Rio Vivo, a joia fértil de Downfire, acordava sempre antes do sol. Os primeiros feirantes já gritavam seus preços na praça central, os artesãos batiam martelos contra metal, e as carroças, carregadas de feno, tilintavam pelas ruas pavimentadas que davam orgulho ao reino.

    Eu, Raul Sevarntes, acordava sempre depois do sol, e sempre com dor de cabeça.

    Naquela manhã, mais uma vez, o vinho barato ainda queimava minha garganta e o cheiro de tabaco grudava em minha roupa como maldição de velho bruxo.

    Não que eu fosse irresponsável, apenas tinha minhas prioridades.

     Prioridade número um: nunca perder uma aposta. Prioridade número dois: se perdesse, dar um jeito de sair vivo.

    Minha rotina era simples: jogar, beber, tocar umas músicas em tabernas menores, inventar histórias que ninguém ousaria verificar. A sorte sempre me salvava, e quando ela não aparecia, eu apelava para uns truques… Nem sempre limpos, mas a vida tampouco é.

    Foi Júlio Mandir, meu amigo pugilista aposentado, se é que se pode aposentar de perder dentes em ringues clandestinos, quem me arrastou para a praça grande naquele dia.

    — Raul, você precisa ouvir esse sujeito — disse ele, cuspindo para o lado, como fazia sempre que falava de alguém que respeitava. — Chico Rei, o bardo de Rorin. Canta sobre elfos, dragões, reinos distantes… essas coisas que fazem o povo chorar e encher o chapéu dele de moedas.

    — Júlio, você me arrastou para ver poesia? — reclamei, ajeitando meu casaco amarrotado. — Minha poesia é outra: baralho, dado, copo cheio.

    Mas seguimos. Porque quando Júlio ficava sério, geralmente era coisa boa.

    Chico estava no meio da praça, cercado por curiosos.

    Um homem magro, moreno, barba fina, olhos cheios de malícia. Tocava um alaúde gasto, mas fazia dele soar como se tivesse sido forjado por anjos élficos, desses que ele mesmo gostava de cantar.

    “Nos vales de Emerus, onde reis disputam coroas, E dragões dormem sob montanhas de ferro, Homens vendem sua honra por moedas, E esquecem que um coração vale mais que um trono…”

    A multidão suspirava. Eu, confesso, suspirei também, mas mais pelo cheiro de assados vindo da tenda vizinha.

    E foi nesse instante que a vi.

    Mircella Mendes. Apenas seu nome já carregava o peso da cidade. Filha de uma das famílias mais poderosas de Rio Vivo, senhora de terras, casas, contratos, e segundo rumores, do destino de muitos que ousavam desafiá-la. Mas naquele momento, não era o poder que me chamou a atenção.

    Foi a forma como ela ouvia Chico. Olhos claros, atentos, absorvendo cada palavra como quem decifra enigmas. E aquele ar de silêncio encantador, de quem fala pouco, mas pensa muito.

    Eu, Raul Sevarntes, que sobrevivi a brigas em tavernas, dívidas de jogo e flechas quase certeiras, senti minhas pernas tremerem.

    Não que eu acreditasse em amor à primeira vista. Mas encanto? Ah, disso eu entendia.

    Júlio, claro, notou minha distração.

    — Nem sonhe, Raul — murmurou ele. — Essa aí é Mircella Mendes. Rica, poderosa e inacessível. Você não é nem o sapato dela.

    — Sapato, não — retruquei. — Talvez o vinho derramado no sapato…

    Chico seguiu cantando, mudando agora para histórias de anões que cavavam tão fundo que encontraram rios de fogo. Falava de Emerus, o reino distante ao Noroeste, onde nobres tramavam contra nobres em banquetes intermináveis. O povo ouvia fascinado. Mircella também.

    Ela não ria, não sorria abertamente, mas seus olhos brilhavam como se cada nota fosse uma resposta a uma pergunta secreta.

    E eu sabia, ali mesmo, que estava perdido.

    A música acabou. O povo se dispersou. Mircella caminhou pela rua de pedra, acompanhada de dois criados, conversando baixo. Eu não ouvi nada, mas inventei histórias na minha cabeça: talvez ela discutisse tratados, talvez estivesse resolvendo a compra de uma casa, talvez apenas quisesse mais silêncio.

    — Raul… — Júlio me cutucou. — Nem tente. Mas eu já tentava, dentro de mim.

    O problema é que minha vida não cabia na dela.

     Enquanto ela erguia impérios de pedra, eu vivia derrubando copos de vidro.

    Enquanto ela acumulava riquezas, eu acumulava cicatrizes.

    Ainda assim, o coração é tolo, e o meu já se via como protagonista de alguma história grandiosa. Talvez uma daquelas que Chico contava, mas em vez de elfos e dragões, apenas um beberrão e uma mulher que nunca iria amá-lo.

    No fim do dia, depois que Mircella sumiu entre as ruas bem alinhadas da cidade, Chico se juntou a nós na taverna. Riu alto, bebeu conosco e falou de reinos e monstros como se fossem vizinhos de porta.

    — Raul, você precisa aprender! — disse ele, erguendo o copo. — que o mundo é feito de histórias. Quem sabe inventá-las, vive melhor que quem as ignora!

    Eu sorri, fingindo concordar. Mas a verdade era que uma nova história já começava a se escrever dentro de mim. Uma que tinha nome e rosto claros como a luz do meio-dia: Mircella Mendes.

    A noite em Rio Vivo nunca era silenciosa. As tabernas se acendiam como tochas nas esquinas, cada uma com sua própria orquestra de vozes, gargalhadas, gritos de vitória e socos mal dados. Para mim, Raul Sevarntes, era o verdadeiro palácio dos homens vivos: onde a bebida custava pouco e as promessas custavam ainda menos.

    — Hoje é meu dia! — declarei, já meio torto de vinho barato, enquanto empurrava a porta do Galo de Ferro, a taverna mais desonesta e, portanto, a mais divertida da cidade. Júlio Mandir resmungou atrás de mim, como sempre fazia quando pressentia confusão.

    — Raul, você sempre diz isso antes de perder a camisa.

    — Justamente por isso nunca uso camisas boas. — respondi, exibindo a túnica já manchada de vinho da noite anterior.

    As mesas estavam cheias de jogadores, soldados de folga, mercadores meio embriagados e, claro, vigaristas piores do que eu. E lá estava a reluzente mesa dos dados, meu altar sagrado.

    Sentei-me, ergui os olhos e vi o velho Damião Hortêz, sobrinho bastardo da poderosa família Hortêz, organizando as apostas. Homem barrigudo, sorriso falso, sempre com três anéis de ouro nos dedos gordos.

    — Raul Sevarntes, o azarão sortudo! — disse ele, debochando. — Veio doar suas moedas ou apenas sua dignidade?

    — Dignidade eu já perdi quando nasci! — respondi jogando duas moedas de prata na mesa. — Agora só jogo com o que sobra.

    As risadas estouraram. A rolagem começou.

    Meus dados dançavam na madeira como espíritos embriagados. E, contra qualquer lógica, saíram números perfeitos. Gritos, aplausos, vaias. Eu sorria, bebia mais vinho, inventava histórias absurdas sobre dragões que me ensinaram a jogar, e milagrosamente vencia cada rodada.

    Até que a sorte resolveu brincar comigo.

    Um dos mercadores, sujeito enorme chamado Torval, bateu a mão na mesa e grunhiu.

    — Isso é truque! Ninguém ganha três vezes seguidas contra mim! — A mão dele foi direto para a adaga. Júlio se levantou, pronto para intervir. Eu, no entanto, fiz o que sempre faço: sorri.

    — Meu amigo, se acha que trapaceio, troquemos de dados! — disse, oferecendo os meus e pegando os dele.

    Joguei. E, como sempre, o impossível aconteceu: vitória.

    A mesa inteira explodiu. Uns riam, outros se levantaram prontos para briga. Torval, com o rosto vermelho como brasa, ergueu a adaga. E foi nesse instante que uma cadeira voou do nada, jogada por Chico Rei, que chegava atrasado, já cantando.

    — Raul, Raul, o azarão do povo, Que joga com sorte e foge do estorvo!

    A pancadaria começou.

    Cervejas voaram, socos erraram, dentes caíram. Júlio derrubou três homens com a calma de quem amassa pão.

    Chico cantava enquanto batia com o alaúde na cabeça de quem estivesse por perto. E eu? Eu escapei por baixo das mesas, rindo, com uma sacola de moedas que não era minha.

    Na rua, ofegante e vivo, percebi mais uma vez a maldição que me acompanhava: Eu nunca perdia. Nem quando deveria.

    As moedas tilintavam na sacola, mas dentro de mim algo queimava. Não era o vinho. Era o olhar de Mircella Mendes, lembrança fresca da tarde. Enquanto eu fugia de guardas bêbados e vigaristas furiosos, não conseguia tirar da cabeça a imagem dela ouvindo Chico como se fosse desvendar os segredos do mundo.

    E então me perguntei, entre gargalhadas e corridas.

     — Será que um dia minha sorte me leva até ela?

    Mas logo tropecei, rolei pelas escadas de pedra da rua e terminei rindo deitado no chão, com as moedas espalhadas ao meu redor. Sim, talvez minha sorte fosse mais uma piada dos deuses.

    Ainda estava estirado no chão de pedra quando uma sombra elegante cobriu minha visão. Achei que fosse a morte, mas era pior: guardas da família Hortêz. Armaduras reluzindo, lanças erguidas, olhos frios como o inverno.

    — Raul Sevarntes. — disse o capitão, cuspindo meu nome como se fosse sujeira. — O senhor Damião exige sua presença.

    Engoli seco. Damião Hortêz, o mesmo que organizei os jogos e humilhei na frente de meio Rio Vivo. Só podia dar coisa ruim.

    — É um mal-entendido! — comecei, juntando minhas moedas do chão. — Eu nem gosto de apostas, foi pura coincidência…

    Um guarda me ergueu pelos ombros como quem carrega saco de batatas. Fui arrastado até o palacete Hortêz, uma construção branca, colunas grossas, cheia de janelas de vidro importado de Riverdeep, luxo que até reis invejariam.

    Damião estava sentado atrás de uma mesa de carvalho polido, anéis brilhando sob a luz das velas. Bebia vinho caro, daqueles que ardem na garganta só de olhar.

    — Raul… — disse, esticando as sílabas. — Você me envergonhou na frente de mercadores e soldados. Não me importo com as moedas, mas com a honra da família Hortêz.

    Sorri do jeito mais desajeitado possível.

    — Honra é como dados, senhor Damião. Sempre dá para jogar de novo.

    Ele não riu.

    Antes que pudesse me esfaquear com o olhar, outra porta se abriu. Entrou um homem magro, roupas negras, olhar astuto: Alcides Clearton, um dos estrategistas da família rival.

    — Damião! — disse ele, ignorando completamente minha presença. — os Oliveira estão se movendo. Parece que querem comprar terras próximas às dos Mendes.

    Meu coração gelou. Eu talvez fosse apenas um beberrão, mas até eu sabia: quando famílias nobres de Rio Vivo disputavam terras, o povo era quem sangrava.

    Damião bateu a mesa, furioso.

    — Não vou permitir que Oliveira e Mendes se unam! Clearton, quero que espalhe rumores, algo que enfraqueça a imagem deles.

    E foi aí que percebi. Eu não deveria estar ouvindo aquilo. Eu, Raul Sevarntes, bêbado profissional, acabei no meio de uma conspiração política.

    Tentei tossir para chamar a atenção, mas foi Alcides quem me notou primeiro. — E este? — apontou para mim, curioso. — Por que ele está aqui?

    — Um rato sortudo. — respondeu Damião. — Mas talvez possamos usá-lo.

    Meu estômago embrulhou. Usar-me? Isso nunca terminava bem.

    — Raul! — disse Damião, aproximando-se. — você vai fazer um favor à família Hortêz. Nada demais, apenas entregar uma mensagem aos Oliveira.

    — Por que eu? — arrisquei. — Não sou mensageiro, sou contador de histórias…

    — Justamente! — ele sorriu como cobra. — Ninguém suspeita de bêbados faladores.

    Me deram um pergaminho selado com cera vermelha. Não me deixaram abrir, claro. Só avisaram.

    — Entregue a carta a Rodrigo Oliveira, ainda esta noite. Se falhar… bom, digamos que Júlio e Chico não terão mais um amigo para beber.

    Saí do palacete mais suado que cavalo de carga. A lua brilhava sobre Rio Vivo, e as ruas já estavam vazias. Segurei o pergaminho como se fosse uma bomba prestes a explodir.

    E no fundo, sabia: esse jogo não era de dados. Era de poder. E eu, sem querer, havia acabado de sentar na mesa dos nobres.

    E enquanto isso, em outra parte da mesma cidade, para alguns, um mundo à parte, onde um simples desejo valia várias vidas pobres, um outro ponto de vista surgia.

    As velas ardiam baixas quando fechei os pergaminhos de negociações.

    O silêncio da biblioteca era quebrado apenas pelo som ritmado de meus dedos batendo na mesa.

    Política era inevitável em Rio Vivo. Onde havia terras, havia disputas; onde havia disputas, havia famílias tramando. Mas eu não me deixava prender apenas pelo jogo dos nobres.

    Naquela mesma manhã, fiz minha visita habitual ao Orfanato de Santa Hilária, uma construção simples de pedra clara, longe dos palácios dourados e dos salões de baile.

    As crianças correram para mim assim que atravessei o portão, agarrando-se à minha túnica azul.

    — Senhora Mircella! Conte outra história! Ajoelhei-me, os cabelos loiros iluminados pelo sol, e sorri com a calma de quem não precisa forçar encanto algum.

    — Hoje vou contar sobre as cidades de Downfire. Elas se ajeitaram no chão de terra batida. AAlgumas traziam pão duro nas mãos, outras brinquedos de madeira gastos. Todas, porém, tinham os olhos brilhando de curiosidade.

     Comecei, com voz serena, mas firme como quem domina cada palavra.

    — Downfire é vasto. Temos Rio Vivo, nossa cidade das águas e das pedras. Mas ao Norte existe Pedraverde, famosa por seus vinhedos que se estendem até perder de vista. A Leste, Crescente do Sol, onde o comércio nunca dorme e as caravanas se cruzam como rios de ouro. E a Oeste… — pausei, saboreando o suspense. — há Serrafunda, onde as minas escondem riquezas e perigos na escuridão.

    As crianças riram, inventando dragões nas minas, fadas nos vinhedos, monstros nas estradas.

    Escutei cada uma delas, corrigindo com paciência, incentivando suas fantasias sem nunca desdenhar.

    — Talvez não haja dragões em Serrafunda. — disse, rindo baixo. — Mas nunca se sabe. O mundo é maior do que pensamos.

    Uma garotinha de cabelos desgrenhados me perguntou.

    — A senhora já viu um dragão? Hesitei apenas por um instante. — Ainda não. Mas já ouvi histórias de quem viu.

    No fundo, lembrei-me do estranho bardo que cantava na praça. Suas baladas falavam de elfos, anões e criaturas mágicas.

    Um andarilho com olhos cansados e voz que parecia esconder séculos. Quem seria ele? pensei por um momento. Mas logo afastei a ideia. Não era tempo de distrações.

    Ao final da tarde, quando deixei moedas no orfanato para pão fresco e remédios, uma sensação curiosa me tomou.

    Entre negócios e política, aquele era o único lugar onde realmente sentia estar construindo algo que não podia ser vendido.

    Naquela noite, ao retornar para minha mansão, fui recebida por meu irmão mais velho, Esteban Mendes. Homem rígido, cabelos escuros sempre alinhados, olhar prático de comerciante que via números em tudo.

    — Mircella! — disse ele, seco. — Temos problemas. Os Clearton foram vistos próximos aos Oliveira. E os Hortêz estão se mexendo com pressa incomum.

    Pousei meus olhos sobre ele, calma como sempre. — Então o tabuleiro está montado.

    Esteban franziu o cenho. — Você fala como se fosse um jogo.

    — E não é? — retruquei, erguendo a taça de vinho. — Só que em Rio Vivo, as peças são pessoas. Ele suspirou.

    — E o que vamos fazer?

    — Vamos esperar. — respondi, voltando-me para a janela. — O primeiro erro sempre vem dos impacientes.

     Enquanto falava, não deixei de me lembrar do bardo e de suas canções, aquele homem de olhos curiosos demais para um simples andarilho. Não sabia quem eram. Mas sentia que, de alguma forma, as ruas e os salões estavam prestes a se encontrar.

    Na biblioteca da mansão Mendes, o cheiro de pergaminho e cera queimando se misturava ao aroma suave de vinho.

     Mantive as mãos entrelaçadas sobre a mesa, o olhar fixo em mapas de Rio Vivo e nas anotações feitas por mim mesma.

    Esteban ainda falava, enumerando nomes, negócios suspeitos e rumores que corriam pelos mercados.

    Eu, porém, não me deixava arrastar pelo excesso de palavras. Escutava em silêncio, como quem junta peças de um quebra-cabeça invisível.

    — Os Clearton são como ratos! — disse Esteban, nervoso. — Sempre nas sombras. Mas se estão aliados aos Hortêz, não podemos ficar parados.

     Ergui o olhar devagar.

    — Clearton nunca se aliam a ninguém. Apenas observam até que o outro lado sangra.

    Meu irmão me fitou, confuso.

    — E então, qual seria sua sugestão?

    — Deixar que sangrem — respondi, simples, mas firme. — Hortêz e Oliveira se vigiam há décadas. Se Clearton atiçar a briga, ambos perderão algo.

    E nós? — sorri levemente — nós ganharemos silêncio e terras livres.

     Esteban resmungou, contrariado.

    — Você fala como se fosse um jogo de tabuleiro…

    — Talvez seja! — repliquei, serena. — Mas ao contrário do jogo, aqui as peças têm vontade. Precisamos de olhos no campo e ouvidos nas ruas.

    Levantei-me e caminhei até as estantes. Puxei um livro grosso, sem título, de capa gasta. Entre suas páginas, estavam escondidas minhas anotações sobre dívidas de pequenos mercadores, movimentos de soldados e rumores de feiras distantes. Nada escapava da minha atenção.

     — Vou enviar mensagens discretas a alguns comerciantes de Crescente do Sol. — disse, virando-me. — Eles devem ouvir os viajantes. Muitas vezes, um segredo corre mais rápido pelas estradas do que pelas tavernas.

    — Está se envolvendo demais. — acusou ele.

    — Não! — respondi, firme. — Estou apenas me certificando de que, quando os homens brigarem por poder, o povo não pague todo o preço.

    As lembranças das crianças do orfanato atravessaram minha mente.

    Seus rostos curiosos, suas perguntas sobre dragões, sua fome mal disfarçada.

    Aquilo não era abstração: era o que acontecia sempre que nobres transformavam desavenças em guerras.

     Sentei-me de novo.

    — Se eu puder evitar que mais órfãos surjam em Rio Vivo, já vale a pena.

     Esteban não respondeu. Sabia que, quando eu falava daquela forma, nada mudava minha decisão.

    Pouco depois, sozinha, acendi mais uma vela e retomei a leitura. Meus olhos percorriam relatórios, mas minha mente vagava: o bardo que cantava sobre reinos distantes, sempre com ar entre confusão e encanto. Pessoas assim sempre parecem insignificantes… até não serem. Suspirei.

    A noite caía, e as ruas de Rio Vivo começavam a ferver com as intrigas dos poderosos e os desvarios dos pobres.

    Eu sabia, em silêncio: a tempestade estava se formando. E quando viesse, eu queria estar preparada. não para ganhar mais terras, mas para proteger aquilo que realmente importava.

    Na manhã seguinte, já estava em meu escritório, analisando as últimas notícias trazidas por meus contatos. Cada mensageiro, cada carta cifrada, cada rumor de estrada era cuidadosamente colocado em meu mapa de Rio Vivo e das cidades vizinhas.

    Pedraverde. Seus vinhedos não eram apenas fonte de vinho e riqueza; eram também uma rede de olhares atentos.

    A família Hortêz mantinha influência sobre os comerciantes e viajantes que se dirigiam ao sul.

    Eu sabia que uma palavra certa com um negociante de vinhos poderia render informações preciosas sobre seus movimentos.

     Crescente do Sol. Cidade de caravanas e mercados sem fim, influenciada pelos Clearton.

    Lá, o comércio não era apenas mercadoria; era inteligência em forma líquida. Bardos, viajantes, caravaneiros. todos, voluntária ou involuntariamente, carregavam notícias para quem soubesse ouvir. E eu sabia ouvir.

     Serrafunda. As minas profundas, sob o comando da família Oliveira, eram fontes de riqueza e de tensão. Trabalhadores eram forçados a registrar dívidas, vendas de metais e rumores de contrabando.

    Cada moeda, cada pedra preciosa tinha um rastro. e cada rastro podia ser transformado em informação. E, claro, acima de todas as cidades, estava o rei Leandro da família Braga.  Ele não precisava interferir diretamente; mas eu sabia que meus movimentos deveriam respeitar a autoridade do trono.

    Isso, porém, nunca me impediu de agir discretamente, prevenindo crises antes que atingissem o povo.

     Entre cartas, mapas e bilhetes cifrados, eu anotava, desenhava e conectava pontos.

    Cada cidade era um nó, cada família dominante um guardião de segredos, cada mensageiro ou músico, uma linha de comunicação invisível. E nunca esquecia o lado humano da minha missão.

    Voltei ao Orfanato de Santa Hilária naquela tarde.

    Mais uma vez, falei às crianças sobre cidades, rotas e histórias de Downfire, mas, entre linhas, ensinei sobre justiça, cuidado e responsabilidade.

    — Lembrem-se! — disse a elas —, cada cidade, cada rua, cada casa tem pessoas dentro. Pessoas que ajudam, que brigam, que se perdem. Sempre que puderem, ajudem aqueles que não têm ninguém para protegê-los. Isso é mais importante do que ouro ou títulos.

    Seus olhos brilharam. Absorviam cada palavra sem perceber que estavam aprendendo política, estratégia e humanidade ao mesmo tempo.

    Quando deixei o orfanato, o sol se punha sobre Rio Vivo. As sombras longas refletiam a complexidade da cidade e das cidades vizinhas. Respirei fundo.

    Cada fio de informação, cada movimento estudado, cada gesto humano que conseguia proteger. tudo se entrelaçava.

    No silêncio da minha mansão, voltei àqueles mapas, bilhetes e notas de viagem. Porque, em Downfire, o poder não era apenas uma questão de família ou riqueza, mas de saber ouvir, observar e agir antes que o caos se instalasse.

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