Capítulo 2: Pobres criaturas
Diário de Laurient
Dia 82, Ohaarus.
Ano 523 d.F
“Lembrei-me da manhã daquele dia, a luz do sol rompia as camadas de névoa que pairava sob a cidade de Nounhill. O ar carregava quietude, como se o vento decidisse descansar para contemplar esse distinto dia nublado. A raiva e a indignação tomavam conta dos meus nervos. Estava em uma das vielas da cidade. As paredes das casas, desgastadas pelo tempo, pareciam inclinar uma em direção à outra, cada vez mais formando um espaço confinado, sentia-me sufocada. Ao final do beco, havia um bueiro aberto, o qual partia do chão à parede, levando a dezenas de túneis conectados ao esgoto.”
“O fedor infestava o ar, tornando a respiração difícil. Os sapatos dos dois agressores demonstravam a mais fina costura, com elementos visuais harmoniosos, feitos com delicadas pinceladas de uma mão hábil. Eu me lembro tão bem daqueles sapatos… estão mais claros em minha memória do que seus rostos. A cada chute, eu me encolhia como uma lagarta, protegendo a cabeça e ficando quieta, mas por dentro, queria morrer. Meus ferimentos pioravam a cada pontapé dado, mas os delinquentes continuavam a me colocar contra a parede.”
— Já me diverti o suficiente, vamos devolver essa aberração de seis dedos para o lugar de onde veio.
“O garoto mais alto, tipicamente, o líder, rangeu os dentes e franziu as sobrancelhas.”
— É, também não estou mais aguentando esse mal cheiro. Faça uma boa viagem, sua rata imunda! — Tampou o nariz, quase golfando.
“Eu não sei o que me deu, mas algo dentro de mim me comoveu a machucá-los, não queria deixar que saíssem totalmente impunes. Quando o mais alto foi me chutar, mordi sua canela sem piedade. Meus caninos perfuraram sua carne profundamente, marcando minha arcada dentária em sua pele, sangrando até mesmo dentro de minha boca.”
— Argh! Desgraçada! — Puxou a perna, úmida de saliva e sangue, escorrendo ao chão e sujando seus sapatos — joga ela logo.
“Começaram a me empurrar para o bueiro com seus pés; independente do quanto olhasse, não conseguia ver seu final. Os trapos de pano que vestia acumulavam cada vez mais sujeira, lodo e lama, do lixo jogado por ali perto, ao compasso que chegava mais perto de meu possível fim. Atirada à escuridão, deslizei pelo cano pútrido, sendo engolida pelas sombras. Em uma tentativa de reduzir um futuro impacto letal, arrastei as mãos pelo metal enferrujado. Minhas unhas já encardidas arranhavam o material, produzindo um ruído azucrinante.”
“Despenquei em outro duto, mas este de um tamanho descomunal, exageradamente grande para a quantidade de lixo usualmente despejada. Uma fina camada de água de esgoto cobria superficialmente o chão, onde dejetos e carcaças de animais flutuavam naquela banheira repulsiva. Além do constante tinido em meus ouvidos, ocasionalmente escutava ruídos de ratazanas, insetos e de pingos d’água batendo no chão. Com esforço, levantei-me apoiando nas paredes úmidas e escorregadias, e sequei o quanto pôde de meu rosto encharcado.”
— Merda! De novo jogada na sarjeta. — Chutei o roedor mais próximo de mim.
“Aos poucos, tentava acalmar minha respiração ofegante, enquanto vasculhava por outros túneis através da profunda escuridão. Ao engolir a saliva, comecei a sentir cada vez mais alívio ante essas dores. Não sabia que o sangue daquele garoto podia ter um sabor tão bom. Guiada por minha intuição e pelo meu pouco conhecimento sobre aqueles túneis, segui caminho. Aquele miasma fétido insuportável adentrava minhas narinas enquanto procurava por uma saída. Nunca pensei que sentiria falta de um lugar tão grotesco. Nounhill era podre, mas tinha seu charme, diferente dessa prisão entediante.”
“Finalmente, subi uma escada vertical para um destino incerto. Empurrei a tampa e me deparei com a visão do céu estrelado sob o vilarejo, era a única coisa que havia de belo para ver por aquelas bandas. Não nomearam nosso espaço, apenas o chamavam de “A colônia”. As ruas da periferia cariciavam de iluminação; os becos eram desestruturados e a arquitetura local era desarmônica. Mas mesmo assim, via-se crianças brincando e correndo pelo povoamento. A população local sabia se virar com o que tinha.”
“Enfim, encontrei um caminho familiar. Um sentimento de desconforto e nojo me assolava toda vez que arrastava meus pés encardidos pela terra áspera do gueto. Minha tia sempre dizia que um dia eu iria me acostumar. Não sei se isso deveria me trazer uma ideia de conforto ou de medo. Antes, decidi me banhar no rio para tirar esse cheiro de esgoto, ainda com a roupa do corpo. Durante esse tempo, me veio à memória de dois homens caçando um canídeo na floresta ao lado para se alimentarem de sua carne crua ali mesmo. Apertei os dentes com repúdio, não podia ter feito nada para impedir.”
“Voltei para casa, abri a porta e vi minha tia cochilando ao lado de uma sapatilha em cima da mesa da sala de jantar, a qual também era tanto a sala de estar quanto nosso quarto. Uma das pernas da mesa era desnivelada e seu corpo fazia força para o lado oposto, mas mesmo assim, era melhor remediar. Cautelosamente, a cobri com o trapo de pano menos rasgado que pude encontrar, confortei sua cabeça em um pouco de fardo de feno e escorei um pedaço de tijolo na perna da mesa. Não queria vê-la preocupada naquela noite. Me acomodei o quanto pude nas palhas ao lado do forno e esperei o sono fazer seu trabalho.”
Diário de Laurient
Dia 83, Ohaarus.
Ano 523 d.F
“No dia seguinte, me sentia um pouco mais disposta. Cortei parte de um pão e preparei um mingau de aveia com cevada. Usualmente, a comida não era tão saborosa, mas guardava um pote com extrato de cana para adoçar a comida. Coloquei a tigela na mesa, quase derrubando-a devido a perna da mesa estar bamba, havia me esquecido…. ela morreu já faz dois anos. Então, foi um sonho? Estranho, minha costas doem, mas… ah, é melhor deixar para lá.”
“Toda manhã, partia para os campos de cultura ao lado do rio. Arrancava as ervas daninhas da plantação e buscava baldes de água para as Lumplumas que ficavam no cercado (quem dera se todas as outras criaturas fossem como elas, quero dizer, em partes). Minhas costas naturalmente já doíam quando me agachava para arrancar essas parasitas, a queda de ontem… deve tê-la piorado. Ao menos, não era necessário ficar muito tempo no sol quente para espantar possíveis aves e insetos peçonhentos; desses, eu sentia pena.”
“O dia foi uma tragédia, quando voltei da nascente do riacho segurando aquele balde de água pesado entre meus braços, escutei um grito tão horripilante que fez a mordida de um Vernoferno parecer um beijo de boa noite. Todos que trabalhavam no plantio olharam para a direção do grito, vinha de um homem esquelético e franzino. Era como se o próprio som que saía de sua garganta engasgada e rouca sentisse a agonia da dor. Eu estava um pouco distante daquele cenário, mas prestei bastante atenção, como todos aqueles olhares curiosos. Jorrou sangue de sua boca e todos seus dentes quebraram em um instante; algo semelhante a raízes saltaram de sua cabeça e torso, rasgando sua pele. Parecia ser algo meio gosmento, mas não queria ficar para descobrir.”
“Disparei em direção ao barranco de areia, enquanto os outros trabalhadores fizeram o mesmo. Olhei apressadamente para trás e a criatura, a qual se parecia mais com um emaranhado escuro de carne viva, devorava as Lumplumas, uma por uma. Entrava em seus corpos por quaisquer orifícios, e as rasgava de dentro para fora. Saiu da área do cercado, passando para a colheita, mesmo sem patas ou uma forma física definida, era veloz, o suficiente para deixar meu coração arraigado de adrenalina e pavor. Soltei o balde e balancei os braços, colocando toda a força em minhas pernas dormentes. Em segundos, só pude escutar berros atrás de mim, um pior que o outro, parecia estar cada vez mais perto! Pulei para o terreno árido como um último ato…”
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