Observei a nostalgia que brilhava nos olhos de Kenshi e acalmava sua ira. O clima retornava ao agradável lentamente quando os ânimos se estabilizavam com a boa notícia vinda de Kafka.

    — Eu não era nada… Eu iria permanecer no nada. — Kenshi iniciou, com pausas curtas entre suas palavras.

    — Foi quando ela apareceu, como um raio de luz e me tirou da foice da morte. Me salvou dos humanos e sua podridão.

    Kenshi fechou seus olhos e suspirou, reorganizando seus pensamentos e retomando sua história com um leve sorriso nostálgico em sua face. É estranho vê-lo sorrir…

    — Fui criado em um pequeno vilarejo ao sul da capital, e junto da minha família vivíamos bem, escondendo a verdade sobre nós. Até que um homem ouviu nossas conversas, escondido atrás das finas paredes de madeira e confirmou suas suspeitas, então, eles criaram a primeira “fazenda”… — Kenshi seguiu contando sua história.

    Percebi que os olhares se voltaram para Kenshi e se fixaram em sua face, mostrando atenção em sua fala. Menos um. Kafka permanecia silenciosa e imóvel, seu olhar estava voltado ao chão, como se aquela história não fosse uma novidade para ela, e sua feição triste era um prelúdio para o que iríamos ouvir. O que eu iria ouvir, sobre meu povo, sobre os humanos…

    A feição de Kenshi se transformava lentamente em angústia, em dor nas memórias que o assombravam.

    — O vilarejo se juntou, e o homem mais rico reuniu trabalhadores, construiu um grande galpão e me aprisionou junto de minha família… Eu, meus pais e meus três irmãos, nós seis dentro daquele lugar. Diversos testes foram feitos, eles queriam descobrir se realmente éramos “Impuros”… — Kenshi suspirou, fazendo uma breve pausa antes de retomar o assunto.

    — Diversas experiências foram realizadas. Queriam saber nossas capacidades, características, personalidades, corpos… Não podíamos fazer nada. Mesmo que tivéssemos poder, eles eram muitos, e seus métodos garantiam que não ocorressem erros…até o dia em que escapei. Meus irmãos mais novos foram os que mais sofreram com tudo isso. Sua pouca idade atiçou a curiosidade dos humanos, queriam transformar um “Impuro” desde o berço.

    “Atiçou” a curiosidade? O que ele quer dizer com isso…? Que nojo. Por favor, não. Esses desgraçados não ousariam, né?

    Um suspiro longo interrompeu a história. Kenshi estava se segurando, se esforçava para não desabar ali. Ele lutou contra as lágrimas e então prosseguiu.

    — Nos forçavam a brigar entre nós, comer pouco, defecar e urinar em nossos próprios quartos. Utilizavam cristais, nossos corpos, tudo que fosse possível para interagir com a magia em nós… Eles nos batiam e nos humilhavam, sempre, era uma tortura… Todos os dias, até que seu sistema falhou.

    — Como falhou? — Satoshi perguntou.

    Vi a expressão de Kenshi se contorcer em tristeza, em memórias que perfuravam seu coração. Em dores que trancavam sua garganta.

    Uma lágrima escorregou pelo rosto do jovem, e seu olho que brilhava com o choro discreto que preenchia sua visão se apertou. Ele passou a mão pelo rosto e tentou limpar as lágrimas, porém o choro lentamente se intensificava.

    Não sei o que dizer… Será que devo dizer algo? Eu acho que não estou em posição para falar nada. Eu sou o intruso aqui.

    — Era dia de eclipse, e eles queriam realizar um teste quando iniciasse o evento… Seria um tipo de sacrifício eu acho. Eles limparam o lugar, e nós também, e então fizeram toda uma preparação ritualística para quando a lua cobrisse o sol. Eu e meus três irmãos mais novos fomos lançados em uma sala, totalmente nus… Os humanos trouxeram nossos pais, ambos vendados. Eles… Eles queriam que nós fizéssemos uma escolha. Nossos pais ou um de nós. — disse Kenshi, e a cada palavra que saía de sua boca o peso em meus ombros aumentava.

    — Por que motivo? Isso não faz nenhum sentido. Malditos, malditos desgraçados… — praguejou Sora, irritado.

    — Os criadores da “fazenda” diziam que queriam extrair a nossa impureza, mas para isso devíamos renunciar nossas raízes, nosso sangue. Acreditavam que uma renúncia sacrificial realizada em um eclipse solar era capaz de transformar a alma de um ser. — respondeu Kenshi.

    — Eram meus pais ou irmãos… Eu tinha escolha, mas não escolhi. Meus pais escolheram por mim, decididos que não queriam que seus filhos morressem. — prosseguiu Kenshi.

    — E seus irmãos? — Satoshi perguntou, verdadeiramente curioso.

    — Eu tive que sacrificá-los. Tive que renunciar, entregar parte de mim. — disse Kenshi, que abaixou a cabeça para cobrir o buraco de seu olho faltante.

    — Eu fugi… No eclipse encontrei o sol, Amaterasu. Eles me perseguiram, mas o seu brilho os expurgou. Ela me salvou, antes que me matassem pela minha tentativa ousada de escapar. Naquele deserto, no eclipse, ela brilhou como nunca a vi brilhar. No dia que me tornei livre.

    Após o fim da história, todos permaneceram quietos por alguns minutos e apenas as respirações podiam ser ouvidas. O clima era melancólico. Será que em mim também existe tanta maldade quanto nos outros humanos?

    — Amaterasu realmente foi uma luz. Na vida de todos nós. — disse Sora.

    — Foi e ainda é. Sinto sua falta… — Satoshi falou.

    — Todos sentimos. — Kenshi encerrou.

    Kafka estava de cabeça baixa, até que a vi levantar repentinamente após um tempo raciocinando. Ela arregalou os olhos por um instante e então suspirou.

    — Vamos encontrar ela, Kenshi. Ela vai retornar, eu sei que vai.

    A jovem se moveu até Kenshi, se aproximou e então o abraçou fortemente. Acariciou seus cabelos e deixou com que se apoiasse em seus ombros.

    — Nós estamos aqui. Todos nós, e ela também vai estar, logo logo. Confia em mim. — disse Kafka.

    A coragem abriu espaço em meu coração, se infiltrou em meio a melancolia e me dizia para falar, para me expressar. Eu precisava dizer algo para Kenshi. Apertei a boca e pensei. Me preparava para falar quando Satoshi me lançou um olhar e um aceno de cabeça, como se me permitisse falar.

    — Sim! Nós vamos achá-la. Eu vou ajudar, com certeza. Podem confiar em mim, sou diferente! Satoshi pode confirmar. — falei, determinado.

    Kenshi por um instante cessou seu choro e lançou seu olhar até mim e permaneceu silencioso. Sora, com seu jeito extravagante quebrou o clima com sua risada.

    — Sim. Nós vamos resolver, mas agora parem com esses olhares, sério! Parece que somos todos estranhos aqui. — disse Sora.

    Satoshi se levantou e foi até Kenshi. Sua feição era de arrependimento e tristeza. Ele encarou o outro nos olhos e estendeu sua mão.

    O jovem de cabelos negros se desvencilhou do abraço de Kafka, e então se ergueu na frente de Satoshi. Ambos se encararam até que Kenshi estendeu sua mão em resposta, apertou a mão do outro e em seguida abraçou.

    — Perdão. — disseram ao mesmo tempo.

    Permaneceram agarrados ao abraço, enquanto Kafka e Sora observavam e sorriam de canto. Independente de tudo, eles são amigos de longa data. Por um instante me esqueci disso e pensei que isso destruiria a amizade… Havia me esquecido da força de verdadeiros laços.

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