Antes de desmaiar contra Edina, ela conseguiu ver a luz da esperança vindo das costas do rapaz, o dourado que lhe encobria.
Por outro lado, Kali, Lavi e Raquel parecem perdidos. Mas ao ver os dos irmãos, o menino anteriormente preso, também se levanta e diz de modo convicto:
一 Se for assim, eu quero ser mais forte que o Ray! – Bateu o punho no peito com confiança.
Com as intenções dos trigêmeos unidas, a Constelação de Lyra sobre a irmã ressoa. Em seguida, Constelação de Perseu do irmão de cabelos lisos também se eleva e, continuamente, a Constelação de Hércules do irmão de cabelo curto e espetado, expõe a sua presença.
O meio-elfo sorri de maneira extremamente satisfeita com os lábios e os olhos.
一 Parece que o Raisel os infectou bem… Nesse sentido, ele parece o avô. – Recordando-se de quando conheceu o Coruja sobre as árvores tão grandes quanto montanhas, Tejin sente uma vibração indescritível.
No mesmo instante, a garota ruiva expressa uma alegria genuína.
“Você também faz coisas incríveis, Ray…”
一 Eu também quero ajudá-lo com o que eu conseguir, senhora gato.
Pondo as duas mãos sobre o topo da bengala, Yolina ajeita a própria postura. Inflando bem os pulmões, a sua energia se movimenta de maneira colossal.
一 Não será fácil… Vocês passarão por dificuldades, mas encontrarei o melhor caminho para cada um. Sobre os gêmeos, Lila e Lavi, eu consegui colocá-los como candidatos convidados da Schule. Você vai com eles, garotinho? – Encarando diretamente o último gêmeo, a gata anciã questiona a motivação dele.
Porém, Kali não se intimida. Entre os três, ele é o mais corajoso.
一 É óbvio. – Destacou com um sorriso no rosto.
一 Muito bem. Já você, filha da Spencer, auxilie sua mãe aqui por enquanto. E Tejin, guie Jeanice, Kimich e Raisel para Kanthen após o treinamento. Ele falar com o Grande Sábio será uma interação valiosa para o seu desenvolvimento. – Diminuindo a pressão sobre os menores, a velha volta a caminhar.
Todos parecem ter entendido os seus papéis, exceto as crianças.
一 O que é Schule, vovó? – Despreocupado, a voz de Kali se levanta enquanto segue a idosa.
Em resposta, Lavi e Lila os acompanham pelas laterais.
一 Uma oportunidade de se tornarem mais poderosos. É onde desenvolverão à si mesmo sobre diferentes dificuldades. A Schule é um grande campo de preparação para jovens como vocês, que não tem para onde ir… A tentativa dos covardes de se tornarem corajosos. – A fala da senhora foi acompanhada de uma pressão invisível. Não há energia, mas de alguma forma, os âmagos dos trigêmeos tremem com o futuro desafiador.
Olhando um para o outro, os três não hesitam, mas parecem se apoiar em suas convicções.
Sumindo rumo ao corredor, a vasta claridade os ofusca. Desse clarão, a Sala Branca imensurável tem apenas dois visitantes, a mulher cuja cor de cabelo parece chamas e o rapaz que rejeitou o seu futuro destinado.
一 Não faça rodeios. Venha com tudo. – A ordem é dada enquanto a Phoenix estende a sua autoridade sobre a cabeça de sua Constelada. A energia dela ressoa vastamente, pintando quase toda a sala branca em um carmesim ardente.
A poucos metros de distância, o rapaz entende a necessidade. O palmo direito busca o ar, formalizando o arco Svartgren entre partículas douradas. O Gewissen ressoa para os ares com fluxos negros variáveis entre a imensidão áurea.
A pressão do choque entre as suas Consciências chacoalha a atmosfera da Sala de Treinamento. O contratante de Leraje visualiza a oponente desarmada, raciocinando suas habilidades após vê-la em ação por uma fração de segundos e, também, observar os seus teletransportes mais de uma vez.
“Não tenho mais o Zienung para as flechas serem teleguiadas, ou muito menos o Kalte Welle pra defesa… Usar só as técnicas de arquearia não vai ser o suficiente…! Preciso encontrar o meu próprio meio de lutar!”
Após uma fração de segundos, Raisel parte com o arco em mãos. Em meio a corrida, tratou de circular a adversária. A corda é carregada em uma flecha fina como uma agulha e, no outro instante, é solta como um feixe em direção a nuca da oponente.
“Pfeil Geist!”
Virando minimamente o rosto, a Lebre compacta a sua energia. Das costas, uma única asa de penas flamejante é o suficiente para repelir a flecha como um escudo.
Porém, os olhos dela deslizam mais vezes. O fulgor dourado daquela única agulha, no fim, se torna como uma quantidade imensurável de disparos fantasmas.
“Flügel des Phönix: Rotierender Aufstieg!”
O Gewissen como chamas se concentra na outra lateral das costas. De lá, uma outra asa se manifesta. Em um salto alto enquanto gira no próprio eixo, a quantidade infinita de flechas finas douradas batem contra a expansão do redemoinho de asas.
No fim, as penas da fênix voam para todos os lados com o abrir da defesa. Voando, a Lebre encara Raisel que ainda está no chão, mas com a flecha apontada para o alvo.
“Pfeil Spalt!”
A nova flecha foi solta. Sua aparência intrigante se dá pela ponta oscilante como uma estrela luminosa ou esfera de espinhos.
Em um único movimento de braço, a mulher flutuando estende a asa como um tentáculo para interceptar o disparo antes mesmo de chegar perto para atingi-la. Porém, essa decisão foi a pior possível…
Quando a colisão está para acontecer, a flecha se divide em outros disparos como uma fragmentação para os arredores. O tentáculo atinge somente o vento enquanto os novos projéteis tentam atingi-la por toda a frontal!
Usando a outra asa, ela se fecha em uma parede. A colisão das setas de energia a empurra para trás como se estivesse protegendo a si mesma de uma chuva. Mas o jovem arqueiro tinha o que queria: fixar o seu alvo no ar.
Em corrida, ele se posicionou abaixo dela. O arco dá a direção e, em um segundo para o outro, uma nova flecha se mostra em preparação. A ponta gira como uma broca, expondo um alto poder de perfuração. Porém, não era apenas isso.
Cessando a corrida em um pisar abrupto do pé direito, o ar ao redor dele vibra com intensidade. A corda do arco é puxada com tanta força que as extremidades se entortam temporariamente.
“Spiralpfeil!”
Quando é solto, o projétil avança como um lapso. A potência do giro e do disparo forma até mesmo um vórtice, mas isso se demonstra inútil.
A fênix parece deslizar em pleno ar, evitando não só de ser atingida, como de ser triturada no efeito espiral. A trajetória de seu vôo se mostra maleável o suficiente para, imediatamente, cair na direção do arqueiro para um combate curto!
Sem muito tempo de reação, na perspectiva de Raisel, é como uma águia vindo à todo vapor para uma emboscada decisiva.
A Lebre executa um mortal frontal antes de atingi-lo, impondo o esticar de uma de suas pernas para um chute devastador com todo o peso do impulso, da queda e do giro!
O impacto da colisão gera um baque absurdo que ressoa como um tremor por toda Sala Branca. O vácuo trinca o chão e os pés do garoto afundam sobre o solo. Mas, o fluxo de Beisen sobre o braço é quem interceptou o golpe direto. O atrito entre as chamas da fênix e a escuridão de Leraje novamente expõe a dualidade de suas origens.
Numa tentativa de contra-ataque, o garoto tenta agarrar a perna dela, mas agilmente a mulher escapa ao pousar sobre o chão a uma distância de doze metros.
“Foi como bater contra um tanque de água… Que resistência absurda pra um garoto.” – A Lebre comenta enquanto as asas se cruzam à frente como um ‘X’, pronta para a luta.
Por outro lado, o hematoma no braço do rapaz é evidente por um único segundo. No outro, desaparece totalmente sob a energia sombria.
“Ela é mais móvel no ar do que eu imaginei… Devo arriscar tudo num combate corpo à corpo? Minhas flechas não vão atingi-la…” – Preparando as suas táticas de combate, os olhos dourados se fixam na possibilidade de vencê-la.
Ao soltar Svatgren, o equipamento se desfaz em partículas de luz dourada. Os punhos fechados formam a guarda na altura do rosto.
Com o rosto coberto pela máscara, a Lebre parece rir momentaneamente pelo gesto de ombros. Nesse instante, as asas também se desfazem.
A postura da fênix é totalmente diferente do que o rapaz já havia visto. Os palmos bem abertos, mas os dedos unidos, uma guarda nem um pouco convencional. Afinal, uma mão está à frente enquanto a outra está deitada na altura da cintura.
Deslizando o pé esquerdo à frente, somente a ponta dos dedos tocam o solo.
Receoso, mas sem hesitação, Raisel parte. Compactando os antebraços à frente do corpo e inclinando a cintura, seu gingado vai de um lado para o outro como vultos. Nesse momento, os punhos se cobrem em Beisen latejante.
Porém, o jovem observa algo vindo contra o seu rosto em uma enorme velocidade! Sem que percebesse, a perna da Lebre apenas aguardava o momento exato para atingi-lo em um bote preciso.
No último segundo, a cabeça balança para o lado. O chute frontal passa causando um vácuo que, pela força, não só atravessaria o crânio dele, como o sumiria completamente com toda parte superior ao pescoço. Entretanto, nesse gingado, identifica a abertura deixada após o golpe errado da mulher!
O tornozelo gira e o braço esquerdo é solto para um golpe direto na costela dela, mas com astúcia e experiência, antes de ser atingida, a ruiva bate com a mão contra a lateral do punho do rapaz. O braço dele desliza para fora do alvo enquanto o abdômen se expõe completamente.
A força do golpe e do avanço corporal, no fim, o condenou. O golpe pesado é punido imediatamente por uma palmada tão forte no abdômen que o tira do chão por alguns centímetros.
Toda a energia, seja Glühen dourado ou Beisen sombrio, desaparece como o estourar de um balão.
Encolhido no chão com os braços sobre a barriga, Raisel está totalmente rendido.
“Não… consigo concentrar Gewissen… E não consigo… respirar…” – Contorcendo-se perante o ataque, os olhos dele fisgam a adversária com dificuldade.
一 Seu combate corporal é péssimo… Vou te ensinar algumas coisinhas, garoto.~ – Comentou com satisfação ao vê-lo naquele estado.
O resultado do primeiro round é uma vitória avassaladora do braço direito de Yolina. Estendendo o palmo para ele, a mascarada oferece ajuda.
Ainda com dor, a mão se entrelaça na dela para poder se levantar.
一 Por favor. – Não se frustrou com a derrota. Pelo contrário, sua vontade está ainda mais ardente.
Logo, a interação entre os dois fica cada vez mais distante. Na vasta sala branca, os dois parecem apenas pontos. Indo além das paredes da base, o templo abandonado parece inabitado. Mas ao ultrapassar essa antiga construção, a imensidão do novo reino se revela.
Árvores imensas como montanhas, mas que misteriosamente estão cada vez mais baixas quanto mais distante desse território.
Sob o céu, uma enorme ilha flutuante vaga sem rumo semelhante à uma nuvem. Entre flores gigantes, uma sociedade élfica vive. Entre bestas e feras inimagináveis, os mistérios se escondem.
Das sombras, distante do santuário esquecido, novas máscaras surgem. Os olhos brilhantes demonstram uma fome insaciável dos Selvagens, aqueles dispostos à reconfigurar o mundo.
Entre brilhos e sombras, aqui é onde até mesmo a linha do futuro é incerta. O caos ou a paz, qual dos dois reinará sobre Wynward abaixo da observação das Estrelas?

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