Capítulo III: No coração da montanha
Mais um dia começava em Acheron! A vila Fenda Ametista girava como engrenagens de um relógio humano… Aliás, uma ótima invenção para marcar o tempo sem a necessidade dos raríssimos cristais de luz ametista energizada…
Não éramos uma capital, nem uma cidade emergente. Na verdade, éramos mais que isso, até porque todas as cidades grandes como Dul-Aaman, Dul-Kaer ou Farrel dependiam diretamente dos esforços de cidades como Acheron e Greyrock. Até mesmo das fazendas a céu aberto em seus arredores…
No final das contas, isso pouco importava. O resultado era sempre o mesmo. Nós nos matávamos de trabalhar para sustentar um rei que nem nunca vimos. Quando tentamos lutar por nossos direitos, recebemos machados em nossas portas…
Bem, eu não lutei, na verdade, não tinha tempo para isso… Tenho família, e se, por um acaso, faltar algo, a culpa é minha.
Nunca fui do tipo barulhento, prefiro ficar em silêncio, ouvindo apenas o murmúrio das rochas na ponta de minha picareta… Temos uma meta de ouro para entregar e… Minha sobrevivência depende disso…
Nunca me julguei líder de nada, porém, me elegeram líder da equipe de escavação Embrio zero sete.
Uma das quinze escavações da milagrosa companhia Embrio…
Sim, milagrosa…
Milagrosamente, em 1 ano, a Embrio se tornou a maior companhia de escavações de Karag-draan sob o comando de um tal Marduk Lava Fria…
Rivalizando a StoneCore, com mais de trinta anos de história, e até mesmo a GoldBrake, com mais de cem anos.
A equipe zero sete era encarregada de uma perfuração audaciosa, um veio tão profundo, que desafiava a compreensão do rei. Porém, alguém tinha o rabo preso nessa relação.
Ou o rei devia algo aos dobos da empresa, ou a empresa tinha alguma carta que amedrontasse e muito nosso rei Dorothar Terceiro.
Em dois anos de funcionamento, a Embrio se tornou a maior empresa de escavação de Karag-draan. Porém, nunca havia encontrado um veio relativamente grande que explicasse seu crescimento…
Então, quem financiava suas escavações, e para que?
E por que o rei sempre permitia a eles todo e qualquer lugar dentro das montanhas?
Eram perguntas que muitos tinham, mas ninguém as fazia…
No geral, como operários, haveria pouco que poderíamos descobrir… E nesse caso, especular roubaria horas preciosas escavando…
Thorgar Barba Cinza já estava se encaminhando para seu posto. O anão de nariz de batata e pele encardida vestia uma túnica de couro batido de búfalo das montanhas.
Sua barba com as pontas amarradas no cinto era espessa e alva, lembrando nuvens de rocha quente.
Nas costas, a picareta prateada tilintava ao se chocar com um cantil amarrado na parte superior de sua mochila.
O túnel que passava em frente de minha casa era sempre agitado, por ser um dos poucos que levavam direto para o “Poço”.
Por lá, passavam a maior parte de meus companheiros de picareta.
Ullus Marreta Velha, um jovem anão, apesar de seu nome-título, era um prodígio da família SilverHalle, tinha cabelos curtos e barba negra sempre bem feita.
Parecia um membro da realeza aos olhos mais distantes, já aos meus olhos, era o mesmo garoto que conheci na infância em Dul-Kaer.
Trajava uma túnica pesada com tonalidades ametistas que contrastavam com as joias de iluminação espalhadas ao longo dos túneis.
Seu rosto jovial sempre oferecia um largo sorriso a seus companheiros. Era praticamente uma criança beirando seus cinquenta e quatro anos de idade. O corpo robusto, hábil na hora de ferir a rocha! Sem dúvidas, meu melhor amigo. Ou pelo menos o único que me ouvia nas horas certas!
Luin Rocha Fria, um dos companheiros mais velhos, cento e oitenta anos de escavação, ostentava os cabelos e a longa barba alvas como uma safira leitosa.
Era sábio e simples, mesmo tendo o sangue StormCroe.
Parecia com aqueles velhos das histórias de heróis, que sempre sabiam de tudo, mas ninguém acreditava o suficiente.
Essa era a minha equipe, eu, Arathor MoltenCore, adorava minhas manhãs e tardes com eles. Eram minha família fora de casa!
O dia sempre começava do mesmo jeito em Acheron. O cheiro de rocha partida e aço fundindo era o perfume de todas as manhãs.
Quando vi Thorgar passando pela janela de pedra segurando sua velha picareta nos ombros, corri para o assoalho que dividia minha cozinha da rua do túnel.
— Duro como rocha! — disse, observando o rosto sempre mal-humorado de meu velho amigo.
— Maleável como o ouro! — respondeu Thorgar, parando de frente a uma das luzes artificiais que iluminavam os longos túneis.
Levantei meu copo de cerveja Goraltheir, uma mistura requintada com cogumelos especiais de Dul-Kaer, e ofereci a Thorgar antes de dar um longo gole.
Sabia que o anão recusaria beber meio copo, mas também sabia que Dily já estava vindo com outro copo para demonstrar toda a hospitalidade da família Drill.
— E mais uma vez, salvo pela esposa! — uma voz áspera saía de uma esquina próxima. Os passos leves e desajeitados já indicavam o proprietário daquela voz. Sorri com muita emoção ao cruzar os olhos de Ullus Marreta Velha SilverHalle!
— Você teve sua chance de ter uma salvadora, Ullus! — respondi com um tom sarcástico, com uma risada contida por baixo da barba. — Mas infelizmente, a velha Mathir caiu nos braços de seu primo!
— Não insulte o jovem bonito! — disse Thorgar, sua voz rasgando o silêncio com uma risada alta. — Nem todos os anões têm sorte com as mulheres! Ainda mais um tão efeminado!
— Uma pena — disse minha esposa, Dily Drill, rindo para Thorgar. — Aposto que todas as anãs prefeririam o rosto afeminado dele, à sua barriga protuberante, Thorgar!
A risada alcançou todos os presentes como uma onda, enquanto Dily corria para buscar mais um copo para Ullus.
Ainda estávamos adiantados, assim como sempre estávamos, então poderíamos nos dar o luxo de conversar e rir enquanto bebíamos um pouco.
Os minutos se arrastavam enquanto falávamos de todos os assuntos possíveis. Quando a voz de Luin silenciou todos!
A melodia suave da Canção da Ônix cruzou o túnel como uma onda de paz. A voz rouca de Luin Rocha Fria, da família Arbeto, recitava os trechos mais contemplantes da canção sagrada das montanhas.
Minha memória viajou imediatamente até o último runigeodus, a cerimônia de passagem dos anões! Onde meninos com até 50 anos ganham um nome-título e passam a integrar a sociedade anã.
Me lembrei do dia em que eu ganhei meu nome-título e minha esposa… Um súbito alívio frio percorreu minha espinha, e suspirei. Como se pressentisse que um cristal fosse fender antes de sua remoção… Como se a montanha ruísse dentro de mim…
— Acho melhor o velho Luin abandonar seus dons artísticos. — disse Ullus, escondendo uma careta engraçada. — Não queremos nosso líder de grupo chorando durante a escavação!
As risadas voltaram a estourar enquanto nos preparávamos para mais um dia!
A descida até o fosso era íngreme, adornada por plataformas e escadas de madeira, que paravam em plataformas de pedra apenas para continuar logo após.
Ali, muitos anões viviam a maior parte de seu dia cantando, xingando e contando piadas!
Ali, muitos nomes se misturavam como as vozes de muitas eras. As rochas conheciam todas as histórias, e as histórias construíam todas as lendas.
SilverHalle, Stonebreaker, Drill, Shockhammer e outras famílias se habituavam ao som de marretas, picaretas e bigornas como órgãos de um corpo em funcionamento.
Rivalidades nasciam e morriam, assim como amizades e até amores.
E entre todas as coisas, algo chamava mais a atenção no dia de hoje! Porém, era apenas uma sensação estranha. Um pouco indecifrável.
O dia se estendeu como sempre! O som ensurdecedor do fosso era como as batidas do coração da montanha, e reverberava no nosso.
Mas havia algo diferente lá… Thorgar havia encontrado um túnel diferente nas escavações de base, na altura média do fosso. O alarde foi imenso. Técnicos e exploradores desceram da base da escavação para averiguar. Porém, antes dos exploradores retornarem…
— Técnicos! Técnicos! — Górum Ilehazar, de nome-título Bigorna Dourada, gritava com espanto ao subir correndo as escadas e plataformas que circundavam o fosso.
As luzes ametistas bem posicionadas por seções faziam o seu rosto, sujo de fuligem e lama, acender e apagar como em uma seção de quadros engraçados de Furli Pedra Oca, o artista de Dul-Aaman. Seu corpo franzino trotava pelos degraus, refletindo no jovem anão de cabelos e barbas loiras.
A tensão logo se instaurou nas bases do fosso quando outros rostos imundos de terra e resquícios de rochas apareceram de seus postos e túneis compartilhando a expressão de espanto de Górum.
A correria e gritaria esquisita e até um pouco engraçada continuou por um tempo enquanto um grupo de trabalhadores subia em uma corrida desenfreada pelas escadarias circulares do fosso.
Um rosto conhecido apareceu da escuridão rosada dos andares inferiores.
O rosto com a mesma expressão dos demais.
Era Thyr Shockhammer. O honrado Guardião da Montanha.
Líder da tropa de exploração e mapeamento! Lutou na batalha de Kward, contra os goblins de Dul-Kaer. Responsável por interceptar e eliminar os últimos sobreviventes da espécie…
Não que eu achasse que um genocídio era algo louvável, mas, dentro da sociedade anã, título é igual a nobreza. E ele, tinha muitos!
Matador de Goblins, Herói de Kward, Salvador do Príncipe, Guardião da Montanha e outros que eu não lembro.
— Corr… — A voz dele foi cortada com um gorgolejo sufocado quando uma ponta negra atravessou seu peito, e como uma pancada de martelo, puxou seu corpo para baixo em algo que parecia um chicote negro e roxo com escamas.
Um grito quase uníssono emergiu da cratera, como um coro de guerra.
— Corram! — gritavam todos, horrorizados com os tentáculos malignos se sacudindo pela cratera, segurando alguns anões, derrubando outros quando quebrava as bases das escadas.
Eu queria correr, eu tinha que correr, mas minhas pernas eram como mármore de Greyrock, imóveis e inquebráveis.
Os tentáculos serpenteavam por todo o espaço aberto da zona de escavação, matando e dilacerando anões de todas as formas mais horrendas que eu poderia presenciar.
Que besta era aquela? O que aconteceu? O velho Luin estava lá embaixo! Cadê todo mundo?
Mil perguntas e nenhuma reação… Total paralisação ao ver amigos e rivais sendo arrastados e seus membros arrancados por sei lá o quê…
— Porra, acorda, caralho! — gritava Thorgar com a cara vermelha de medo! — Corre, porra! Corre muito!
Ilin, Tharg, Mobi e muitos outros… Vi anões ensanguentados, tremendo de medo. Visivelmente horrorizados…
Senti um puxão por trás de minha nuca. Não resisti, não tentei lutar. Apenas aceitei, quando uma pedra bateu em minha cara me tirando do meu transe…
— Porra, Arathor! — gritou comigo um rosto desfigurado com olhos esbugalhados e veias saltando! — Vamo embora daqui, caralho!
Dei uma última olhada para trás, a coisa estava avançando, usando tentáculos sombrios ensanguentados para se ficar nas paredes do fosso e subir, liberando mais tentáculos.
Aquela porra não podia continuar.
Minha esposa, minha filha! Eu tinha que buscar elas, tirar elas daqui.
A vila não era muito longe…
Estalei, minhas pernas voltaram a mexer, ainda tremendo junto com o resto do corpo. Tropecei no primeiro passo tímido, mas logo entrei no ritmo com um puxão firme de Thorgar.
Corremos em meio ao caos de anões gritando e chorando. Não vi o velho Luin entre os transeuntes apressados. Todos correndo por suas vidas, suas famílias.
Saímos pelas portas do túnel de acesso. As luzes ametistas tilintando e fraquejando. Estranho poder pensar por um instante que o sistema de iluminação era infalível! E algo estava errado com ele. Mas não era possível, não podia acontecer.
Luin primeiro° avô do velho Luin, trabalhou com o artífice Demnar, o criador do sistema de iluminação. Assim, Luin contava como o velho gostava de repetir a história da descoberta dos cristais no passado, o uso deles e como isso nos afetou fisicamente.
Minha mente voltou a realidade num instante quando saímos dos túneis de acesso, muitos já estavam lá.
Alguns foram pisoteados até a morte e estavam ajudando a derrubar alguns outros desavisados que tropeçavam em seus corpos e cediam ao empurrão de quem estava logo atrás.
O ar pesado de poeira levantada pela marcha frenética dos anões em furor!
Chegamos ao que era um grande salão pré escavação, que usávamos para descansar antes e depois dos horários.
Luz.
Silêncio…
Booommm!
E de repente, o túnel de acesso. A salvação de quem quer que estivesse tentando se salvar lá dentro. Explodiu.
Não.
Alguém o explodiu.
— Mas… E o Luin? E o Ullus e tantos outros?
E de repente, tudo se apagou.

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